Marina Silva não está sozinha

A tese da solidão da ministra reforça o preconceito e a misoginia contra ela e desabona a própria agenda ambiental
Marina Silva está sozinha. Desde a violenta e constrangedora sessão da Comissão de Infraestrutura do Senado, há uma semana, essa é uma tese repetida com incômoda frequência: jogada aos leões da misoginia explícita, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima não teria recebido o devido apoio da bancada governista na Casa, ausente ou inerte diante da artilharia pesada que ela enfrentou, especialmente dos senadores Plínio Valério (PSDB-AM), Omar Aziz (PSD-AM) e Marcos Rogério (PL-RO). Marina também não teria contado com o apoio dos articuladores políticos do governo, abrigados na Casa Civil e na Secretaria de Relações Institucionais, que dias antes haviam liberado os partidos da base de sustentação para votar como bem entendessem o projeto de lei que desmonta todo o arcabouço de licenciamento ambiental do Brasil – oficialmente o PT defendeu a rejeição ao chamado PL do Licenciamento, mas a ministra ficou falando sozinha contra o projeto, definido por ela como a “boiada das boiadas” ao passar por cima de mais de 30 anos de legislação ambiental brasileira.
A tese da solidão de Marina não chega a ser incorreta mas, na forma como está posta, no fundo se presta a dois desserviços que supostamente tenta denunciar: reforça o preconceito e a misoginia contra a ministra e desabona a própria agenda ambiental como uma agenda do Brasil, e não apenas de uma pessoa. No primeiro caso, numa versão, digamos, otimista (porque reconhece sua relevância dentro e fora do governo), segue-se a lógica do machismo que impera a política brasileira, descrevendo a ministra como mera peça decorativa do governo Lula – simbólica, valiosa, mas ainda assim, decorativa. Na versão negativa, Marina é colocada como uma barreira para o progresso e o desenvolvimento, assim como as normais ambientais atrasam obras necessárias ao país, ainda que ambientalmente polêmicas.
Não raro, mesmo apoiadores da ministra concentram nela as derrotas, enquanto pulverizam o crédito por eventuais conquistas ambientais
Mas a tese de que “Marina está sozinha”, repito, significa também um desserviço à própria agenda ambiental. É, no fundo, um artifício usado pelos seus detratores para tirá-la do debate público. Não raro, mesmo apoiadores da ministra concentram nela as derrotas, enquanto pulverizam o crédito por eventuais conquistas ambientais – é o caso das sucessivas quedas nos níveis de desmatamento. As vitórias são invariavelmente coletivas; as derrotas, individualizadas.
Aos leitores do Meio é importante esclarecer: não sou especialista em política ambiental. Mas, como mulher, cientista política e liderança de uma organização da sociedade civil, entendo razoavelmente bem das dinâmicas do poder, das formas de intimidação, silenciamento e menosprezo que a política machista busca exercer sobre líderes femininas, além dos códigos que regem a ação coletiva.
Ressalto essa minha limitação, de um lado, e conhecimento de causa, de outro, para reforçar o que deveria ser óbvio neste momento para qualquer analista, de qualquer gênero: se o Brasil quiser debater seriamente a violência política de gênero e os rumos da política ambiental – dois eixos do debate público especialmente feridos naquela sessão da Comissão de Infraestrutura do Senado – precisará reconhecer que não, Marina não está sozinha. Quando uma liderança feminina como ela é intimidada e agredida verbalmente como foi por senadores, somos todas as mulheres intimidadas e agredidas igualmente. Quando se tenta desmontar a política ambiental, seja por negacionismo climático, seja por um desenvolvimentismo tardio, seja pela ansiedade de destravar projetos ambientalmente polêmicos, é o Brasil que perde. O Brasil inteiro, não apenas Marina Silva.
Razões pelas quais é também um erro concentrar na questão de gênero apenas o debate sobre o que ocorreu com Marina no Senado. Ali foi mais um episódio onde está em jogo também a própria agenda ambiental, principalmente a forma como o governo Lula a enxerga. Por outro lado, é igualmente errado desmerecer o debate de gênero, como se isso, de algum modo, reduzisse a força e o impacto da agenda política “real”, que importa, que seria a agenda ambiental.
Conceitualmente falando, é violência política de gênero, sim, agir ou deixar de agir, propositalmente, a fim de dificultar ou impedir que uma pessoa ou grupo de pessoas de um determinado gênero exerça seus direitos políticos. Ou seja, se há restrições, interrupções e tentativas de silenciamento ao exercício do direito da palavra, neste caso por uma mulher, estamos diante deste tipo de violência política. Se as críticas a uma liderança política mulher recorrem à estereotipação da figura feminina ou tentativas de ridicularização, estamos diante de violência política de gênero. Se há agressões psicológicas, sexuais ou físicas para impedir uma mulher de exercer seu direito político, estamos diante de violência política de gênero.
