A democracia paralítica

Como a democracia liberal, ainda analógica, sobrevive em um mundo ditado pelo digital, por sua vez dominado pelo extremismo de direita?
A democracia liberal, tal como concebida no século 20, atravessa uma fase avançada de obsolescência. Em praticamente todas as democracias do mundo, sua paralisia não decorre de um golpe explícito, mas de um esvaziamento progressivo de sua capacidade de agir. A engrenagem institucional, outrora celebrada por sua prudência e respeito aos freios e contrapesos, hoje se revela disfuncional diante de um tempo acelerado. O mundo digital exige decisões rápidas, fluxos contínuos de informação e adaptação permanente. A democracia, contudo, permanece ancorada em rotinas deliberativas lentas, herdadas da era analógica e da burocracia de papel. Sua crise é, antes de tudo, uma crise de temporalidade.
No Brasil, essa obsolescência é particularmente grave. O sistema presidencialista tornou-se uma equação desequilibrada entre um Executivo enfraquecido, um Legislativo fragmentado e um Judiciário hipertrofiado. O governo federal, embora comprometido com a democracia — tendo sido alvo recente de uma tentativa de golpe de Estado —, opera com minoria parlamentar e sob constante chantagem de um Congresso que, embora não seja majoritariamente golpista, flerta abertamente com o golpismo como expediente eleitoral e mecanismo de chantagem. A consequência é um pacto institucional disfuncional: para preservar a legalidade democrática, toleram-se abusos, apropriações privadas do orçamento e a judicialização excessiva da política. O custo da estabilidade é a erosão da eficácia governamental.
Não se trata mais de oposição, mas de conluio internacional para inviabilizar a normalidade institucional brasileira
É nesse vácuo que o bolsonarismo se reconfigura. Fora do governo, mas não da cena pública, conta com apoio da extrema direita internacional — em especial do trumpismo americano — e se estrutura como um projeto político digitalizado, transnacional e desinstitucionalizante. Sua ofensiva não é apenas simbólica: opera-se uma sabotagem ativa do sistema democrático por dentro e por fora. O caso de Eduardo Bolsonaro, articulando do exterior pressões pela impunidade do pai, é exemplar. Não se trata mais de oposição, mas de conluio internacional para inviabilizar a normalidade institucional brasileira.
Esse novo reacionarismo se molda perfeitamente ao ecossistema digital. Domina as linguagens afetivas, os algoritmos, a inteligência artificial e a micro segmentação. Sabe onde atingir e como produzir engajamento. Enquanto isso, o Estado brasileiro continua operando como uma máquina analógica: suas respostas são lentas, fragmentárias e ineficazes. Governar, em muitos aspectos, ainda depende de papel, fila e balcão. O populismo digital reacionário encontra sua força não apenas nas emoções que mobiliza, mas na inércia do Estado democrático que não entrega. A cidadania digital é prometida pela extrema direita; o Estado oferece apenas a lentidão da promessa adiada.
Esse quadro agrava-se na medida em que os cidadãos já naturalizaram a eficiência do setor privado. Pedem comida por aplicativo, fazem transferências bancárias em segundos, mas não conseguem marcar uma consulta no SUS ou consultar um processo judicial. A plataforma gov.br, ainda que promissora, é insuficiente. O Estado é mais lento que o crime, menos hábil que a desinformação, menos ágil que os fluxos financeiros que lhe escapam. Elon Musk e Mark Zuckerberg sabem mais sobre os brasileiros do que qualquer órgão da administração pública — e frequentemente colocam essa informação a serviço de projetos políticos regressivos.
A democracia precisa reaprender a se comunicar, a se organizar e a governar num mundo digital
A democracia, portanto, enfrenta um duplo desafio: proteger-se do golpismo e reinventar-se tecnologicamente. Isso não exige abandonar o liberalismo político — base irrenunciável de qualquer regime democrático —, mas sim reconfigurá-lo às condições da era digital. Roosevelt, nos anos 1930, fez isso ao transformar o rádio, instrumento preferencial dos fascismos europeus, em meio de reconstrução democrática. A partir dali, o Estado social passou a responder por bens essenciais, combinando liberdade política com justiça distributiva. É essa mesma reinvenção que se faz hoje necessária.
No caso brasileiro, essa atualização deve começar pela providência mais óbvia e urgente: a regulamentação democrática das redes sociais. Não se trata de censura, mas de soberania. Trata-se de garantir à democracia um mínimo controle sobre o espaço público digital, atualmente entregue à manipulação emocional, à desinformação industrializada e à atuação de potências estrangeiras. A democracia precisa reaprender a se comunicar, a se organizar e a governar num mundo digital.
Reinventar a democracia, portanto, não é um gesto de ruptura, mas de continuidade histórica. Como ensinava Afonso Arinos, “a evolução da humanidade é comparável a uma espiral, cujas curvas se sobrepõem sempre, mas em planos cada vez mais elevados”. Os problemas históricos se repetem, mas em contextos distintos, que exigem respostas novas. Só o espírito rotineiro insiste em aplicar soluções antiquadas a dilemas inéditos — ou entrega o poder às forças da regressão. A democracia brasileira ainda pode reencontrar seu caminho. Mas para isso precisa sair do torpor, reduzir seu déficit tecnológico e voltar a operar no tempo do mundo em que vive. E o tempo, hoje, é digital.