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Lula x Trump na ONU

O Brasil tem a honra — e também a responsabilidade — de ser sempre o primeiro a falar na Assembleia Geral da ONU. Isso acontece de maneira constante desde 1955. E não é porque somos a maior potência do planeta, não é porque somos os mais ricos ou porque somos tropicais, abençoados por Deus e bonitos por natureza, o que é verdade. É porque lá atrás, quando se estabeleceu a ordem de oradores, ninguém queria abrir os trabalhos.

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Abrir a Assembleia significa se expor primeiro, sem saber o tom que os outros vão usar. Em anos de Guerra Fria, isso era muito arriscado. Foi então que o nosso chanceler Oswaldo Aranha se ofereceu para falar pelo Brasil. Aranha, aliás, presidiu a primeira sessão especial da Assembleia, a que discutiu a criação do Estado de Israel e a partilha da Palestina, em 1947, e saiu dela consagrado como um dos grandes articuladores da diplomacia mundial do pós-guerra. A diplomacia brasileira, inclusive, é toda desenhada a partir disso.

O gesto se transformou em tradição: de lá para cá, todo setembro, antes mesmo de ouvir Estados Unidos, China ou Rússia, o mundo ouve o Brasil. É simbólico, é um enorme prestígio. Antes de qualquer superpotência, é a voz brasileira que abre os trabalhos do maior palco internacional da política.

Da mesma maneira que o Brasil carrega essa honra diplomática, neste ano mais uma vez a cargo do presidente Lula, os Estados Unidos, como anfitriões, são sempre a segunda nação a discursar. E aí Donald Trump fez questão de pisotear tudo o que se entende por diplomacia.

Subiu à tribuna da ONU com um roteiro, mas, diante de uma suposta falha no teleprompter, que fez questão de apontar muitas vezes com uma tremenda grosseria, decidiu improvisar, num espetáculo de autopromoção e ataques. E, já no fim desse improviso, resolveu falar do Brasil. Disse o seguinte sobre Lula:

“Eu estava entrando e o líder do Brasil estava saindo. Nós nos vimos, eu o vi, ele me viu, e nós nos abraçamos. Tivemos uma boa conversa e combinamos de nos encontrar na próxima semana. Ele pareceu um homem muito agradável. Na verdade, ele gostou de mim. A gente teve uma química excelente.”

Na plateia, Lula pareceu surpreso com o anúncio, mas logo esboçou um sorriso. Quem sabe ser diplomático não parte para o confronto em momentos em que um outro país abre suas portas para o diálogo, por mais condescendente e cínico que seja esse convite.

O simples fato de Trump ter falado de improviso, sequestrando a sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU para dizer o que lhe viesse à cabeça, já é por si só um desrespeito diplomático absurdo.

Mas Trump foi muito além. Atacou sem qualquer misericórdia a própria ONU. Tirou sarro de uma escada rolante que não funcionava ou de um teleprompter que não funcionou da maneira que ele desejava e, por cima disso, menosprezou o órgão e tudo que ele já produziu.

Trump transformou o espaço mais simbólico do calendário internacional em um palanque, constrangendo visivelmente os demais chefes de Estado que aguardavam sua vez de falar. Foi a negação em carne e osso da diplomacia multilateral.

E, no que se refere à relação com o Brasil, ofereceu um abraço de conveniência e hipocrisia antes de reiterar as ameaças com tarifas duras e as acusações de perseguição política à direita.

Trump se gabou de ter encerrado sozinho, sem a ajuda da ONU, sete guerras — o que é altamente questionável. Mentiu que não liga pra prêmios enquanto praticamente implorava por um Nobel da Paz. E, ao mesmo tempo, fomentava a discórdia. Disse que a ONU trabalha contra o Ocidente, que ameaça destruir os Estados Unidos e as fronteiras dos países desenvolvidos.

O mal-estar era evidente entre os outros líderes: o chefe de Estado de uma nação poderosíssima, que deveria compartilhar sua visão sobre os desafios mundiais, preferiu exibir ressentimentos pessoais e slogans negacionistas, especialmente contra as mudanças climáticas e as soluções sustentáveis de energia e contra vacinas.

