Paraíso cinéfilo
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A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chega à sua 49ª edição neste ano, e traz para a cidade 374 títulos de 80 países. Quando surgiu, nos anos 1980, criada por Leon Cakoff, a Mostra foi não só uma maneira de driblar a censura, também cumpria um papel de trazer outros olhares por meio do cinema de invenção, ampliando a nossa visão do mundo através de cinematografias que nunca aportavam no país. Essa história, inclusive, é super bem contada na série Viva o Cinema! Uma História da Mostra de São Paulo, dirigida por Marina Person e Gustavo Moura, disponível na HBOMax.
Desde a morte de Leon em 2011, a Mostra é dirigida por Renata de Almeida, sua ex-mulher e parceira na paixão pelo cinema, que não só manteve o espírito do festival como ampliou seu alcance, mesmo com todas as dificuldades de manter vivo um evento deste tamanho, atravessando não só a pandemia como os anos de negacionismo cultural durante o governo Bolsonaro. Conversamos sobre a edição deste ano, sobre o papel da curadoria, o crescimento da presença do cinema nacional, sobre tecnologia e, claro, sobre uma visão política que nunca deixou de estar por trás da Mostra. Esta edição homenageia no prêmio Humanidades Jafar Panahi e Euzhan Palcy, figuras que usam o cinema para defender a liberdade. Além disso, há recortes temáticos sobre a luta indígena. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Como você enxerga a responsabilidade da curadoria humana na formação do espectador?
Eu tento enxergar a curadoria da Mostra de uma maneira mais leve, como um amigo que sugere filmes. É o nosso olhar, e funciona como se fosse alguém em quem você confia dando indicações. Recebemos mais de 1.600 filmes. Nós dividimos esses filmes entre a equipe, e depois fazemos a análise para ter uma visão conjunta e escolher o panorama final. Neste ano, por exemplo, homenageamos [Želimir] Žilnik, um cineasta sérvio, que fez o filme Depois dos Oitenta, sobre a velhice. Ele já havia ganhado o Festival de Berlim em 1969 com Primeiros Trabalhos, competindo com mestres como Godard e Bellocchio. Apresentamos três filmes dele para mostrar um arco da vida do diretor e também um arco político. No final, há uma visão por trás de tudo. Se escolhemos, por exemplo, seis filmes da Palestina neste ano, ou o filme Sirât para abertura, isso demonstra a curadoria de maneira mais forte. Sirât significa uma ponte estreita que passa sobre o inferno até chegar ao céu. Pensei que essa imagem reflete a sensação que temos na atualidade, onde qualquer passo em falso pode nos fazer cair dessa ponte estreita que é a civilização.
De que forma trazer seis filmes da Palestina neste momento também é um ato de resistência?
O cinema tem uma dívida grande com os palestinos, e não só com eles, mas com muitos países do Oriente Médio. A imagem que o cinema vendeu desses povos foi historicamente pejorativa, sempre a do terrorista, o cara com a bomba. Essa imagem ruim negligencia o fato de que os árabes, por exemplo, inventaram a matemática e o comércio. O cinema pode humanizar a história. O que estamos vendo é um genocídio, e a Mostra lida com a imagem. Neste ano, apresentamos Palestina 36, de Annemarie Jacir, que é o filme indicado ao Oscar pela Palestina. Acredito que o cinema possa ajudar na empatia, porque os números e as notícias de jornal se transformam em pessoas. Há também um documentário sobre a juventude de Gaza praticando parkour nos escombros [Yalla Parkour], o que é uma maneira de resistir.
Qual é o papel de um festival internacional como a Mostra para amplificar vozes e esses conflitos?
