Entre a cruz e a caldeirinha
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty é uma das vozes mais influentes do pensamento pós-colonial e dos estudos sobre as implicações históricas e filosóficas da crise climática. Nascido em Calcutá em 1948, possui trajetória acadêmica única. Começou estudando física para depois migrar para a administração e daí para a história. Um ponto central no seu pensamento é a crítica ao eurocentrismo nas ciências humanas e a redefinição da condição humana na era do Antropoceno, termo proposto para a nova época geológica em que vivemos, caracterizada pelo fato de que a humanidade se tornou a principal força de transformação do planeta, superando as forças naturais.
Em um primeiro momento, o que ocupou sua produção foram os estudos pós-coloniais. Chakrabarty foi um membro fundador do Grupo de Estudos Subalternos, um coletivo de historiadores sul-asiáticos liderado por Ranajit Guha. O projeto subalternista era o de reescrever a história da Índia a partir da perspectiva dos grupos subalternos – camponeses, a classe trabalhadora, mulheres e outras classes não pertencentes à elite – cujas vozes foram ignoradas tanto pela historiografia colonialista britânica quanto pela historiografia nacionalista indiana. Crítica que está em sua obra mais famosa: Provincializando a Europa: O Pensamento Pós-Colonial e a Diferença Histórica, de 2000.
Atualmente, é professor de História no Lawrence A. Kimpton Distinguished Service na Universidade de Chicago e sua preocupação migrou para a crise climática. Em 2009 escreveu o ensaio O Clima da História: Quatro Teses, no qual argumenta que os efeitos do que acontece no nível planetário, incluindo biologia e geologia, forçam uma reconfiguração radical da disciplina histórica. Em 2001, aprofundou esse pensamento no livro O Global e o Planetário, a História na Era da Crise Climática, que acaba de ser lançado em português pela Ubu Editora. Conversei com o professor justamente para compreender melhor o seu pensamento em relação à crise do clima, a ação humana e o que se pode fazer. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Como podemos distinguir entre o global e o planetário, e por que essa distinção é considerada crucial para a compreensão dos nossos tempos?
No meu uso, o globo refere-se a um mundo conectado que a expansão europeia, a colonização e a apropriação de terras e vidas de outros povos – e as tecnologias (incluindo as digitais) desenvolvidas para tais fins – criaram nos últimos 500 anos, enquanto o planeta se refere ao sistema terrestre onde processos físicos, químicos, geológicos e biológicos convergem para criar condições que sustentam a vida – tanto humana quanto não humana. O sistema terrestre tem bilhões de anos e, sem o seu funcionamento adequado, os humanos também não podem existir. A crise do aquecimento global nos tornou conscientes de que os humanos, principalmente os privilegiados, estão tendo um impacto negativo no sistema terrestre por meio de seu número, consumo e tecnologias, pondo em perigo a existência humana. A distinção é crucial para entender a natureza da nossa atual crise ambiental planetária.
Quais são os principais argumentos sobre as limitações do pensamento histórico e humanístico tradicional em abordar os desafios do que você chama de Era Planetária ou do Antropoceno?
A principal limitação atual do pensamento histórico humanístico tradicional é que ele se baseava em uma distinção entre histórias humanas e naturais. O fato de que as instituições humanas estão agora agindo como uma força geológica destrói essa distinção.
Como o livro aborda e desafia as noções tradicionais de tempo e temporalidade?
Um dos argumentos do livro é de que agora temos de considerar as escalas de tempo humanas e geológicas em conjunto ao pensar nos futuros humanos, já que o agora humano coincidiu com o agora geológico, se a alegação de que estamos vivendo o início de uma nova época geológica – chame-a como quiser – estiver correta. Ao realizar tais experimentos mentais, percebemos o quão difícil é o exercício e o quanto ele diz sobre nossa situação contemporânea. Considere o seguinte: sustentar nossos atuais estilos de vida capitalistas-consumistas, ou a aspiração a tais estilos de vida, pode muito bem significar que teremos que viver em um mundo mais quente e com uma crise significativa de biodiversidade. Esses tipos de resultados podem então nos levar a usar tecnologias desesperadas para gerenciar o clima do planeta por meio da geoengenharia, como captura e sequestro de carbono, tornando os mares artificialmente mais alcalinos e gerenciando a radiação solar.
