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Três mil anos de Irã

Há 46 anos o Irã invadiu os assuntos do cotidiano, quando a Revolução Islâmica de 1979 substituiu a brutal monarquia pró-americana do xá Mohammad Reza Pahlavi (1919-1980) pela brutal teocracia antiamericana do aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989). O impacto dessa mudança atingiu em todo o mundo a geopolítica, a economia e até a cultura popular. Xiita, corrente muçulmana do novo regime, virou sinônimo de radical, e até a MPB entrou na onda — “tem sempre um aiatolá pra atolar”, escreveu Rita Lee e cantou Elis Regina.

Apesar dessa exposição, até hoje nem todos têm uma ideia da real importância do Irã, especialmente porque, cá no Ocidente, o país era, até a primeira metade do século 20, conhecido pelo tradicionalíssimo nome Pérsia. Se muito da cultura mudou, ainda é a mesma terra e o mesmo povo que produziu um dos maiores e mais duradouros impérios da Antiguidade, cuja cultura influenciou profundamente as duas maiores religiões do mundo e, paradoxalmente, implementou um ambiente de liberdade religiosa invejável até mesmo para padrões modernos.

Arianos de verdade

O Irã é, de certa forma, anterior aos iranianos. Susa, que viria a ser uma das capitais de seu império, foi construída por volta de 4400 a.C., apenas um século depois de Uruk, na Mesopotâmia. Era, porém, um outro povo, os autóctones elamitas, que chegaram a estabelecer um império. Segundo registros dos vizinhos assírios, no início do segundo milênio a.C. tribos vindas das estepes ao norte começaram a migrar para o Planalto Iraniano. Eram os arianos, não o delírio racista criado por europeus, mas, como explica o livro póstumo Aryans, do historiador britânico Charles Allen, um povo que também ocupou o Norte da Índia.

Pouco a pouco, os arianos foram expulsando os elamitas ou se misturando a eles até ocuparem todo o planalto, ao qual chamaram de ary?n?m, terra dos arianos, de onde vem Aiyran, ou simplesmente, Irã. Ao longo dos séculos seguintes, essas tribos se consolidaram em pequenos reinos, especialmente como resistência ao poderoso Império Assírio, que dominou a região entre os séculos 10 e 7 a.C. O primeiro deles a se destacar foi a Média, cujo rei Ciaxares, aliado ao babilônio Nabopolassar, derrotou os assírios em 612 a.C. e estabeleceu o próprio império. Mas havia uma outra potência prestes a emergir do planalto e mudar o mundo.

O conquistador tolerante

Na região de Persis, outra confederação de tribos arianas se condensou em um reino sob a dinastia Aquemênida, da cidade de Pasárgada, ainda vassalo da Média. Seu terceiro sha (xá, rei), Ciro II, iniciou uma revolta que durou de 553 a 500 a.C. e culminou com a derrota dos medos e sua incorporação ao agora Império Aquemênida, ou, como ficou conhecido na História, o Império Persa.

Ciro, justamente chamado “o Grande”, tomou gosto pela coisa e enfileirou conquistas: Frígia (hoje Anatólia, na Turquia), Lídia (Oeste da Turquia), Elam, virtualmente todas as tribos arianas em regiões hoje equivales ao Afeganistão e, finalmente, em 540 a.C., Babilônia, tornando-se o shahansha, rei dos reis. Estendendo-se do Mar Negro e do Levante aos limites do Vale do Indo, era o maior império já visto, embora fosse crescer mais, e um dos mais estáveis, em parte pela postura de Ciro, um conquistador de postura tolerante.

A filosofia do Império Aquemênida era basicamente: se os povos nos prestam vassalagem sem se rebelar e pagam tributos, pouco importa que deuses adorem ou que língua falem. Ao tomar Babilônia, libertou os judeus ali cativos, financiou a reconstrução de Jerusalém e lhes permitiu restabelecer seu próprio reino, vassalo do império. O que é particularmente notável se pensarmos que a Pérsia foi o berço da primeira religião monoteísta prosélita bem-sucedida, o zoroastrismo.

