O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Desempenho democrático importa

Para superara a crise que a atinge em todo o mundo, a democracia liberal precisa voltar a entregar resultados que impactem a vida da população

Nas duas últimas décadas, uma onda de retrocesso democrático atingiu todos os cantos do planeta, colocando em questão a ascensão da democracia. Entre os casos mais conhecidos atualmente estão a Hungria de Viktor Orban, a Turquia de Recep Tayyip Erdogan e El Salvador sob Nayib Bukele, além do Brasil e das Filipinas durante as presidências de Jair Bolsonaro e Rodrigo Duterte, respectivamente. Acadêmicos e formuladores de políticas têm buscado compreender as causas desse fenômeno e como defender a democracia contra ele.

A maioria das abordagens se enquadra em um dos seguintes campos: as explicações do “lado da oferta” focam no comportamento das elites e em como as democracias são corroídas “por dentro” – ou seja, o desmantelamento gradual das instituições democráticas assim que um líder iliberal é eleito, e essas instituições são então utilizadas contra a própria democracia. Por outro lado, as teorias do “lado da demanda” concentram-se no apoio dos cidadãos, ou na falta dele, à democracia, dando mais ênfase ao desempenho democrático. Até que ponto a percepção de que a democracia não está produzindo resultados alimenta a demanda popular por sistemas políticos alternativos e candidatos que parecem oferecer melhores resultados?

No recente ensaio do Journal of Democracy Misunderstanding Democratic Backsliding [Compreendendo Erroneamente o Retrocesso Democrático], Thomas Carothers e Brendan Hartnett investigam essa questão. Com base em uma amostra de doze países onde a democracia enfraqueceu, os autores argumentam que a entrega da democracia, utilizando o crescimento do PIB e a desigualdade como indicadores proxy, tem poder limitado para explicar o início do retrocesso.

À medida que pesquisas ao redor do mundo apontam uma queda na satisfação com a democracia, Carothers e Hartnett fazem bem em avaliar a frequentemente alegada conexão entre desempenho e retrocesso democrático. No entanto, a conclusão geral dos autores de que o desempenho tem relevância limitada na explicação da erosão democrática exige mais nuance. Focar apenas nos casos em que houve retrocesso naturalmente gera um viés. Para determinar se o desempenho é uma condição precedente sem efeito real, um estudo também precisaria incluir países onde o retrocesso não ocorreu.

Os dados da pesquisa do Pew Research Center indicam que a insatisfação global com a democracia está ligada ao descontentamento econômico. Além disso, organizações como o Edelman Trust Barometer mostram que a confiança no governo é baixa em democracias consolidadas, como França, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido, mas é mais forte em países autoritários que estão crescendo e investindo rapidamente, como China, Arábia Saudita, Singapura e Emirados Árabes Unidos. Juntos, esses dados sugerem que os cidadãos estão duvidando cada vez mais da capacidade da democracia de entregar resultados.

Para entender por que a entrega de resultados é tão importante para a legitimidade democrática, é necessário compreender o princípio fundamental do contrato social: os cidadãos consentem em ser governados por um soberano, e esse soberano, por sua vez, exerce poder político em benefício da cidadania. Como Margaret Levi escreveu recentemente: “Estabelecer credibilidade requer que o governo cumpra sua parte no contrato implícito com cidadãos e súditos, ou seja: a provisão de bens e serviços, processos justos na formulação e implementação de políticas (de acordo com as normas do local e do momento) e uma capacidade administrativa demonstrável”.

O público frequentemente perde a confiança nos governantes e no sistema político como um todo, o que às vezes se manifesta no voto para candidatos antissistema

A provisão de serviços públicos não é a única maneira pela qual os governos podem construir confiança entre seus cidadãos. No entanto, as decisões de política pública podem ter impactos tangíveis e diretos na vida individual. Assim, quando a má gestão econômica leva a grandes crises, o público frequentemente perde a confiança nos governantes e no sistema político como um todo, o que às vezes se manifesta em protestos e agitação generalizados ou no voto para candidatos antissistema que prometem uma alternativa a uma classe política estagnada.

