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A esquerda é de elite

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Tem um corte de vídeo que que nós publicamos, essa semana, que trouxe no Instagram um conjunto muito rico de comentários. Quase todo mundo batendo em mim, tá? Mas ali tinha uma crítica consistente ao que falei no corte que me ajuda a falar melhor, mais objetivamente, do que considero o principal problema hoje na esquerda brasileira. É a perda de compreensão do que é o Brasil.

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O que a maioria dos comentários dizia era o seguinte: “O Pedro não entende o que é elite.” Gente, super-justo. Quando a gente usa um conceito numa análise, precisamos ter um acordo a respeito do que o conceito quer dizer. Se estamos nos referindo a coisas diferentes com a mesma palavra, a gente não vai se entender. A pesquisa feita pela ONG More in Common mostra o seguinte: se você divide a sociedade brasileira em grupos diferentes separando cada conjunto por seus valores e pelo nível de dedicação à política, descobre que o núcleo mais politicamente engajado da esquerda brasileira é também o conjunto mais rico e mais bem educado dos brasileiros.

Eu chamei isso de elite. Do que muitos dos que assistiram ao vídeo reclamaram? Ganha mais de dez mil reais por mês e tem curso superior é elite? Ora, não é. Elite, elite mesmo, são os bilionários. Outro ponto que destacaram: essas pessoas, os muito, muito ricos, conseguem pressionar o Congresso, conseguem pressionar o governo, de um jeito que o militante de esquerda na classe média não tem como conseguir. Outro comentário importante e que apareceu muito: elite é o topo do 1%.

Vamos lá. Tem uns pontos nos quais essas críticas têm alguma razão. Mas, em muitos deles, o que acontece é outra coisa muito curiosa. Mesmo quem fala muito na desigualdade brasileira não compreende a desigualdade brasileira. Gente, eu pago aluguel e pago escola particular pra três filhos. Isso quer dizer que tenho de ralar pra cacete pra fazer a conta fechar. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, quase 70% das pessoas que ganham mais de 10 salários mínimos estão endividadas no Brasil. Isso dá uma renda mensal de uns 15 mil reais. Quase 70%. Não dá pra se sentir elite, né? Como assim elite? Elite é a turma que tem iate e jatinho. Elite são os 1%.

Vamos tentar definir o que essas palavras querem dizer? Vou propor uma definição. Vocês não precisam concordar, porque o menos importante são as palavras que usamos. O mais importante não é o nome que estou dando para cada grupo. O importante é como dividimos a sociedade para compreendê-la politicamente.

Então o primeiro grupo é formado por aqueles brasileiros que ganham tão pouco que não dá pra ter certeza se vai ter comida todo dia e um teto em cima da cabeça. No Brasil, de acordo com o IBGE, as famílias que vivem em insegurança alimentar recebem menos do que 700 reais por mês per capita. Isso aí é ser muito pobre. Vamos chamar assim. De muito pobre. O mais básico não está garantido. Se você chega a 2 mil reais por mês, isso é por pessoa, tá?, dá pra comer e dá pra morar, mas você segue em risco. Vai ter momentos de apuro, de sufoco. Você é pobre. Passou da renda per capita de 2 mil, a sobrevivência não está mais em risco. Você está na classe média baixa. Aí vem outro corte: 5 mil por mês. Renda individual sempre. Você está na classe média. Precisa juntar dinheiro para fazer compras maiores, mas consegue. Sim, brasileiros conseguem.

Vamos rever esses números? Até 600 por mês, muito pobre. Entre 600 e 2000, pobre. Entre 2000 e 5000, classe média baixa. A partir de 5000 por mês, pelo menos você está na classe média. Agora, vem cá, quando a gente olha pra sociedade brasileira, como isso se organiza?

40% dos brasileiros recebem até 600 reais por mês. IBGE. PNAD Contínua. Isso aí. 40%. Não quer dizer que estejam passando fome. Mas o risco da fome é uma preocupação que está lá. Não vai embora. Outros 20% estão entre os 600 e os 2000. 60% dos brasileiros são pobres.

Eu estou forçando a barra aqui um pouco, tá? Porque a coisa é mais complexa. Numa família de três, pai, mãe, um filho criança, em que cada um ganhe dois e quinhentos, a renda per capita vai estar aí nesses 2000 mas a vida é menos insegura. Se você mora em São Paulo, Rio de Janeiro, ou se mora na Zona Rural, a mesma renda dá poder aquisitivo muito diferente. Então não é verdade que 60% dos brasileiros sejam pobres, mas para simplificar, não é também absurdo classificar assim.

E essa faixa de classe média baixa, hein? Entre 2000 e 5000 reais por mês? Um quarto dos brasileiros. 25%. É isso aí. Já chegamos à renda de 85% dos brasileiros. Então isso quer dizer que se você ganha mais de 5 paus por mês você é classe média? Que absurdo! Onde já se viu! Está errado. Olha, se você passou dos cinco mil, já está nos 15% mais ricos do Brasil.

Você está nos 10% mais ricos do Brasil se ganha mais de 7.500 por mês. Se você ganha mais de 15 mil, está nos 3% mais ricos do Brasil. Se ganha mais de 20 mil por mês, entrou na faixa do 1% mais rico. IBGE. Isso é o retrato de um país desigual.

Mais de cinco mil é classe média. A classe média alta começa em que ponto? Não é razoável dizer que são os 10% mais ricos? Veja, não estamos falando dos ricos. Estamos falando da classe média mais alta. Se for o top 10% da sociedade, então o corte é 7.500 por mês. Os 3% mais ricos não são a elite econômica?