O monoteísmo como o conhecemos hoje

A primeira experiência monoteísta da qual se tem registro aconteceu no Egito, no século 14 a.C., quando o faraó Aquenáton buscou substituir a religião politeísta local pela adoração a um único deus, Áton. Mas após sua morte em 1334 a.C., o antigo culto foi restaurado, não deixando vestígios da reforma monoteísta. No Planalto Iraniano, a história foi diferente.

Não há um consenso sobre o período em que viveu Zaratustra Espítama, chamado pelos gregos de Zoroastro. Análises linguísticas dos textos que lhe são atribuídos apontam para algo entre 1500 e 1000 a.C., embora outras fontes o apontem como contemporâneo de Ciro, o Grande, o que é pouco provável, pois sua religião já estava consolidada e oficializada ali.

Zoroastro se proclamava profeta de Aúra-masda, o Sábio Senhor, deus único, criador do Universo e da Humanidade, em constante conflito com seu gêmeo maléfico, Arimã. Dizia que os homens tinham livre arbítrio para escolher qual dos dois seguir, mas que havia uma consequência para suas almas imortais: o paraíso ou o inferno. Os conceitos de Messias e Juízo Final também vêm de Zoroastro. Tudo isso foi incorporado com algumas diferenças ao judaísmo e, principalmente, ao cristianismo e ao islã — que viria a suplantar o zoroastrismo, aliás. A ideia cristã e islâmica de Satã, por exemplo, remete a Arimã, não ao “adversário” mencionado no Velho Testamento.

Embora defendesse que seu deus era único e deveria ser aceito por todos os povos, o zoroastrismo não foi imposto pelos Aquemênidas. Mas a tolerância não era o único segredo do império. Ciro era um administrador brilhante e dividiu seus domínios em satrapias (províncias) com governadores leais, tropas profissionais e estradas bem conservadas, que lhe permitiram mobilizar rapidamente suas forças.

Ainda maior

Ciro morreu em combate contra os citas, uma tribo nômade do Oeste do Irã, em 530 a.C., mas sua morte não comprometeu a grandeza do império, pelo contrário. Seu herdeiro, Cambises II, anexou o Egito em 522 a.C., mas morreu durante essa campanha. Sua sucessão foi confusa, com o irmão e herdeiro Bardia sendo acusado se um impostor da casta sacerdotal. Ao final, Dario I, vagamente aparentado com a casa real, assumiu o trono e levou o império a seu zênite, recebendo também o título de “o Grande”.

Sob Dario, os persas conquistaram o Vale do Indo, a Trácia e boa parte das ilhas do Mar Egeu, enquanto a Macedônia se submeteu como um estado vassalo. Mas ele não conseguiu subjugar as principais cidades estado gregas, em particular Atenas, derrotado na Batalha de Maratona em 490 a.C. O rei morreu quatro anos depois, e coube a seu herdeiro, Xerxes I, derrotar os atenienses e arrasar a cidade, embora ao final da campanha tenha sido repelido e perdido o controle sobre a Macedônia e a Trácia.

O assassinato de Xerxes em 465 a.C. e ascensão de seu filho Artaxerxes marcaram o início de um período de estabilidade, fora uma ou outra revolta local, do império, até a chegada, em 331 a.C., do macedônio Alexandre, o Grande, que derrotou Dario III em três batalhas anexando e pondo fim ao Império Aquemênida.

A Pérsia macedônia

A alegria de Alexandre durou pouco. Uma febre o matou em 323 a.C., e após o assassinato de seu único filho, em 309 a.C., seu império foi dividido entre os generais macedônios, cabendo a Seleuco I Nicátor o Irã, a Mesopotâmia e a Síria. O Império Selêucida era fundamentalmente grego na cultura e no idioma e viveu às turras com o Egito, governado pela dinastia de Ptolomeu, outro general de Alexandre. No século 2 a.C., o imperador Antíoco III tentou conquistar a Grécia, mas foi repelido com a ajuda de uma nova potência, Roma.

O domínio selêucida sobre a Pérsia começou a ruir um pouco antes. Em 247 a.C., Ársaces I, líder dos parnos, outra tribo ariana, conquistou a satrapia da Partia. Nascia o Império Parta, expandido no século seguinte pela conquista por Mitrídates I da Mesopotâmia e da Média. Ao tentar anexar a Armênia, o Império Parta entrou em conflito com a República de Roma, numa sucessão de guerras que duraria séculos e avançaria para o império seguinte.

