O STF não resolveu as redes
Tem certas coisas que são fáceis de imaginar. Se você é de esquerda, adorou o fato de que o Supremo Tribunal Federal enquadrou as redes sociais. Talvez até sonhe com inúmeros youtubbers e influenciadores de direita sendo proibidos de seguir se manifestando, calados, talvez um ou outro até sendo preso. Se você é de direita, está horrorizado com mais um episódio grotesco de censura generalizada pelo Supremo e, quem sabe, está tentando imaginar o que fará agora que o Brasil se tornou uma ditadura. Claro, eu sei que são caricaturas das duas posições. Mas tenho uma proposta para vocês. É a seguinte: talvez a gente não consiga chegar, neste momento, num acordo sobre a solução. Mas sabe uma coisa que pode ajudar muito na conversa? Se tivermos um acordo a respeito de qual é o problema.
A pergunta fundamental que precisa ser respondida é a seguinte: as redes sociais transformam de alguma forma as democracias? Eu acredito que sim. Mas transformam como?
Bem, vamos começar com como é que uma democracia funcionava antes das redes entrarem no jogo. A vida típica de um político, principalmente de um parlamentar, era dividida em duas fases. Em uma, a campanha, ele precisava se apresentar aos eleitores, convencê-los a votar, buscar mostrar sua visão de país, de estado, de cidade. A outra fase começava depois de eleito. O típico parlamentar chegava na Câmara, na Assembleia, com a missão de aprovar algumas das leis que havia prometido. E, para isso, precisava convencer outro público: seus pares, igualmente eleitos.
Democracias se sustentam na arte do convencimento. Você precisa persuadir um grupo de pessoas de que está certo. De um lado, precisa persuadir uma maioria da sociedade. Do outro, precisa persuadir uma maioria dos parlamentares. São parecidos, são interligados, mas não são a mesma coisa.
No mundo real, raramente alguém muda de ideia por conta de um único argumento. A arte de convencer exige um monte de coisa. Primeiro, ouvir. Por que ouvir? Só ouvindo o outro lado é que entendemos como aquela pessoa vê, em que sustenta sua visão. Se não ouvimos, como saberemos convencer do contrário?
Em segundo, é preciso seduzir. Eu sei, a gente costuma pensar nessa palavra, “seduzir”, como uma ligada à busca de amor e sexo. Mas seduzir é mais do que isso. Se você quer convencer alguém de um argumento, não escapa de ser simpático, atento. Para convencer alguém, é fundamental demonstrar abertura. Se você está fechado a tudo que estão dizendo do outro lado, acredite, a pessoa não vai se abrir para ouvir você. Então esse olho no olho, a capacidade de empatia, um sorriso discreto, tudo isso entra no jogo.
É por isso que político tira foto sorrindo. Está demonstrando abertura. É por isso que, quando vemos um político zangado, se está falando conosco, ele está zangado junto a nós, está se solidarizando com a nossa zanga, não está zangado contra a gente.
Alguém convence qualquer pessoa lacrando? Não. Alguém convence qualquer pessoa com arrogância? Não. Alguém convence olhando de cima pra baixo? Fazendo graça do interlocutor? Não, claro que não. Todo mundo sabe que não.
Aí tem um terceiro ponto nessa arte do convencimento. É paciência. Olha, ceder é difícil. Mudar de ideia é difícil. Ninguém muda de posição sem, antes, ir aos poucos se acostumando com a ideia da nova posição. Você ouve um argumento um dia, outro argumento umas semanas depois. Percebe que gente ao seu redor concorda com aquele lance. Vai aos pouquinhos achando ter a outra ideia menos esquisito, menos desconfortável. Percebe também seus pares cedendo bem lentamente. Aí, um dia, você percebe que mudou. Que você pensa diferentemente.
Políticos usam uma expressão. “Isso aí a gente resolve na política.” O que eles querem dizer com isso é bastante simples. Resolvem em salas fechadas, debatendo exaustivamente. Políticos profissionais, entre si, são uma gente muito, muito pragmática. Gente de esquerda e gente de direita senta junto, fala com uma franqueza que pode chocar os mais sensíveis, mas fala se olhando. Político profissional confia um na palavra do outro. Quer chegar a um acordo aqui? Quer meu voto nesse projeto? Vamos conversar sobre esse outro assunto.
Quando os temas são mais delicados, quando a divisão sobre um assunto é mais acentuada, convencer, conquistar um voto de adversário no parlamento, é muito mais difícil. E o nome disso é democracia. É assim que funciona. Ralando, trabalhando muito duro, pra convencer o outro lado. Por que convencer o outro lado? Ué, gente, os seus já estão convencidos. Se você está em minoria, ou convence mais gente ou não consegue aquela conquista.
