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A paz de Trump é possível?

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Tem um paradoxo aí, né? Donald Trump é iliberal. O mais autoritário presidente americano em mais de um século. Alguém que tensiona a democracia, que desmonta o sistema global baseado em multilateralismo. E não vamos ser bobos. Se a democracia americana quebra, ao longo do mandato dele, outras democracias, incluindo a nossa, estarão em risco.

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E, no entanto, Trump trouxe a paz a Gaza. Deixa eu reiterar esse ponto, aqui. Falar com clareza. Trump trouxe a paz a Gaza. No sábado, no domingo, hoje e amanhã não cairão bombas na cabeça dos palestinos em Gaza. Vocês repararam que paramos de ouvir falar em fome no norte de Gaza? Donald Trump tem muito a ver com isso. Comida voltou a chegar.

Essa madrugada, uma amiga me mandou a foto de Dani Miran abraçado a seu filho, Omri. Eu conheci Dani em fevereiro. Velhinho, já. Por dois anos dedicou sua vida a conversar com quem estivesse disposto a ouvir sobre Omri, que era um dos israelenses sequestrados. Eu, e um grupo de jornalistas veteranos, os ouvimos por quarenta minutos. A quantidade de dor era um troço atordoante. Todos choramos. Ontem chorei ao ver os dois reunidos.

Entre ontem e hoje chegaram também a Gaza ônibus e mais ônibus de palestinos que estavam presos em Israel. Hoje é um dia de felicidade. Caminhões e tratores já chegaram à Cidade de Gaza para começar a limpar os escombros. Tratores voltaram às fazendas israelenses na fronteira, pois o plantio vai recomeçar. O que vem pro futuro? A gente não sabe. Não vai ser simples, não vai ser fácil.

Mas olha o que aconteceu hoje, em Tel Aviv e depois no Cairo. Em Tel Aviv, Donald Trump discursou no Knesset, com a oposição a Netanyahu aplaudindo. E é um bocado importante prestar atenção no discurso de Trump, tá? Porque a coisa para a qual ele está acenando é a independência da Palestina. Não, ele não falou com essas palavras. Mas é para isso que ele está acenando. Netanyahu não foi para o Cairo, e isso diz muito. Mas estava lá todo o resto de quem é relevante nesse debate. Estavam o presidente francês, Emmanuel Macron, o premiê britânico Keir Starmer, a italiana Giorgia Meloni, o rei de fato saudita, Mohammed bin Salman, o presidente turco, Recep Erdo?an, o presidente egípcio, anfitrião, Abdel el-Sisi e, claro, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. O mundo foi ao Cairo cercar Donald Trump porque o presidente americano fez uma coisa importante. Imensamente importante. Uma coisa muito difícil.

Agora, vem cá. Nos últimos dois anos vimos, também, inúmeras passeatas, protestos, em que muita gente de esquerda gritava por paz. A paz veio. E ninguém está celebrando. Todo mundo olhando pro lado. Fingindo que nada está acontecendo. Vem cá, os protestos não eram pelo fim da morte dos palestinos? Os protestos não eram para que se abrisse um caminho para a criação de uma Palestina livre e independente? Ou era por outra coisa?

E, se vem via Donald Trump, o que isso quer dizer para nós? Como lemos isso tudo?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Gente, este é um tema que me mobiliza pessoalmente. Escrevo como jornalista sobre Israel e Palestina por baixo há 25 anos. Acompanho de perto essa longa história desde o momento, em meados da adolescência, quando política começou a ser claramente importante para mim. Lembro do dia do assassinato de Yitzhak Rabin como se fosse hoje. Da tristeza, do luto. Torço pela concretização do sonho dos dois Estados, um para cada um dos dois povos da Cananéia, desde sempre. No primeiro semestre, lançamos, no streaming do Meio, três episódios do Ponto de Partida especial sobre este tema. Vou lá para trás da história. Quem são os judeus? Quem são os palestinos? Qual a ligação de cada um deles com aquela terra? Como chegamos até aqui? É um mergulho na história intercalado com minha viagem por Israel, onde conversei com gente nos dois lados do conflito para costurar esses três filmes. Se você se interessa por compreender como chegamos até aqui, está lá. Assine o Meio Premium. É barato e tem muito material em vídeo para ajudar a compreender o mundo.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Vamos começar pelo problema. Como é o método liberal de costurar um acordo de paz. Como foi feito o Acordo de Oslo, por exemplo? Você chama as duas partes à mesa. Oslo, que deu o pontapé inicial à chance de paz no início da década de 1990, foi feito no auge da década liberal. E a lógica é chamar os dois atores em conflito à mesa. Então tinha uma delegação de negociadores palestinos representando o Fatah, de Yasser Arafat, outra de israelenses. Com mediadores noruegueses experientes de um lado e do outro e o governo americano, à distância, se internando do que ia acontecendo.

