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Uma escolha muito difícil

Em 2018, talvez um dos principais ícones da revolta na esquerda com a eleição de Jair Bolsonaro tenha sido um editorial, no Estadão, cujo título era “Uma escolha muito difícil”. Deixa eu, de saída, dizer uma coisa aqui: não vejo qualquer dificuldade de escolher quem tem caráter entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Haddad é um camarada de quem posso discordar em vários pontos políticos mas é inteligente e é íntegro, que é exatamente o que esperamos de homens públicos. Jair Bolsonaro não é inteligente, não é íntegro, é dado à violência, à irracionalidade, não tem qualquer método para tomada de decisão, sequer entende que governantes deveriam ter métodos para tomar decisão. É um sujeito que elogiava a ditadura. Que homenageava torturadores e milicianos. Pior do que isso, queria muito ser ditador. A gente escapou.

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Mas deixa eu voltar ao editorial do Estadão. Diferentemente de quase toda esquerda, eu entendi perfeitamente o argumento construído ali. Por uma razão muito simples: trabalho duro pra não viver na bolha, pra ouvir atento o que dizem boa parte das pessoas. O que sentem. Quais seus valores. E também viajo muito pelo Brasil. No ano passado, passei por estados em todas as regiões. Este ano só não passei pelo Norte. Ainda. E isso é uma lição de humildade. Raramente você se depara com alguém que parece contigo. Em tempos de polarização afetiva, quem não concorda é inimigo. A maior parte das pessoas raramente sai da própria cidade, às vezes sequer sai de uma região na própria cidade. E isso é o normal. A maior parte das pessoas costuma conviver com as mesmas pessoas porque a maior parte dos trabalhos são assim. Então tem os seus amigos, o pessoal do clube, o pessoal da igreja, o pessoal da firma. O olhar pro mundo vem das redes sociais. E as redes sociais enganam demais. Nas redes sociais a gente encontra, principalmente, dois tipos de pessoa. Aquele tipo que é muito parecido com a gente. E aquele tipo que é muito demais a cara de quem não suportamos.

Pois é. As redes são uma ilusão. No mundo de verdade, as pessoas costumam ser pacatas. Têm opiniões de todo tipo, da direita à esquerda, e dão suas opiniões sem gritar. No mundo de verdade, quando há discordância, quase nunca dá em briga. Sabe, no Brasil, as pessoas ouvem umas às outras. Podem não se convencer. Mas ouvem.

A maioria das pessoas de esquerda, quando se referem ao editorial do Estadão, o fazem com desprezo. Com horror. E, no entanto, aquele editorial estava refletindo a maneira como um conjunto importante de brasileiros se sentia. Não eram os brasileiros bolsonaristas, não. Eram os que realmente não queriam votar no PT. O que o Estadão estava dizendo ali, e muita gente de esquerda não conseguiu prestar atenção para entender, é que para pessoas conservadoras, votar em alguém de esquerda é muito, muito difícil. E, para um Brasil que havia sido exposto ao brutal volume de corrupção dos governos Lula, votar em um candidato do PT era uma hipótese intolerável. Ainda assim, nada disso fazia de um voto em Jair Bolsonaro fácil.

É, eu sei. Já estou antevendo os comentários aí embaixo. Pedro normalizando Tarcísio. Todo liberal está na antessala do fascismo. Tá bom, vamos nessa. Tudo, por enquanto, sugere que teremos uma disputa entre Lula e Tarcísio no ano que vem. Um pedaço imenso do eleitorado já está decidido em votar no Lula. Outro pedaço imenso votará em Tarcísio. E tem uma nesga de eleitorado, uma parcela bastante pequena, que definirá esta eleição. É a turma que pode votar tanto num, quanto no outro.

Sabe qual é o problema do argumento “estão normalizando o Tarcísio”? O problema do “é claro que Tarcísio é igual a Bolsonaro”? O problema é que ele não convence ninguém novo. Claro, pessoas de esquerda não querem, em hipótese alguma, a eleição de um candidato de direita. Só que Tarcísio de Freitas, ou qualquer outro dos candidatos que estão se apresentando à direita, não está fazendo homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra, não está dizendo que tal mulher não será estuprada porque é feia, não está dando medalha para miliciano nem se queixando de que a ditadura matou pouco. Nenhum deles está pedindo um AI-5 ou sugerindo levar os vermelhos pra ponta da praia. Aí, nessas horas, qual o argumento típico da esquerda das redes sociais? Se senta com fascista, fascista é. É o fascismo que come com talheres.

Nos últimos anos, a esquerda perdeu a capacidade de construir argumentos que não sejam para quem não é de esquerda. Em parte, a culpa é das redes, tá? O incentivo, nas redes sociais, é você buscar acolhimento entre os seus e bater no outro lado. O incentivo, nas redes, é enxergar um mundo no qual só existe preto e branco. Estivemos muito divididos. As pesquisas estão indicando que há mais nuances presentes no jogo. Nesta eleição que virá no ano que vem, xingar as pessoas que estão em dúvida não vai ser boa estratégia.