Conquista e conversão

Em 224 d.C., com o império Parta desarticulado pelas constantes guerras, tribos persas se rebelaram sob o comando do sassânida Artaxerxes I, fundador do império de levaria o nome de seu clã e retomaria para a Pérsia o posto de grande potência mundial. Seu filho, Sapor I, além de expandir o império, foi a Nêmesis de Roma. Durante seu reinado, em 260, o imperador Valeriano foi capturado e mantido prisioneiro até a morte. Um século depois, o imperador Juliano morreu em campanha na Pérsia (uma região hoje no Iraque) contra Sapor II. No reinado deste, a relação tensa entre os impérios persa e romano ganhou outro elemento. Constantino I tornou o cristianismo a religião oficial de Roma, em detrimento das demais crenças (embora não as banisse), o que levou Sapor II a perseguir os cristão em seu império.

A guerra entre as duas potências — com o Império Romano do Oriente ou Bizantino assumindo o confronto — só terminou no século 7, com outro evento que mudaria os rumos da História. Em 632, após a morte de Maomé, os árabes muçulmanos iniciaram uma onda que conquistas que se estenderia por três continentes. No ano seguinte, aproveitando o enfraquecimento do Império Sassânida por uma guerra civil, o futuro califa Omar invadiu o Irã, conquistado com a morte do rei Isdigerdes III.

Mais que a perda da autonomia política para uma força estrangeira, a conquista implicou uma mudança cultural profunda, com o islã suplantando quase totalmente o zoroastrismo e os persas adotando o alfabeto árabe — os conquistadores tentaram impor também seu idioma, mas não foram bem-sucedidos. O domínio dos califados, primeiro o omíada, depois o abássida, foi longo. No último, porém, a elite iraniana começou a exercer cargos cada vez mais importantes na corte da capital Bagdá, enquanto pequenos reis controlavam de quando em quando pedaços do Irã.

Ao longo dos séculos 9 e 10, iranianos e alguns turcos e berberes, iniciaram um resgate de cultura persa, dentro de um contexto muçulmano. Como escreveu o historiador anglo-americano Bernard Lewis no artigo Iran in History, “os persas permaneceram persas, e, após um intervalo de silêncio, o Irã reemergiu como um elemento distinto no islã”.

Diversas pequenas dinastias, vassalas ou não dos abássidas, sucederam-se até que, em 1219, o Irã foi invadido pelos mongóis de Gengis Kahn. Foi uma guerra de conquista tanto quando de destruição, com massacre da população e incêndios de cidades, em particular bibliotecas e instalações de infraestrutura. Mesmo com a dissolução do império de Gengis Kahn, os mongóis dominaram o Irã, assimilando aos poucos a cultura persa, até 1370, quando o general turco-mongol Tamerlão conquistou o país, fundando o Império Timúrida.

A virada religiosa

Os iranianos só retomaram o controle de seu país em 1501, quando, após uma série de conquistas militares, Ismael I se declarou xá e fundou o Império Safávida. Em seu auge, englobou, além do Irã, Azerbaijão, Kwait, Afeganistão, Iraque e partes da Geórgia e da Turquia, entre outras regiões. Mas a grande mudança trazida pela nova dinastia foi religiosa.

Até então, 90% dos iranianos eram muçulmanos sunitas, embora os xiitas tivessem uma presença cultural forte. A queda do Califado Abássida, sunita, e a destruição causada pelo mongóis fizeram com que partes das tribos paulatinamente se convertessem ao xiitismo. Ao assumir o trono, Ismael I decretou que o islã xiita seria a religião oficial do Irã, situação que prevalece até hoje. O fato de esta corrente então pregar a separação entre o clero e o poder temporal era um atrativo a mais para o governante.

Fora das mesquitas, os safávidas também foram ativos. Enfrentaram o Império Otomano e expulsaram, com a ajuda da Inglaterra, os portugueses de suas possessões no Golfo Pérsico, além de estabelecerem fortes laços diplomáticos e comerciais com a Europa. Mas, a partir da segunda metade do século 17, governantes incompetentes, crises e revoltas levaram à decadência do império, com grandes perdas de território para os russos e os otomanos.