Esse tipo de interferência traz mais riscos, não?
Não se sabe quais outros riscos essas tecnologias criarão para os humanos. Não sabemos se podemos sequer gerenciar um planeta que, ao contrário de um navio ou uma aeronave, não projetamos. O que isso significa, argumento no livro, é que os humanos não podem mais tomar o mundo como um pano de fundo inerte contra o qual podemos encenar o drama do desenvolvimento capitalista. Nosso impacto no ambiente do planeta agora colocou em primeiro plano o que costumava ser o pano de fundo para nós. Daqui para frente, teremos que pensar cada vez mais sobre como os humanos se encaixam neste planeta e qual deve ser nosso papel se quisermos tornar a civilização humana sustentável.
Que críticas o livro oferece em relação ao capitalismo extrativista e à busca mais ampla por produtividade e modernização, particularmente em relação ao Antropoceno?
Ele não rejeita a modernização ou a produtividade, pois os desafios da pobreza e das desigualdades humanas são reais. Mas aponta para a necessidade de repensar a modernização, para trazer nossas preocupações em eliminar a pobreza e as desigualdades para um diálogo com nosso crescente conhecimento do sistema terrestre e de como ele mantém a vida. O ponto mais imediato e crítico é que não devemos empreender formas de modernização que destruam a biodiversidade, pois a biodiversidade é uma das condições-chave para a sustentação da vida. Se a biodiversidade entrar em colapso, nós vamos junto! Isso, na prática, é uma crítica ao capitalismo extrativista.
Como o livro aborda o papel da cultura, do afeto e do “registro visceral” na formação das respostas humanas (ou da falta delas) à crise planetária?
O desafio aqui é entender que a política humana é escalonada. Temos diferentes possibilidades de ação em vários níveis: o pessoal, o local, o nacional, o global e o planetário. O planeta também é igualmente escalonado. Nem sempre é a coisa enorme e grandiosa de que os geólogos falam. O planeta é pessoal, por exemplo, quando se trata do seu peso. Portanto, há coisas que podemos fazer para intervir nesta crise nesses vários níveis, começando pelo pessoal e se estendendo até as escalas planetária e global. Não teremos o mesmo sucesso em todos os níveis – e os níveis estão interconectados, afinal – mas a situação não significa que não há nada que possamos fazer.
De que maneiras o livro explora a condição humana transformada na Era Planetária, indo além de entendimentos anteriores como o de Hannah Arendt?
Arendt escrevia na inauguração da era espacial. Ela pensava que os humanos sobreviveriam mudando-se para outros planetas, embora pagassem o preço da “alienação da Terra”. Agora percebemos – seguindo o surgimento da ciência do sistema terrestre e os estudos, por exemplo, do falecido Bruno Latour – que somos terráqueos. Ir para outro planeta para habitar não é uma solução para nós. A condição humana hoje é muito mais precária do que Arendt, pensando em sua própria época, imaginava.
Quais são suas principais preocupações em relação à crise climática? É tarde demais para evitá-la?
Infelizmente, parece ser tarde demais em nível planetário. Fala-se muito agora em “realismo climático” nos círculos empresariais, que assume que até o final deste século teremos que viver com um aquecimento de três graus. Isso será um desastre para a maioria dos humanos, e provavelmente veremos um mundo mais conflituoso. Não é uma perspectiva agradável. Mas o que você pode fazer se nações poderosas e grandes consumidoras de combustíveis se recusam a mudar seus modos de vida? Isso não significa, no entanto, que não há nada a fazer. Ainda há muito que se pode fazer dentro das nações, com coalizões de nações em regiões específicas (para salvar a floresta amazônica ou as geleiras do Himalaia, por exemplo), e até mesmo em fóruns como o IPCC e a ONU. Também penso que, sempre que possível, as nações deveriam ver como poderiam se afastar, na prática, de ideias de modernização e desenvolvimento que destroem o mundo, protegendo ao mesmo tempo os valores fundamentais da dignidade humana, do bem-estar e do cuidado com o meio ambiente. São processos difíceis que exigem paciência, união e imaginação, mas os humanos possuem essas qualidades. Sinto-me esperançoso nesse aspecto.