Um festival não tem sentido se não tiver essa discussão. Claro que a gente adora o [Jafar] Panahi e ele ganhou a Palma de Ouro neste ano, né? Mas também ganhou a Mostra também com O Balão Branco, o primeiro filme dele. A [Euzhan] Palcy é da Martinica e tem um histórico incrível: foi a primeira mulher negra a ser produzida por um grande estúdio. O filme dela, Assassinato Sob Custódia, é sobre o apartheid. O impacto do filme foi tão grande que Nelson Mandela pediu para encontrá-la após sair da prisão. A Mostra fica muito feliz em dar o prêmio Humanidades a ela na abertura. Claro que temos também filmes divertidos, mas, se um festival tiver medo da polêmica ou da discussão, ele não tem razão de existir. Não colocamos nenhum filme apenas por uma causa. Tudo que é selecionado na Mostra é cinema de qualidade. Se o filme não for bom, ele deve ser apresentado em outro lugar. Mas existem muitos filmes bons que abordam temas sensíveis. Temos, por exemplo, o documentário Cover-Up, sobre como as notícias são escondidas em zonas de guerra. O festival não pode ter medo de perder patrocínios. A Mostra, quando nasceu, não teve medo da ditadura e não pode ter medo de perder um apoio agora.
O prêmio Leon Cakoff homenageia tanto o roteirista Charlie Kaufman quanto Maurício de Souza. Como funciona esse prêmio que vai para lados tão diferentes?
Criamos o prêmio Leon Cakoff, um prêmio de carreira, porque o prêmio Humanidades não se encaixava para todos, como Charlie Kaufman ou Tarantino. Mesmo sendo um prêmio de carreira, ele homenageia pessoas que trazem algo novo. No caso de Maurício de Souza, há uma beleza no fato de ele ganhar um prêmio com o nome de Leon, pois os dois se conheceram como jornalistas e mantiveram contato. O Maurício de Souza fez o pôster da 35ª Mostra, que foi a última de Leon, e ele escolheu o personagem Piteco, que era seu predileto. Além dessa relação, eu acho um fenômeno o que Maurício de Souza conseguiu. Quantas gerações aprenderam a ler com a Turma da Mônica? Seus personagens têm uma sobrevida enorme com os filmes atuais, que são de ótima qualidade. Já Charlie Kaufman saiu do lugar comum quando lançou Quero ser John Malkovich, e ele continua com essa postura singular. Ele abre a Mostra com um curta, pois decidiu que o formato ideal para sua nova ideia era um curta-metragem.
Como é a relação da Mostra com os filmes brasileiros atualmente?
Pois é, você sabe que teve uma época que os cineastas brasileiros até ficavam incomodados de pôr filme na Mostra. Agora os filmes brasileiros vão super bem, e a gente resolveu fazer um grande panorama do que aconteceu no ano. O catálogo da Mostra também é fonte de consulta para outros festivais ao redor do mundo. O festival de Xangai tá vindo esse ano, o de Pusan também, porque eles querem que a gente ajude com filmes brasileiros. Então tem uma troca. Tem filmes que passaram em Brasília e em outros festivais. A gente fez um post nas redes dando dicas para quem vem pela primeira vez ao festival. Aí uma pessoa que não lembro onde morava falou: “Olha, na minha cidade não estreia quase nada, só os grandes filmes. Eu vou para ver os filmes brasileiros.” Isso é um movimento orgânico muito bacana.
Como você vê a inteligência artificial no cinema, especialmente nesta semana em que tivemos a polêmica da criação da primeira atriz em IA?
Essa situação me lembrou HAL, do 2001: Uma Odisseia no Espaço. Não sou muito tecnológica e entro em pânico, mas faremos uma mesa sobre IA. O que me fez mudar um pouco a visão é um filme de ficção científica da Nigéria, Memória da Princesa Mumbi, que só pôde ser feito graças à IA. No entanto, eu defendo a necessidade de regulamentação. Enquanto não houver lei, acho que deve ser proibido, como a Califórnia fez: suspender até que se entenda até onde a IA pode ir. O que me entristece é que a pesquisa de IA não está sendo direcionada para o lado da acessibilidade, como a audiodescrição de todos os filmes, mas sim para substituir a criatividade e o pensamento humano. Quando o cinema digital surgiu, prometeram que seria mais barato e democratizaria a produção, mas foi uma grande mentira. Devemos ter cuidado para que a IA não se torne uma maneira de controle vendida como democratização.



