Caos e reconstrução

Entre 1724 e 1736, o país viveu o caos, até que o general Nader expulsou invasores e, após um breve período de restauração safávida, se proclamou xá. Sob seu comando, o Irã atacou o Império Mogol (não confundir com Mongol) na Índia, arrasando Déli e saqueando suas riquezas. Revoltas internas, porém, se sucediam, até Nader ser assassinado em 1747, dando início a um novo período de anarquia, perdas territoriais e guerras civis que duraria até 1796, com o início da longa dinastia Qajar.

Maomé Qajar reunificou o país e buscou retomar os territórios do Cáucaso, vistos como fundamentais na defesa contra a Rússia e o Império Otomano. Antes de ser coroado xá, reconquistou a Georgia, levando mais de 15 mil prisioneiros. No início do século 19, porém, duas guerras com a Rússia levaram à perda definitiva da Geórgia, do Azerbaijão, da Armênia e do Daguestão, provocando uma ampla migração de muçulmanos dessas regiões para o Irã.

Nasser Qajar, quarto xá da dinastia, procurou modernizar o país, mas se viu forçado a fazer uma série de concessões comerciais e territoriais à Rússia e ao Império Britânico, potências mais fortes. A morte de dois milhões de pessoas na “Fome Persa” entre 1870 e 1871 abalou de vez a confiança nos Qajar, que tentaram se manter no poder transformando o país em uma monarquia constitucional limitada e convocando um Parlamento em 1906. Mas a própria independência do país era relativa, com russos e britânicos estabelecendo “áreas de influência” e ocupando de fato partes do território desde 1904.

Riqueza embaixo da terra

O golpe de morte na dinastia começou 1908, quando os ingleses descobriram petróleo na província do Cuzistão, no Sudoeste do Irã, então sob controle britânico, o que acentuou o interesse das grandes potências pelo país. Com a Revolução Bolchevique em 1917, os russos saíram da equação, e os ingleses tentaram, sem sucesso, estabelecer um protetorado sobre o Irã, como fizeram com grande parte do Oriente Médio.

Em 1921, um oficial chamado Reza Kahn liderou um golpe militar que, embora mantivesse formalmente o xá no trono, privava-o do poder. Quatro anos depois, Reza depôs o último Qajar e se fez coroar xá Reza Pahlavi, instituindo um regime ditatorial que, por um lado, modernizou de fato o país, mas, por outro, promoveu uma repressão brutal e uma secularização forçada da sociedade. Entre outras mudanças, Reza solicitou que o nome Pérsia deixasse de ser usado oficialmente pelas outras nações, com Irã sendo o termo adotado. Ele manteria o poder até sua morte, em 1941, quando novos fatores externos pesaram sobre o país.

Um jovem xá e (mais) um golpe

A mudança de poder, coincidindo com uma guerra mundial, trouxe de volta ao Irã os mesmos ares de revolução que colocaram fim à dinastia Qajar. Da mesma forma que no início do século, o centro da discussão estava na indústria petrolífera do país, ainda sob o domínio da Grã-Bretanha — em larga escala — e da Rússia — em menor escala. Os dois países haviam invadido o Irã em 1941 e o ocuparam até o fim da Segunda Guerra Mundial.

O filho de Reza Pahlavi, o jovem e inexperiente Mohammad Reza Pahlavi, assumiu o poder enfraquecido, precisando ceder apoio ao Parlamento após a morte do pai nos meses subsequentes à invasão. Entre os deputados que emergem após a saída de britânicos e russos do país, um ganha destaque e fama popular como um líder incorruptível, dedicado a lutar não só pelos nobres e aristocratas, mas principalmente pelo bem-estar do povo.

Mohammad Mossadeq assumiu o poder em maio de 1951 com forte viés nacionalista, e promessas ousadas e polêmicas. Sua principal bandeira era a nacionalização da indústria petrolífera iraniana, havia décadas sob o domínio britânico. Mossadeq também defendia valores liberais pouco comuns à história iraniana, como conceder o direito a voto a analfabetos, excluir o domínio político e econômico das grandes potências no país e a construção de uma monarquia estritamente constitucional, como nos moldes ingleses. Nesse processo, ele retirou quase todo o poder político e militar do xá e promoveu, como prometera, a estatização da companhia de petróleo Anglo-Iraniana (AIOC, na sigla em inglês).