Não é simples, tá? Porque os negociadores, a toda hora, chegavam a um impasse, e aí precisavam ligar pra Cisjordânia, ligar pra Tel Aviv, e perguntar se podiam. Aí parava. Aí esperavam resposta. Dias, semanas. Até que se costurou. Até que chegamos ao ponto em que Arafat e Rabin se encontraram para apertar a mão um do outro, com Bill Clinton entre eles, nos jardins da Casa Branca.

Qual o problema de agora? Bem, nem o Hamas, nem o governo Netanyahu, querem paz. O povo de Gaza queria a paz desesperadamente. O povo de Israel queria a paz. O Hamas e o governo israelense? Nada. Para o Hamas, morrer gente não é problema. Tudo mártir em nome de Alá, a única coisa importante é que Israel deixe de existir, não importa o custo. Para Benyamin Netanyahu o problema é manter-se no poder e os partidecos extremistas que o mantém no poder querem anexar Gaza para erguer a Grande Israel. Mínimos em termos de representatividade, mas com o poder imenso de manter Netanyahu no poder. E Bibi? Bem, Bibi, quando deixar o cargo, vai ser julgado por corrupção e provavelmente preso. Então vamos à guerra.

O que Donald Trump fez? Impôs. Deixou que Netanhyahu declarasse vitória, só isso. Ignorou o Hamas e deu pouca atenção à Autoridade Palestina. Negociou com os países árabes. Vejam, esse plano de paz, ele não existe. Mas, neste momento, a Palestina só não existe porque os Estados Unidos não querem. Tudo quanto é nação com poder no mundo, fora dos americanos, já reconheceu a Palestina independente. No momento em que o governo Trump retirar o veto no Conselho de Segurança da ONU, acabou. Palestina livre, na Cisjordânia e em Gaza.

Se tudo der certo, uma joint venture será organizada entre Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar para reerguer Gaza. Mas vai depender de Trump. Eles não farão nada sem ter a garantia de que tudo não será destruído depois, em alguma nova guerra, daqui a dez ou quinze anos. O poder de Trump é que tudo depende dele. E ele é inconsequente, e ele é surpreendente. Se acorda bem-humorado ou mal-humorado, enfia uma ideia na cabeça, vai lá, faz.

Este acordo de paz está completamente fora dos manuais. Foi imposto a Israel, o Hamas não teve voz. Ouviu de Trump, ouviu dos árabes, está tão fraco que não teve escolha. Como Netanyahu não é bem-vindo no Egito, a paz foi assinada sem que Israel ou o governo em frangalhos de Gaza estivessem presentes. Sim, estamos falando de uma paz imposta.

Agora, e o futuro? O último presidente americano que se dedicou realmente a fazer a paz ali foi Bill Clinton. Ele tentou muito. Não teve tempo e defendia negociação. Donald Trump tem mais três anos e tanto e, por pura vaidade, porque quer competir com Barack Obama, deseja um Nobel da Paz.

Vem cá: importa a razão? Eu não sei responder com clareza a esta pergunta. Esta madrugada, Dani Miran pôde enfim abraçar seu filho. Mil e setecentos palestinos que estavam presos voltaram para Gaza. O lugar está completamente destruído, mas bombas não caem mais. E se a paz no Oriente Médio, e se a Palestina independente, vierem porque chegamos a um ponto em que ela foi simplesmente imposta pelo mais autoritário presidente americano que, por vaidade, quer um Prêmio Nobel?Importa?

Vejam, nada está resolvido. Esta guerra é o pior, o mais terrível episódio deste conflito desde 1948. Isso vai deixar ódio, um ódio profundo e encrustado. Então pode ser que o futuro seja de mais ataques terroristas, de algo no estilo Hamas piorado surgindo. Ou talvez, sabe, talvez não. De repente o resultado é cansaço de lutar. Talvez, quem sabe, talvez do pior do pior, do pior ataque que os palestinos já fizeram contra Israel, do pior ataque que os israelenses fizeram contra a Palestina, talvez dali venha cansaço. Exaustão de tanta morte. De tanto desespero. De tanta tristeza.

Um acordo de paz exige, no fim, que a extrema direita israelense deixe o governo. Vai acontecer no ano que vem, todas as pesquisas o dizem. Exige que os países árabes reconheçam Israel. Há disposição para isso. Exige que o Hamas seja desarmado, e os árabes topam isso, e que o país Palestina, por tempo, não tenha exércitos. A Autoridade Palestina já topou. Exige mais, que Israel reconheça a Palestina. Sem apoio americano, Israel não terá como recusar. Então, olha, pode ter um caminho. O resto? O resto é combinar qual é o mapa. Essa é a parte fácil.

Às vezes, pode ser que a paz saia do pior que nós humanos somos capazes. Quem sabe? Eu tenho esperança.

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