Ao mesmo tempo, não se trata apenas de um ataque a alguém de um gênero específico, com fins políticos, mas um ataque motivado pelas expectativas sobre o papel que esta pessoa deveria desempenhar na sociedade. Em outras palavras, no caso da violência de gênero, seus algozes acreditam que uma mulher (por ser mulher, ou por ser uma mulher negra, ou por ser uma trans, por exemplo) não deveria ocupar outro lugar que não o da submissão. Nada mais simbólico do que a frase expressada pelo presidente da comissão, senador Marcos Rogério: “Se ponha no seu lugar”, disse ele a Marina, que se recusou a estar no lugar imaginado por ele. Ou a declaração do senador Plínio Valério: “A mulher merece respeito e a ministra, não”.
Ataques como esses não são aleatórios, nem desprovidos de sentido, porque tentam atingir os nervos de uma mulher com atuação pública e de impacto, reconhecido nacional e internacionalmente, justamente na agenda política que se busca desmantelar. E é aí que o debate de gênero e a ação ambiental se juntam. São ataques que simultaneamente tentam ferir publicamente uma mulher e também ministra que, como descreveu reportagem de Yan Boechat na Edição de Sábado do Meio, incomoda muita gente. Incomoda deputados da bancada ruralista, senadores do Amazonas e de Rondônia que pressionam pela pavimentação da BR-319 e incomoda a ala desenvolvimentista do próprio governo.
Se é inadmissível a solidão de uma ministra cuja agenda deveria ser do governo como um todo, e não apenas de si mesma, parece mais inadmissível ainda o conjunto de indícios muito evidentes do quanto o restante do governo, presidente Lula incluído, vive um pêndulo perverso entre apoiar a não apoiar a pauta liderada por Marina Silva. Conforme mostrou reportagem do portal Sumaúma, a pasta de Marina tentou o possível e o impossível para reverter a tramitação do PL do Licenciamento, enquanto a Casa Civil, de Rui Costa, e a Secretaria das Relações Institucionais, de Gleisi Hoffmann, nada fizeram para alterar, ajustar ou simplesmente combater o texto.
Com o tamanho da reação e da solidariedade pública, era mesmo importante que o governo não se fingisse de surdo. Mas isso é o mínimo
Ao mesmo tempo, após o episódio do Senado, a própria ministra Marina Silva fez questão de dar publicidade ao telefonema que o presidente Lula lhe deu, em apoio. E a imprensa noticiou o esforço orquestrado do governo para que diversos ministros, homens e mulheres, emitissem notas públicas em solidariedade a Marina. Nos dias seguintes, a ministra Gleisi Hoffman postou mais de uma vez em suas redes sociais o “diálogo” com Marina Silva para enfrentar o debate do PL do Licenciamento na Câmara. Com o tamanho da reação e da solidariedade pública nos quatros cantos do Brasil e da política brasileira, era mesmo importante que o governo não se fingisse de surdo. Mas isso é o mínimo.
Que um governo seja repleto de forças divergentes, contraditórias ou mesmo antagônicas é de se esperar. Mais ainda num governo como o de Lula, forjado numa frente ampla, dotado de imensas fragilidades na relação com o Congresso e enfrentando uma base heterogênea, fragmentada e hostil. Com essas condições, não surpreende que suas políticas sejam o resultado de embates internos e visões distintas. Mas o que ocorreu com Marina Silva no Senado e o que está ocorrendo com o debate do PL do Licenciamento inspiram uma dúvida: qual é o real projeto deste governo para o país, no qual a agenda ambiental deveria ser um pilar fundamental? Qual visão sobre política ambiental prevalecerá neste projeto de país, afinal? A do regramento e proteção ambiental ou a da facilitação de obras a qualquer custo?
É do presidente a escolha legítima dos caminhos a seguir. Mas a ele só não é facultado o direito de se omitir, navegando de maneira camaleônica, a seu estilo, conforme os ventos políticos apontarem. Sua dubiedade, no fundo, só reforça certos estigmas depositados hoje nos ombros de Marina, resumida nessa incômoda convivência: estar sozinha entre seus pares no governo e estar acompanhada de uma multidão inconformada com a tentativa de intimidá-la – como mulher e como liderança da agenda ambiental.