O choque nacionalista teve sucesso internamente, mas trouxe muita insatisfação externa. Os britânicos dependiam do petróleo iraniano de forma profunda — 85% da demanda de combustível para a marinha inglesa vinha do Irã, e cerca de 75% dos lucros da AIOC iam diretamente para os cofres britânicos. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos passaram a temer que o Irã se tornasse um importante exportador de petróleo para a União Soviética, que já havia construído um gasoduto. Em 1953, sob o pretexto de que Mossadeq estava se transformando em um Hitler comunista do Oriente Médio, a CIA e o MI6 inglês organizaram um golpe de Estado e o depuseram. O sonho iraniano de ter soberania sobre seus recursos naturais só ressurgiria 25 anos depois.

Apoiado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, Reza Pahlavi voltou ao controle do país disposto a não dividir mais o poder com o Parlamento ou com qualquer segmento da sociedade. Iniciou reformas estruturais que ampliaram ainda mais o controle do Estado sobre a vida dos cidadãos, estivessem eles em Teerã ou nos mais remotos vilarejos do Baluchistão.

Com o choque do petróleo no início dos anos 1970, passou a imaginar o Irã novamente como o centro de uma nova civilização. Construiu ferrovias cortando o país, pavimentou dezenas de milhares de quilômetros, abriu escolas, universidades e deu início ao programa nuclear iraniano. Reza Pahlavi prometeu investir US$ 33 bilhões em pesquisas atômicas para construir ao menos 20 reatores nucleares até 1994. Nos círculos diplomáticos ocidentais, o xá era visto como megalomaníaco e repleto de ilusões de grandeza napoleônicas.

Se Luís XIV dizia ser o Estado, Reza Pahlavi passou a acreditar que era o sol. Em um dos maiores monumentos construídos por ele em Teerã, a Torre Shayad, lia-se literalmente: “Lembre-se do Xá Arya Mehr (luz dos arianos)”, em uma clara referência ao passado zoroastrista do Irã pré-islâmico. Com a concentração de poder, vieram as tensões sociais. Mesmo com a abundância de recursos advindos do petróleo, o Irã se tornou um país ainda mais desigual sob o comando de Reza Pahlavi. Houve mais concentração de renda, alienação de setores tradicionais da sociedade nas tomadas de poder — inclusive local —, um espetacular êxodo rural causado por uma política de reforma agrária que beneficiou poucos e empurrou muitos para a miséria. Teerã, a capital da nova civilização imaginada pelo xá, se transformou em um imenso aglomerado de favelas. Sua população saiu de 1,5 milhão de habitantes em 1953 para impressionantes 5,5 milhões em 1979.

Reza Pahlavi também passou a intervir em questões culturais e religiosas entrincheiradas na sociedade iraniana. Passou a condenar o uso do véu pelas mulheres, autorizou o aborto antes de 12 semanas de gravidez, alterou as leis de divórcio, concedendo mais liberdade às mulheres.

Ações como essas ganharam apoio da classe média intelectualizada de Teerã, mas enfureceram as camadas mais populares e mais religiosas. Ao fim, Reza Pahlavi dizia que já não precisava dos clérigos para dialogar com o divino. Em entrevista a uma jornalista italiana, o xá afirmou que recebia mensagens diretamente dos profetas, como Imã Ali, e do próprio Deus.

Quando o aiatolá Ruhollah Khomeini entrou em cena, o Irã já estava em chamas. Reza Pahlavi havia perdido apoio de praticamente toda a sociedade iraniana — da intelectualidade, dos comerciantes, dos religiosos e mesmo daqueles que ainda acreditavam em uma monarquia. Para conter tanta insatisfação, Pahlavi ampliou ainda mais a política repressiva no país, aprisionando tudo e todos, inclusive os clérigos. A temida Savak, a polícia secreta criada por Pahlavi, agora controlava o que se falava, se ouvia, se pensava. Qualquer deslize: cadeia, tortura e, muitas vezes, morte.

