Populismo reacionário em 3D
O populismo autoritário de direita, que atravessa as democracias ocidentais desde a última década, permanece como a principal reação política às disfunções e assimetrias produzidas pela globalização. Embora apresente traços comuns em diferentes contextos, está longe de ser um fenômeno homogêneo. Para compreender sua lógica e suas dinâmicas, é necessário observá-lo em três dimensões simultâneas: a clivagem centro-periferia, a diferença estrutural entre Velho e Novo Mundo e as condições políticas e institucionais específicas de cada país.
Na primeira dimensão, a clivagem centro-periferia, o populismo reacionário se manifesta, no centro do sistema internacional — Estados Unidos e Europa Ocidental —, como resposta direta ao declínio relativo da hegemonia ocidental diante da ascensão da China, da Rússia, da Índia e de outras potências do Sul Global. Diante da erosão de sua centralidade econômica, geopolítica e simbólica, as antigas potências reagem com o fechamento de fronteiras — comerciais, migratórias e culturais —, com a corrosão dos regimes multilaterais que elas próprias criaram e com a tentativa deliberada de restaurar uma hierarquia internacional que lhes devolva a primazia perdida. O populismo reacionário funciona, nesse contexto, como a ideologia política dessa restauração hierárquica, projetando para fora o mesmo programa de restauração social e cultural que mobiliza no plano doméstico.
O populismo reacionário americano opera como uma reação contra qualquer avanço democratizante
A segunda dimensão, a clivagem entre Velho e Novo Mundo, produz dinâmicas diferenciadas. Na Europa, sociedades historicamente estruturadas sobre bases nacionais relativamente homogêneas reagem prioritariamente a ameaças externas — notadamente à imigração africana, árabe e asiática, percebida como risco à coesão cultural, étnica e religiosa. Aqui, o populismo reacionário organiza-se em torno de uma retórica civilizacional, que opõe a cultura europeia a seus “inimigos externos”, reais ou imaginados. Nas Américas, o quadro é diverso. Sociedades construídas a partir da colonização, da escravidão e da mestiçagem, marcadas por desigualdades estruturais e por hierarquias raciais persistentes, o populismo reacionário mobiliza-se não apenas contra ameaças externas, mas sobretudo contra pressões internas. O inimigo, aqui, não é apenas o estrangeiro: são também os setores subalternizados — negros, indígenas, mulheres e populações LGBTQIA+ —, cujas demandas por inclusão, reconhecimento e reparação são percebidas como ameaças diretas à ordem social, racial e cultural que historicamente sustentou a dominação das elites brancas e cristãs. O populismo reacionário americano opera, portanto, como uma reação contra qualquer avanço democratizante, seja no plano étnico-racial, seja no campo dos direitos civis e das políticas redistributivas.
Na terceira dimensão, a nacional, o fenômeno se adapta às condições internas de cada país. Na América Latina, diferentemente do centro, o populismo reacionário não decorre nem da ansiedade geopolítica nem da pressão migratória. Ele surge principalmente como uma reação endógena, expressão da resistência das elites econômicas, militares e religiosas — e de parcelas das classes médias — contra os efeitos cumulativos de quatro décadas de democratização social, de modernização econômica e de expansão dos direitos. No caso argentino, ele emerge como expressão do colapso econômico prolongado e do esgotamento do modelo peronista, que abriu caminho para um populismo de novo tipo — libertariano no plano econômico e abertamente antipolítico no plano institucional, cujo traço definidor é o ataque simultâneo ao sistema político, ao Estado social e às mediações institucionais.
No Brasil, o bolsonarismo emergiu da confluência de três fatores: a crise terminal do modelo de governabilidade da Nova República; a reação de partes das classes médias e das elites econômicas aos efeitos sociais da Constituição de 1988, do ciclo progressista e das políticas de inclusão social; e a articulação bem-sucedida entre forças militares, neopentecostais, empresariais e redes digitais de desinformação, que conferiram ao movimento uma capacidade inédita de mobilização extra institucional. Por meio de memes e vídeos no WhatsApp e no X, o bolsonarismo ataca o STF e o governo Lula, explorando a lentidão das instituições democráticas. Seu fracasso na tentativa de ruptura institucional em 8 de janeiro de 2023 não resultou em sua eliminação, mas em sua retração parcial, sem que as condições estruturais que o produziram tenham sido superadas.
Esse quadro se consolida com o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Sua volta não é apenas a retomada de uma liderança pessoal, mas a intensificação de um reacionarismo programático de alcance global, organizado em dois eixos centrais. No plano externo, a nova administração norte-americana busca restaurar a hierarquia internacional, com a contenção da China, a desestabilização dos BRICS e a pressão sobre os países do Sul Global para subordinar seus projetos de desenvolvimento aos interesses dos Estados Unidos. No plano interno, abandona qualquer compromisso, mesmo retórico, com o liberalismo político, usando legislações de exceção para restringir direitos civis, suprimir garantias constitucionais e enfraquecer os mecanismos de controle dos poderes.
Trump se torna a liderança central de uma internacional reacionária, cujos efeitos se projetam sobre todos os regimes democráticos, inclusive os do Sul Global
A isso se soma um elemento decisivo para a nova etapa da internacional reacionária: a defesa da não regulação das plataformas digitais, vistas como essenciais para o extremismo de direita, a radicalização política e a corrosão dos regimes democráticos. As redes sociais funcionam como canais de mobilização permanente, desinformação sistemática e desestabilização institucional. Enquanto a extrema-direita domina as redes com mensagens rápidas, o Estado, preso a processos analógicos, não acompanha o ritmo. Trump se torna, assim, a liderança central de uma internacional reacionária, cujos efeitos se projetam sobre todos os regimes democráticos, inclusive os do Sul Global.
O bolsonarismo se reposiciona como expressão periférica desse projeto. Sem a força interna de antes, aposta no respaldo diplomático, político e simbólico do trumpismo global para rearticular sua base, pressionar as instituições e reconquistar espaço no sistema político brasileiro. No entanto, o quadro doméstico é hoje distinto daquele que prevalecia na década anterior. A extrema-direita brasileira encontra-se, de fato, enfraquecida.
Paradoxalmente, esse enfraquecimento não resulta apenas da repressão institucional que se seguiu à tentativa de golpe, mas sobretudo do sucesso da direita convencional, que se expandiu, se diversificou e se consolidou como força política autônoma, assumidamente conservadora, liberal na economia e institucional no funcionamento. A multiplicação de candidaturas competitivas no campo da direita — que hoje ocupa posições de governo, de parlamento e de opinião pública — reduziu significativamente o espaço político para projetos abertamente iliberais ou antipolíticos. Ainda assim, o cenário permanece estruturalmente instável.
Não se pode descartar que a eleição presidencial de 2026, dependendo da dinâmica da campanha e da interação entre variáveis econômicas, sociais e internacionais, abra espaço para a emergência de uma nova candidatura de perfil antissistema, capaz de reativar dinâmicas autoritárias que hoje parecem temporariamente contidas. O populismo reacionário permanece, portanto, como uma variável estrutural da política contemporânea, moldado por suas lógicas globais, hemisféricas e nacionais.