Aposta dobrada
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João Kombi, guitarrista e vocalista do Test, a banda de grindcore que faz um dos sons mais extremos de hoje no Brasil, sobe ao palco do Garage Grindhouse acompanhado apenas de sua guitarra e uma série de pedais. Senta no chão e inicia uma improvisação de cerca de 20 minutos, em que a guitarra elétrica é usada de maneira magistral para aquilo que foi criada: emanar ondas de ruído. João não estava listado no line-up da noite que abriria a 15ª edição do Festival Novas Frequências, mas seu show surpresa diz muito sobre o ethos desse evento singular, assim como o palco escolhido para abrir os próximos onze dias de shows no Rio e em São Paulo.
Garage Grindhouse é um templo da música alternativa carioca. Aberta em 1998 como Garage Art Cult, a casa de shows próxima à Praça da Bandeira recebeu boa parte das bandas independentes das últimas décadas. Abrigou inclusive algumas que depois chegaram ao mainstream, como Planet Hemp e Los Hermanos. Reaberta depois da pandemia, há pouco mais de dois anos, mantém o espírito underground, com suas paredes pretas grafitadas, chão de madeira e palco baixo. E veio abaixo com o metal do trio japonês Birushanah e, na sequência, com a demolidora dupla americana Wolf Eyes, com sua performance de noise-canção.
O casarão da rua Ceará, um dos principais palcos da música extrema no Rio, é marcado por uma longa história de resistência cultural. O que faz eco à aposta deste ano do Novas Frequências que, mesmo sem patrocínio, não só realiza sua edição carioca com artistas nacionais e internacionais como dobra a aposta e decide expandir a programação para São Paulo, com shows diários de segunda a sábado da semana que vem.
Para Chico Dub, curador do festival e um de seus criadores em 2011, essa aposta se justifica por duas razões. A primeira é realizar uma edição à altura dos 15 anos do Novas Frequências e a segunda é entender a ida para São Paulo como crucial para a manutenção do festival, podendo levar ao mercado paulistano a experiência completa do que é viver esses dias de música experimental, algo mais tangível do que uma apresentação de Power Point. “Esse é o segundo ano em quatro que a gente está fazendo sem patrocínio. E, muito sinceramente, acho que isso pode acontecer mais vezes. Então, essa ida para São Paulo é estratégica, é uma coisa tipo estamos caindo, mas vamos cair atirando”, diz, justificando que essa é uma maneira de os paulistanos que já ouviram falar do Novas Frequências “entendam como é o festival mesmo e que ele que tem a cara de São Paulo”.
Não que a cidade não tenha tido um aperitivo. Em 2012, com o Novas Frequências ainda engatinhando, foi feita uma noite no finado Beco com shows do Pole, Actress e Hype Williams. O que Chico Dub classifica mais como um pocket show do que o festival propriamente dito. “Neste ano, além da vontade de querer comemorar, queríamos fazer uma comemoração de peso, relevante, levando para São Paulo bons artistas, com shows em boas instituições.”
E a maneira de fazer isso foi costurar parcerias com o Cultura Artística, com o Sesc Avenida Paulista e com o Theatro Municipal, que cedeu a Reserva Técnica Chico Giacchieri, localizada no Pari e que só neste ano passou a abrigar alguns projetos culturais. Ainda assim, a dinâmica do festival não é exatamente igual à do Rio. Isso por algumas razões.
A primeira é que, no Rio, o Novas Frequências estabeleceu uma relação com a geografia urbana, fazendo um casamento estético entre as atrações e diferentes locais da cidade. Como o festival atua na intersecção de música e arte sonora, às vezes a própria cidade passa a ser um personagem dessa história. Posso trazer como exemplo uma obra proposta da edição de 2016. Daniel Limaverde apresentou sua Sweet Spot. Basicamente, você recebia coordenadas em seu celular e, ao chegar ao local proposto, poderia ouvir um som em diálogo com aquele ambiente. Era uma espécie de caça ao tesouro no meio da cidade. Lembro de desbloquear músicas no Parque Laje, pelo Cais do Valongo, nas igrejas de Nossa Senhora da Paz e Nossa Senhora do Carmo, num píer da Lagoa Rodrigo de Freitas. Para meu olhar estrangeiro, foi incrível. O único senão foi a certeza de ter contraído dengue em algum desses lugares. Minha aposta até hoje é o Parque Laje.