Nisso, cá entre nós, o contraponto com o discurso de Lula foi gritante. Muito do que o presidente brasileiro falou era esperado: a defesa da soberania brasileira diante das tarifas injustificadas dos Estados Unidos e a defesa do Poder Judiciário e sua autonomia, por exemplo. Mas Lula também fez questão de falar de desigualdade, sua pauta histórica na ONU, e das guerras indefensáveis, notadamente do que está acontecendo em Gaza. E, por isso, foi aplaudido cinco vezes.

O contraste entre os dois discursos materializa a diferença entre democratas e autocratas, entre quem acredita no multilateralismo e o promove e quem quer destruir os órgãos de consenso e de diálogo. Quer entender isso melhor? Fica aqui comigo, então.

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Em vários formatos, de variadas maneiras, com conteúdos mais rápidos ou de mais fôlego, a gente busca fazer um jornalismo que vai além das chamadas espetaculosas, oferecendo contexto, análise e opinião. Você não precisa concordar com elas. A ideia é que, ao entrar em contato com diferentes visões de mundo, você esteja mais bem equipado para formar a sua própria. É isso que o jornalismo moderno tem de se propor a fazer. Sem militância, mas combatendo a desinformação e sempre defendendo a democracia como valor fundamental. E, olha, os retornos que a gente recebe de quem assina o Meio e recebe todo nosso material é o melhor possível nesse sentido, sabia? As pessoas percebem esse nosso esforço. Não é que a gente se furte de tomar posição quando isso é necessário. É só que a gente deixa muito claro o que é informação, o que é opinião e como uma retroalimenta a outra. Assine o Meio. São só 15 reais por mês e faz toda diferença pra gente.

Vamos começar pela história. O que é mesmo a ONU, essa instituição que chega agora aos 80 anos? Ela foi criada em 1945, na ressaca da Segunda Guerra, para, basicamente, evitar que a humanidade repetisse o pesadelo do nazismo e do fascismo.

A ideia era simples e revolucionária: criar um espaço onde as nações, grandes e pequenas, pudessem dialogar em pé de igualdade, estabelecer regras coletivas, negociar antes de bombardear. Foi ali também que se elaborou e consolidou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assegurando, entre outras coisas, que absolutamente todos têm direito à dignidade humana.

E em dignidade humana cabe um monte de conceito, desses que atendem do motoboy ao CEO, do sudanês ao norueguês. É o que nos torna todos parte de um mesmo planeta, de uma mesma humanidade.

Claro, a ONU nunca foi perfeita. O Conselho de Segurança, com poder de veto das grandes potências, vive travado. Muitas vezes as resoluções não são cumpridas. Mas foi a ONU que esteve por trás das maiores campanhas de vacinação da história, que ajudou a desmantelar o apartheid, que coordenou operações de paz em dezenas de países, que tenta dar alguma ordem ao caos das migrações, que envia comida e água onde governos falham.

E é justamente por isso que autocratas e líderes nacionalistas detestam a ONU. Porque ela limita a força bruta. Porque ela dá voz a países que, sozinhos, jamais teriam como contestar um gigante.

Donald Trump, que volta ao poder com seu bordão de “America First”, é hoje o principal rosto dessa ofensiva. Desde janeiro, sua administração suspendeu programas inteiros de assistência externa, cortou mais de 90% do financiamento ao Programa Mundial de Alimentos, praticamente zerou os recursos para o UNICEF — eram 142 milhões de dólares que garantiam vacinas, comida e escolas para milhões de crianças — e anunciou a retirada dos EUA de conselhos e organismos como o de Direitos Humanos. Fez isso em nome de uma narrativa: a de que os Estados Unidos não podem mais “pagar a conta do mundo”.

Só que cortar esses fundos não é apenas uma decisão contábil. Significa que crianças na África e no Oriente Médio não recebem vacinas. Que campos de refugiados têm menos comida. Que operações de paz ficam sem pessoal. É gente de verdade que paga essa conta.