É importante reconhecer que a confiança no governo e a legitimidade por meio do desempenho não são exclusivas dos sistemas democráticos. Um estudo recente, baseado em um conjunto de dados de 2,8 milhões de pessoas ao redor do mundo, revela uma forte conexão entre confiança no governo e crescimento econômico: sociedades com maior confiança política também apresentam algumas das maiores taxas de crescimento do PIB, incluindo países autoritários como Catar, China, Ruanda e Vietnã; por outro lado, aqueles com menor confiança política muitas vezes enfrentam dificuldades econômicas, incluindo democracias como Espanha, Grécia, Itália e Japão.

Na última década, as democracias latino-americanas experimentaram um declínio significativo na confiança pública no governo e no apoio à governança democrática, em grande parte devido ao fraco crescimento econômico. O fim do boom das commodities em meados da década de 2010 marcou o início de uma nova “década perdida”, na qual a estagnação econômica reverteu os avanços anteriores na redução da pobreza e da desigualdade de renda. Taxas persistentemente altas de homicídio e insegurança generalizada na região também minaram a confiança do público nas instituições governamentais e no sistema democrático como um todo.

Em média, cidadãos de sociedades com maior crescimento econômico expressam claramente maior satisfação com a democracia. Isso se aplica não apenas a países que sempre foram democráticos desde o fim da Guerra Fria, mas também aos “oscilantes” – países que experimentaram heterogeneidade institucional desde 1990. Ainda que a evidência seja puramente descritiva, há uma conexão clara entre apoio à democracia e entrega de resultados, com o crescimento econômico como proxy.

Na Argentina, a satisfação com a democracia despencou durante o colapso econômico e político do país em 2001. Embora uma recuperação tenha começado sob Néstor Kirchner em 2003, impulsionada por altos preços de commodities, a crise deixou cicatrizes profundas na confiança do país nas instituições e sinalizou uma incapacidade crônica de oferecer bem-estar e desenvolvimento aos cidadãos.

No Brasil, a satisfação com a democracia aumentou durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), quando o boom das commodities permitiu um crescimento econômico sustentado e políticas sociais inovadoras reduziram a pobreza. No entanto, após a recessão econômica de 2013–2015, a satisfação com a democracia caiu drasticamente, e o Brasil logo passou por um período de retrocesso democrático sob o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (2019–2022). Em última análise, no entanto, as instituições do país mostraram resiliência.

A correlação dinâmica entre satisfação com a democracia e crescimento econômico também se aplica a democracias mais desenvolvidas que enfrentaram crises, como Espanha e Grécia. O fraco crescimento econômico e o declínio da satisfação com a democracia em democracias avançadas estão alinhados com uma literatura emergente que relaciona a oferta limitada de serviços e dificuldades econômicas ao voto em partidos de extrema direita, especialmente na Europa. Isso se manifesta em discursos populistas contra a austeridade e na culpabilização de imigrantes pela crise econômica.

Em que momento a insatisfação com o desempenho político ou com determinados governantes se transforma em ceticismo em relação ao projeto democrático como um todo, potencialmente favorecendo alternativas mais autoritárias?

Em contraste com a autocracia, diz-se que a legitimidade da democracia repousa tanto em seu desempenho quanto na presença de equidade processual. Mesmo que os resultados não sejam considerados benéficos para o bem-estar, o processo democrático valida as decisões políticas porque agrega preferências diversas e amplia a voz dos cidadãos por meio de oportunidades de participação. No entanto, as alegações sobre a ascendência da democracia com base em seus méritos processuais podem já não ter o mesmo impacto de antes. Em democracias de baixo desempenho, os cidadãos demonstram cada vez mais insatisfação com o sistema político ao comparecerem menos às urnas, protestarem e apoiarem candidatos antissistema ou até abertamente antidemocráticos.

A sobrevivência desses regimes [autoritários] frequentemente depende de repressão sistemática e táticas brutais

Independentemente da manipulação da mídia, o forte desempenho de alguns regimes em retrocesso e autocracias é inegável. O crescimento econômico consistente da China tirou milhões da pobreza. Os padrões de vida aumentaram substancialmente na Turquia desde que o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) surgiu em 2002 com Erdogan. Esses exemplos, de forma alguma, justificam o autoritarismo; um histórico de entrega de resultados não exime os abusos de ideais democráticos, como a proteção dos direitos individuais e das liberdades civis. Embora alguns regimes autocráticos alcancem sucesso econômico, muitos outros permanecem no poder apesar de resultados econômicos ruins e do empobrecimento de seus cidadãos. A sobrevivência desses regimes frequentemente depende de repressão sistemática e táticas brutais, incluindo intimidação, vigilância e cooptação.