Neste ano, a programação carioca mantém um pouco dessa identidade. Na última quinta, as apresentações de uma live do G Paim e um back to back entre as DJs Anti Ribeiro e Aleakim aconteceram na varanda do Solar Granjean de Montigny, dentro do campus da PUC. Os shows mais contemplativos das canadenses Sarah Davachi e Kara-Lis Coverdale foram no Solar de Botafogo e a noite de eletrônica dançante, com o som árabe psicodélico do Praed, o techno de Cashu e o afrofuturismo de Faizal Mostrixx, rolou no Trauma.
Hoje a programação acontece de graça no Parque Laje e traz propostas bem diferentes que exploram diversos aspectos da materialidade do som, passando pelas paisagens sonoras da mexicana Concepcíon Huerta, da dupla Rosa Noviello & Lara Dâmaso, os experimentos espaciais de Nico Espinoza, o drone nordestino de Chico Correia, as improvisações livres de Luciana Rizzo e da dupla Violeta García e Hora Lunga. E o final pesado acontece no Circo Voador, com três brasileiros de peso, em diferentes sentidos: Metá Metá, Test & Deafkids e Papangu. E, durante toda perna carioca do festival, é possível visitar de graça uma instalação de Craca na Casa Firjan.
Essa mescla entre eventos pagos e gratuitos não acontece em São Paulo. Por lá, durante a semana serão shows mais convencionais. Na segunda, o Cultura Artítica recebe Kara-lis Coverdale e Sarah Davachi. Na terça e na quarta, o festival migra para o Sesc Avenida Paulista, com o Birushanah na terça e o Praed na quarta. Aí volta para o Cultura Artística na quinta com o Algol, um trio eletroacústico formado por Christian Lillinger, Elias Stemeseder e Camilo Ángeles e, na sexta, com o jazz livre de Paola Ribeiro.
O dia que mais dá a sensação do clima do Rio é o encerramento na Reserva Técnica Chico Giacchieri. “Serão várias performances no espaço, e o público vai poder experimentar um pouco da variedade do festival”, diz Chico Dub, destacando a improvisação de brasileiras que moram fora como a harpista Marina Mello e a flautista Marina Cyrino que “vem com uma performance nova, super interessante, com máscara, figurino e vários elementos em cena”. Neste dia, além de artistas que só tocam na edição paulistana, como Edgar com os Fita, se apresentam Concepcíon Huerta e Luciana Rizzo. Mas Chico não descarta surpresas durante a semana, e é bem capaz que o final se dê com num pique mais eletrônico. “Qualquer festival de música experimental que se preze não pode ignorar a música eletrônica, né? É dos gêneros guarda-chuva, e vanguardistas que se tem dentro desse grande balaio de gatos que se convencionou chamar de música experimental”, diz.
Mesmo com o esforço de expandir o Novas Frequências para além do Rio, e da esperança de encontrar novos caminhos para realizar um festival internacional de vanguarda em São Paulo, Chico tem muita dúvida da sustentabilidade desse tipo de projeto. “O modelo festival como o Novas Frequências está com os dias contados. A gente ainda é um nicho pequeno e está brigando pelo mesmo dinheiro que todo mundo. E o poder público se envolve pouco. Existe uma preocupação muito grande, quando o governo está envolvido, com descentralização, democratização e diversidade. Então, um festival como esse é visto como de elite. Ele não vai pegar a mesma verba que um festival periférico, de cultura preta, ou que tenha temas que dialoguem com o espírito do tempo.”
Se perspectiva financeira não é das mais animadoras, o melhor é se voltar para a arte. Talvez, neste ano nada dê mais um sopro de esperança do que a instalação de Craca no Rio, vista aqui pelos olhos do Chico: “Está tudo muito muito difícil, complexo, distópico e triste. Escuro e cinza. Então, o tema Futuros Possíveis coloca um pouco de luz de volta nas utopias. Será que a gente consegue imaginar futuros possíveis que sejam mais alegres, com o bem viver e o bem-estar? O Craca trouxe a ideia de a gente pensar o futuro através da escuta. Então, é uma uma instalação com diversos altos falantes e cornetas espalhados pelo jardim da Casa Firjan, onde ele selecionou trechos de falas de diversos teóricos e pensadores, de líderes indígenas e filósofos, escritores e ele mesmo se inseriu nessa conversa, conversando com a filha e a esposa dele para pensar esses futuros.”

