Um aiatolá, dois discursos

Khomeini adotou dois tipos de discurso, para dois públicos. Para a população em geral, era um clérigo nacionalista, inimigo das potências ocidentais que dominavam o petróleo e das elites internas sustentadas por elas. Para os clérigos, como ele, defendia uma reinterpretação do islã xiita. Ele agora pregava, ainda que sem base factual nas escrituras sagradas do islamismo, que os líderes espirituais também deveriam ser os líderes políticos, jurídicos e econômicos de uma nação. Apesar de ser taxado simploriamente de fundamentalista, Khomeini assumiu o poder por meio de uma complexa combinação de nacionalismo, populismo político e radicalismo religioso. Por certo, ele não era a liderança sonhada por quase nenhum dos opositores da monarquia quando a revolução de 1979 eclodiu. Mas, sem alternativas viáveis, se tornou o líder inconteste após a queda do xá.

Khomeini restringiu os direitos das mulheres e adotou códigos de conduta estritos, como a exigência do uso do véu em público e a implementação de polícia de costumes religiosos. Curiosamente, foi sob o regime teocrático que o Irã viu uma ampliação importante das mulheres tanto no mercado de trabalho quanto na educação. Enquanto em 1977 a participação das mulheres nas universidades não passava de 3%, em 2015 elas representavam 67% do corpo discente na educação superior iraniana.

Principal apoiador do xá, os Estados Unidos passar a ser o Grande Inimigo. Em novembro de 1979, uma manifestação na frente da embaixada americana em Teerã terminou com o prédio invadido e diplomatas e funcionários tomados reféns. Nas semanas seguintes, alguns deles, principalmente mulheres e não-brancos, foram libertados, mas 52 pessoas foram mantidas em cativeiro até janeiro de 1981. A humilhação imposta ao governo americano foi apontada como um dos (muitos) motivos para a derrota do presidente Jimmy Carter para Ronald Reagan nas eleições de 1980.

Khomeini iniciou a teocracia autocrática iraniana sob profunda oposição da intelectualidade e dos trabalhadores urbanos, mais propensos a um regime que se aproximasse de uma república nacionalista. Consolidou seu poder com um regime tão repressivo quanto o de Reza Pahlavi e com a reação à invasão iraquiana patrocinada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Por oito anos, o país lutou uma guerra existencial contra o vizinho sunita, que deixou mais de 500 mil pessoas mortas — a maior parte delas, iranianas. Khomeini utilizou o conflito para unir o país e reforçar a ideia de que ele combatia, de fato, as potências ocidentais que sempre exploraram o Irã, agora com um novo componente: Israel.

Khomeini, ao assumir o poder, rompeu relações com Israel e afirmou não reconhecer o Estado judeu, prometendo eliminá-lo para que os palestinos fossem os governantes do território. Os dois países mantiveram relações frias na década seguinte e passaram a confrontar-se de forma aberta após a Guerra do Golfo de 1991. Apesar disso, só em 2024 atacaram-se mutuamente pela primeira vez. Indiretamente, no entanto, os dois países vêm se confrontando há décadas.

O Irã, por meio de alianças regionais, como a ditadura de Bashar al-Assad na Síria, o Hezbollah no Líbano, os Houthis xiitas no Iêmen e, também, com o Hamas. Muitos dos ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em Israel foram vistos como operações do Irã. Apesar das relações turbulentas com Israel, o Irã ainda abriga a maior comunidade judaica no Oriente Médio, com mais de 10 mil judeus persas que optaram por não deixar o país mesmo após a criação do Estado de Israel.

Nas últimas duas décadas, o Irã passa por momentos de mais abertura quando o regime se sente confortável, e mais repressão quando se vê ameaçado, como agora. No início dos anos 2000, o sucessor de Khomeini, o aiatolá Ali Hosseini Khamenei, retomou o programa nuclear iraniano. Apesar de repetir insistentemente que o país tem pretensões puramente civis, ao longo dos últimos anos passou a ampliar sua capacidade de enriquecer urânio a níveis de pureza próximos daqueles necessários para a construção de uma bomba atômica.

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