A democracia, no entanto, não pode se acomodar. Como observa Larry Diamond, “a crença na legitimidade da democracia pode ser moldada pela cultura e pela história, mas também é impulsionada pelo desenvolvimento econômico e pelo desempenho de regimes presentes em comparação com os anteriores”. Esse é um ponto especialmente relevante em um momento em que várias não democracias e regimes em retrocesso estão ganhando legitimidade e demonstrando que podem entregar resultados, ou pelo menos aparentam fazê-lo, apesar dos processos políticos imperfeitos.

Com a legitimidade do desempenho em mente, diversas autocracias e democracias em retrocesso têm utilizado projetos de infraestrutura para sinalizar competência, uma vez que são bens públicos altamente visíveis e indutores de crescimento, capazes de gerar benefícios tangíveis para os cidadãos. Embora a China seja um exemplo notável, especialmente com sua Iniciativa do Cinturão e Rota, outras não democracias seguiram o mesmo caminho, como o Cazaquistão com seu programa de construção de estradas Nurly Zhol (Caminho Brilhante). Entre as democracias em retrocesso, há evidências de que os investimentos da Turquia em transporte e infraestrutura social aumentaram o apoio ao governo do AKP.

Em contraste, algumas das democracias mais consolidadas do mundo, incluindo Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido, têm enfrentado dificuldades até mesmo para manter a infraestrutura existente. Os EUA, notadamente, ganharam reputação por sua infraestrutura decadente e por projetos caros e problemáticos, exemplificados pelo colapso da Ponte Francis Scott Key em Baltimore em 2024 e pelo progresso extremamente lento do projeto de trem de alta velocidade da Califórnia, aprovado pelos eleitores do estado em 2008.

Existem algumas razões óbvias pelas quais as democracias não conseguem realizar projetos públicos voltados ao bem-estar, como infraestrutura, tão rapidamente quanto as autocracias. Por um lado, a devida diligência necessária para acordos ambientais, sociais e de governança pode atrasar projetos, ainda que com a boa intenção de evitar danos ao meio ambiente. Talvez ainda mais importante, a maioria das democracias consolidadas construiu sua infraestrutura há décadas, o que significa que novos investimentos frequentemente se destinam à manutenção do estoque existente em vez de à construção de novas obras.

Além disso, considerações sobre direitos de propriedade e desapropriações podem impedir o Estado de construir facilmente grandes projetos que cruzam comunidades existentes sem o devido processo legal. Autocracias não enfrentam essas restrições.

Em última análise, a prestação de serviços é simplesmente mais difícil em ambientes políticos democráticos, onde há atores com poderes formais e informais de veto, ênfase excessiva em procedimentos e mecanismos amplos de participação cidadã em projetos públicos, um ecossistema em constante evolução de mídia independente e tecnologias de informação e comunicação, horizontes políticos de curto prazo e um ceticismo geral sobre a benevolência do governo.

A percepção de que a democracia é incapaz de entregar resultados para seus cidadãos, ou pelo menos faz isso de maneira ineficaz, está amplamente disseminada. As conquistas das democracias consolidadas eram antes incomparáveis: o Reino Unido inaugurou o primeiro sistema de metrô do mundo, o London Underground, em 1863. Os Estados Unidos, sob Franklin D. Roosevelt, construíram a Ponte Golden Gate, a Ponte da Baía de Oakland e a Represa Hoover em um intervalo de cinco anos na década de 1930. Hoje, os requisitos de licenciamento por si só tornariam tais conquistas impossíveis nos Estados Unidos. Então, o que as democracias podem fazer para recuperar sua capacidade de entrega?