Então, para esquerda ou para direita, o que é boa estratégia?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Agora no dia 2 de setembro, estreia no streaming do Meio o segundo episódio de nossa série sobre democracia. Apresentado pela Flávia Tavares, “O Julgamento do Século” mostra tudo que você precisa saber sobre como foi planejado o golpe de Estado. Entrevistamos generais que estavam no alto comando, ministros do Superior Tribunal Militar, entrevistamos juristas, gente que estava organizando a resistência civil à tentativa de golpe. Dirigido por Ricardo Rangel, com roteiro de Sérgio Rodrigues, esse é o doc que você precisa assistir para acompanhar o julgamento de Jair Bolsonaro e dos primeiros generais réus por tentativa de golpe de Estado na história do Brasil. 2 de setembro. É só assinar o Meio Premium.

E este? Este é o Ponto de Partida.

Sabe qual é a armadilha das redes, das caixas de comentário? É a sensação gostosa, de quentinho, de estar entre os seus. Alguém aí embaixo vai dizer o tal “Pedro está doido pra votar em Tarcísio”. Sabem em quem vou votar? Não, não sabem. Na verdade, na maior parte das eleições essa turma erra muito feio em quem voto. Mas não importa, porque não é disso que trata o jogo das redes. Porque, logo embaixo deste comentário estará outro dizendo “isso aí”. Vai ter likes. É um olhando pro outro com um olhar lânguido de reconhecimento, de que somos da mesma turma, que nos indignamos com as mesmas coisas.

Os afetos essenciais das redes são a indignação e pertencimento, simultaneamente. O sentir-se acolhido na tribo perante o inimigo comum. Mas qual é o objetivo aqui? Se o jogo é só fazer a dança do acasalamento, jogo jogado. Xinga o sujeito de quem discorda, abre o rabo de pavão e faz a dança ritual. Nas redes, somos assim. Pré-modernos.

Esse problema não é só da esquerda nas redes, não, tá? Passei essa semana sendo xingado pelos bolsonaristas no Twitter. Tem centenas de pessoas mostrando os dentes, babando, gente famosa e gente desconhecida, todo mundo também se congratulando porque eles sabem que Jair Bolsonaro é muito forte e quem sou eu para dizer que ele está em franco declínio? De novo, tudo certo.

E a gente não escapa da verdade essencial desta eleição: não terá Bolsonaro. Vai ser Lula contra alguém de direita que fará uma dança difícil. Acenar para Bolsonaro e se mostrar mais moderado ao mesmo tempo. Vai convencer? Não sei. É uma arte. É verdade que Lula melhorou seus números, mas segue sendo o presidente petista mais impopular que já disputou uma reeleição. Piores do que os números de Lula, só Dilma meses antes do impeachment. Eleição difícil para os dois, possivelmente decidida como a de 2022. Por um, dois porcento.

Qual o meu ponto aqui? Gente, é óbvio: xingar quem está em dúvida não é uma boa estratégia para capturar votos. Ficar indignado porque tem um grupo de brasileiros que acha a escolha muito difícil é o caminho errado para vencer esta eleição. A economia está ruim. Quem diz isso são os brasileiros mais pobres. Tem muito emprego? Tem. São empregos piores do que eram. A inflação cedeu? Sim, cedeu, e possivelmente vai ceder mais no ano que vem. A segurança está muito ruim, principalmente para os brasileiros mais pobres. Discurso de segurança mais duro vai fazer sucesso e o histórico da esquerda é muito ruim nessa área.

Olha, Tarcísio está ajudando Lula, tá? A cada bonequinho de Bolsonaro que ele levanta, mais os eleitores que não querem nem um, nem outro, se afastam. Ratinho Júnior, prestem atenção nas redes dele, está se posicionando. E fala cada vez menos no ex-presidente.

Numa democracia, ganha quem convence. É hora de quem quer ganhar esta eleição começar a trabalhar em dois projetos. O primeiro, entender o perfil de quem está indeciso. O segundo, mapear o que mobiliza as preocupações destas pessoas e construir argumentos que as convençam de que o seu lado é melhor do que o outro lado. Persuasão, a grande arte das democracias.

De alguma forma, a gente confundiu o que democracia era nos últimos anos. Hora de voltar à base. Ao invés de xingar o outro lado, comece a convencer. Para convencer, é preciso ouvir com sensibilidade os incômodos do outro. Não fazer pouco deles. É hora de ressignificar o “uma escolha muito difícil”, levar a sério, e fazer o trabalho difícil. Vale pra esquerda, vale pra direita. A corrida começou.

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