Se você divide toda a sociedade, o grupo das pessoas mais progressistas e mais dedicadas a discutir política representam, também, dentre todos os grupos, o que tem renda mais alta, acima de dez mil por mês de acordo com a pesquisa, têm ensino superior, são mais brancos e menos religiosos. Preferem que não chamemos de elite econômica? Tudo certo. Não vamos chamar. Prefere que não chamemos de elite educada? A gente não precisa usar a palavra elite. O ponto é que nenhum outro grupo é composto por pessoas com renda tão alta, que tiveram acesso a tanta educação, que são tão brancos e tão pouco religiosos. Isso não quer dizer que a vida seja fácil, que não tenha aquele cartão de crédito que foi rolado mais de uma vez, que não tenha uma ou duas mensalidades penduradas na escola dos filhos.

Mas o fato de que a esquerda mais politizada e interessada em política tenha estas características tem consequências eleitorais importantes. Quer entendê-las? Vamos lá?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Olha, aqui a gente faz um jornalismo que é tão digital quanto o do ICL, quanto o do 247, quanto o do Antagonista ou da Revista Oeste. Aqui a gente tem streaming igualzinho ao Brasil Paralelo. Mas nós temos uma diferença grande em relação a esses todos. A gente não está torcendo por Lula, a gente não está torcendo por Bolsonaro. O que a gente faz aqui é tentar entender o Brasil. É rejeitar golpista, sim. Só que não estamos no ramo da torcida, de xingar o outro lado. Que tipo de jornalismo é importante pra você? Se for o jornalismo para tentar entender, assine o Meio. Pague por jornalismo. É um ato de cidadania.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Sabe o que faz mais diferença para botar você na classe média alta? Ensino superior. O salário médio de um brasileiro com ensino superior é de 7000 reais. O salário médio de alguém sem ensino superior é 2.400. Médio, tá? A mediana. Se de você ter um canudo na mão, sua renda quase triplica. Sempre com dados oficiais do IBGE. A diferença de salário de alguém que terminou o fundamental para alguém que terminou o médio não é muito grande. A universidade é o que muda a vida radicalmente. Mas pra isso ser verdade, você não foge de puxar muito pra cima a qualidade da educação básica.

Eu sei que pessoas de esquerda que ganham mais de dez mil, vivem nas Laranjeiras aqui no Rio, em Santa Cecília, em São Paulo, não se sentem como parte da elite. Sei também, porque muitos dos meus amigos pessoais têm exatamente esse perfil, que são boas pessoas, preocupadíssimas com a desigualdade. Falo isso com nenhum sarcasmo. O problema é que esta é uma preocupação abstrata. Porque, na prática, elas sequer percebem quão distantes estão do brasileiro médio. Elas sequer percebem que estão ali entre os 3 e 1% mais ricos do Brasil. Muitas vezes falam que o problema está no top-1% sem perceber que é com eles ali na roda de samba.

Eu entendo muito o argumento de que o bilionário tem impacto no Congresso, no Planalto, no Supremo. Mas essas pessoas não percebem que, coletivamente, têm também muito impacto. Porque estas pessoas são funcionários públicos, são jornalistas, trabalham em empresas grandes. Estas pessoas são a grande maioria dos professores universitários. Essas pessoas são a voz da esquerda nas redes sociais. Claro. São as mais bem formadas e as mais engajadas politicamente. Então, para a maior parte dos brasileiros, que se informa pelas redes, a ideia que têm de o que é ser esquerda, sobre quais são as ideias que a esquerda defende, vêm daí. Deste conjunto de brasileiros mais engajados na esquerda.

Sabe, os 60% dos brasileiros que ganham dois mil ou menos não estão preocupados com LGBTfobia, não estão preocupados com feminismo, nem com racismo. Isso não quer dizer que não existam pobres trans, muito menos negros. Imagina. É só que no dia a dia você está preocupado mesmo com pagar a décima parcela do celular de 800 reais, de pegar o ônibus lotado em tempo de conseguir chegar em casa nove da noite porque se perde, o outro sai só não sei quantas horas depois. É uma vida com muitos medos, sabe? Uma vida com medo de assaltante, de perder o emprego, de o filho não se sentir atraído pelo tráfico. Às vezes medo de não ter jantar. Para você chegar ao ponto de conseguir elaborar o impacto do racismo na sua vida, tem muita coisa que precisa ser garantida antes. E essas pessoas têm preocupações muito práticas, religião faz muito parte de suas vidas, são conservadores à beça nos costumes e a esquerda que elas encontram, nas redes, simplesmente não as representa. Não dá liga, sabe?

Por que a esquerda tem menos de um quinto das cadeiras na Câmara dos Deputados? Por causa disso. Por que a popularidade de Lula cresceu esse ano? Porque o governo parou de falar de racismo climático e começou a falar de dinheiro no bolso. Por que a direita faz sucesso nas redes? Porque o que a direita está falando nas redes ressoa com os brasileiros e o que a esquerda está falando nas redes é uma abstração que leva a uma de duas conclusões. Ou quem vê acha que são alienados com preocupações esquisitas, ou quem vê acha que são uma ameaça a seus valores.

Olha, estamos com um patacão de pesquisas novas explicando os brasileiros ao Brasil. Podemos rejeitar as pesquisas, podemos implicar com a palavra elite, ou podemos simplesmente sentar, ler e compreender a mensagem.

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