Ao mesmo tempo, o recado simbólico é devastador: a maior potência do planeta dizendo que não precisa de regras, que prefere jogar sozinha. A história mostra o risco: foi exatamente o colapso do multilateralismo, nos anos 30, que abriu espaço para a Segunda Guerra. Agora, em pleno aniversário de 80 anos da ONU, o mundo parece de novo diante da escolha: cooperação ou isolamento, instituições ou improviso, democracia ou autoritarismo.

O discurso de Trump foi sobre ele mesmo e sobre sua gestão, uma lista de promessas para “tornar os Estados Unidos o maior, o melhor, o mais importante, o mais poderoso”. De um lado, a visão de que a sobrevivência do planeta depende do esforço conjunto; de outro, a recusa em enxergar além das próprias fronteiras, uma lógica que mina o multilateralismo e enfraquece a própria razão de ser da ONU.

E, para completar, Trump tratou a tribuna da ONU como se fosse um balcão de negócios mal resolvidos. Lembrou, com ares de vendedor frustrado, que anos atrás ofereceu para reformar o prédio da instituição — com mármore, só o que há de melhor — e que o negócio não vingou. Até hoje parece não ter superado a perda da obra.

É esse o tamanho da visão de mundo de Trump: reduzir a maior experiência de cooperação internacional da história a um mau negócio imobiliário e a um equipamento com defeito.

Já Lula, no mesmo palco e ainda antes de Trump, fez um discurso duro, ao mesmo tempo global e voltado a seu público doméstico, como é comum a vários líderes. Ele abriu lembrando que a ONU nasceu como “a expressão mais elevada da aspiração pela paz e pela prosperidade”. Mas alertou: esses ideais estão ameaçados como nunca.

O multilateralismo está em xeque, a autoridade da ONU sofre um abalo histórico, e isso se traduz no fortalecimento de uma desordem internacional marcada por sanções arbitrárias, intervenções unilaterais e concessões à política do poder. Para Lula, enfraquecer a ONU é enfraquecer também a democracia.

O presidente brasileiro denunciou forças antidemocráticas que tentam subjugar instituições, sufocar liberdades, cultuar a violência e transformar a mentira em método político. E disse: o Brasil resistiu. Lembrou que, poucos dias atrás, pela primeira vez em mais de cinco séculos de história, um ex-presidente da República foi condenado por atentar contra o Estado Democrático de Direito. E destacou: esse julgamento mostrou ao mundo que “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”.

A partir daí, Lula expandiu sua definição de democracia: não apenas o ritual das eleições, mas também a redução das desigualdades, a garantia dos direitos elementares — alimentação, trabalho, saúde, moradia, educação.

E mais. Condenou o massacre em Gaza em termos diretos e disse que, sob toneladas de escombros, estão enterradas, além de mulheres e crianças inocentes, o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. É uma frase muito forte, ousada, mas ela veio endossada pelo reconhecimento do Estado palestino por mais de 150 países na véspera, na mesma ONU, e que não evoluiu pelo veto solitário que bloqueia a solução. Adivinha de quem? Dos Estados Unidos.

Há muitas maneiras de se portar com altivez nas relações internacionais e elas não passam necessariamente por ser de esquerda ou de direita. Agora, é garantido que extremistas não respeitam órgãos multilaterais. É certeza que autocratas não dialogam com outros líderes e se retroalimentam de guerras e enfrentamentos.

Ser autoritário num mundo globalizado não é só botar tropa nas ruas contra seu próprio povo. É minar qualquer chance de visão comum de mundo. De busca conjunta por alternativas para problemas que afetam a todos nós.

O que vimos no palco da ONU hoje não foi só um desfile protocolar de discursos. É mais um capítulo da disputa que define nosso tempo: entre cooperação e isolamento, entre democracia e autoritarismo. A ONU chega aos 80 anos sob ataque — e caberá a líderes do mundo democrático mostrar se ainda há disposição de defendê-la ou se vamos ver, mais uma vez, o mundo dar os passos errados da história.

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