De alguma forma, a gente esqueceu disso. Esquecemos que, numa democracia, precisamos convencer os outros o tempo todo. Se você tem uma causa muito sua, que lhe é muito importante, faz da missão da sua vida convencer mais gente. E falo isso com toda a clareza de que, no Brasil de hoje, como liberal progressista, estou em franca minoria. Mas tudo certo. Eu tenho uma causa. É convencer a maior quantidade possível de pessoas que democracias podem até ser lentas, mas elas funcionam como nenhum outro sistema para construir ambientes melhores para a maioria das pessoas.
O que tudo isso tem a ver com as redes sociais? Bem, vamos desenvolver. Mas começamos por aqui: vocês sabem como a gente conversa nas redes sociais, não sabem? Tem alguma chance de alguém ser convencido a mudar de opinião após um papo nas redes? Não, né?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Rapidinho, dois segundos doutro assunto antes de voltarmos. Nós não estamos conversando sobre Israel e Palestina. Nos dividimos em grupos, cada um do seu lado xingando o outro. Pois é. É sempre assim nas redes. Usamos palavras fortes, tratamos o lado do qual não gostamos como a pior gente que existe. Às vezes, fazemos parecer que este conflito nasceu no 7 de outubro de 2023. Ou em 1967. Ou, mesmo, em 1948. É muito mais antigo do que isso.
Estive por dez dias, em Israel, em fevereiro deste ano. Conversei com políticos árabes e judeus, com ativistas árabes e judeus, com gente nas ruas. Fui do norte ao sul do país. Ao voltar pro Brasil, mergulhei nos livros. O resultado deste trabalho ficou pronto agora. No próximo dia 10 de julho estreiam no streaming do Meio três episódios especiais do Ponto de Partida, a série. Está lá a história e também a política. No todo, no conjunto os três filmes são um clamor pela paz. Uma defesa da solução de dois estados, um para cada povo. Não há outra solução que não essa.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
O jogo nas redes funciona assim: lacração, lacração, lacração. Repórter falso tenta embaraçar político do outro lado. Humilhar o outro o quanto dê. Atacar, atacar muito. Se der para cancelar, ótimo. Se der para calar, melhor. Diga que o outro mente, diga que é fake news. Espalhe mentiras, espalhe fake news. Aí faz aquele corte matador, que tire do contexto, junte dois pedaços que não tinham a ver, para fazer parecer, para enganar, para distorcer.
As redes sociais não são assim porque nós somos assim. É, ninguém aqui é santo ou anjo, mas o problema é que, nas redes, o que faz sucesso é isso. E faz sucesso porque é esse tipo de conteúdo que o algoritmo bomba. Veja, o algoritmo não faz isso por mal. Ele é treinado com o objetivo de selecionar esses conteúdos. A razão é simples. O processo de convencimento é delicado e é lento. O objetivo das grandes redes sociais não é promover conversas espaçadas, pacientes, e com temperatura emocional baixa. O objetivo das empresas por trás das grandes redes é trazer muita gente, toda hora. Então você precisa girar o dial da emoção lá pra cima. Você não quer as pessoas curiosas, você não quer as pessoas reflexivas. Você as quer com raiva ou com paixão. Você as quer emocionalmente engajadas, não com aquela distância necessária para conseguir desligar um pouco suas barreiras internas e se por no outro lado. O que você deseja, comercialmente, é duas tribos em guerra o invés de uma ágora de seres pensantes.
Isto tem consequências. Uma delas, a principal, é que redes sociais viraram o principal instrumento de campanha eleitoral. O que quer dizer, também, que parlamentares estão em campanha permanente. Todo parlamentar se radicalizou um pouco. Porque todo eleitor se radicalizou. Todo político é cobrado por sua base a lacrar, a humilhar, a despejar os cachorros em cima dos adversários. Mas, principalmente, políticos são cobrados a não ceder nos valores de sua tribo.
Quando nenhum político cede, nenhum acordo é feito. Por que o Congresso não encara mais quase nenhum assunto polêmico? Por que Cortes constitucionais estão tomando decisões que Parlamentos deveriam tomar em todo o mundo? Porque Parlamentos estão imobilizados. Imobilizados por conta desse jogo.
E o problema não está nos políticos. Eu sei, eu sei. É ótimo e muito gostoso dizer que a culpa é dos políticos. Só que o problema está em nós. Eles estão assim porque nós, como sociedade, queremos mais lacres e menos acordos. Queremos mais arrogância contra o outro time do que simpatia e conversas e persuasão. Nós não estamos mais dispostos a ouvir, a ter empatia, a reconhecer a humanidade de quem discorda de nós. Nós estamos nos fechando e dividindo países.
Esse problema não é da direita. Esse problema não é da esquerda. Os algoritmos das redes sociais nos capturaram numa armadilha que nos impede de conversar. Sabe, fake news e cancelamentos são sintoma do problema. O problema é que passamos a considerar aqueles de quem discordamos seres humanos de má qualidade. Achamos que têm problema de caráter, achamos que são burros, achamos que representam o mal.
Nós paramos de achar normal discordância. Nos tornamos intolerantes. O problema das redes sociais é esse. A decisão do Supremo regulamenta isso? Não. Resolve o problema? Não.
Mas o problema existe, tá?