Para reconstruir a confiança na democracia, caberá aos governos darem os primeiros passos e reunirem a vontade política necessária para realizar projetos ambiciosos. No entanto, para investimentos de longo prazo, como infraestrutura ou soluções para mudanças climáticas, governos em exercício sempre temem que a oposição um dia receba o crédito por suas iniciativas. Superar esses inevitáveis problemas de confiança para restaurar a fé na capacidade da democracia de entregar resultados exigirá um amplo consenso entre diferentes partes do espectro político.

É claro que a infraestrutura não é o único componente da entrega em democracias. Programas governamentais podem abordar uma série de questões sociais, incluindo saúde, nutrição, educação e emprego. Os programas do New Deal, lançados durante a Grande Depressão (1929–1940), ilustram como os gastos sociais podem entregar esses bens aos cidadãos, conquistando sua confiança e apoio.

Em democracias menos desenvolvidas, uma série de políticas se mostrou eficaz na redução da pobreza, ao mesmo tempo em que conquistou ampla popularidade, tornando-se politicamente vantajosas para os governantes. Exemplos incluem programas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Família do Brasil e a Cobertura Universal de Saúde da Tailândia. Essas medidas não apenas reduzem a pobreza e promovem o bem-estar público, mas fortalecem o apoio popular aos governos que as implementam.

As gerações mais jovens em países que experimentaram “décadas perdidas” de estagnação econômica também apresentam altos níveis de desconfiança em relação ao governo

A boa gestão econômica e a criação de empregos também são essenciais. Isso é especialmente importante para os jovens, que demonstram maior insatisfação com a democracia. As gerações mais jovens que ingressam no mercado de trabalho em países que experimentaram “décadas perdidas” de estagnação econômica, como Espanha, Grécia e Japão, também apresentam altos níveis de desconfiança em relação ao governo.

Nada disso implica que as democracias devam imitar governos autoritários para aumentar a velocidade do progresso. Críticos da democracia devem reconhecer uma distinção fundamental entre o governo democrático e o autoritário: o poder dos eleitores nas democracias de responsabilizar seus líderes. Essa diferença essencial destaca a grande vantagem das democracias: sua capacidade de corrigir rumos e se adaptar às necessidades e demandas da sociedade por meio da transição pacífica de poder, quando respeitada.

Mas, apesar de todas as virtudes e vícios da democracia, existem contradições internas que afetam o quanto e como os governos podem avançar em suas agendas políticas. As restrições ao Poder Executivo e as estruturas de responsabilização impostas por eleições competitivas são mecanismos necessários de controle, mas o foco excessivo nos processos democráticos e administrativos pode dificultar o progresso nas áreas que os cidadãos mais desejam ver avançar. A institucionalização de uma abordagem maximalista da democracia por meio de procedimentalismo excessivo, na melhor das hipóteses, levará a atrasos na entrega de resultados, minando ainda mais a confiança dos cidadãos no projeto democrático. Para restaurar essa confiança, as democracias devem resolver essas tensões internas, encontrando o equilíbrio adequado entre entrega e responsabilização, garantindo ambos.

***

O artigo completo será publicado na edição de outubro do Journal of Democracy em Português, da Plataforma Democrática (Fundação FHC e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais). As demais edições estão disponíveis gratuitamente para download.


*Francis Fukuyama é pesquisador sênior, diretor do Instituto Freeman Spogli de Estudos Internacionais e professor (por cortesia) de ciência política na Universidade de Stanford. Chris Dann é doutorando em ciência política na Universidade de Stanford. Beatriz Magaloni é professora de Relações Internacionais no Departamento de Ciência Política da Universidade de Stanford.

O Meio sempre foi mais do que notícia. Entregamos análise crítica, diálogo inteligente e aprendizado. Nossos cursos de inteligência artificial, história, política, tecnologia e economia cabem no seu tempo e não falam mais do mesmo. Se você já é assinante, tem 20% de desconto na assinatura anual do Meio Premium + Cursos. Acesse e aproveite o desconto.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Já é assinante premium? Clique aqui.

Este é um conteúdo Premium do Meio.

Escolha um dos nossos planos para ter acesso!

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual

*Acesso a todos os cursos publicados até o semestre anterior a data de aquisição do plano. Não inclui cursos em andamento.

Quer saber mais sobre os benefícios da assinatura Premium? Clique aqui.