O paradoxo dos democratas intolerantes

Como o argumento de Popper contra a intolerância vem sendo convertido em licença para práticas autoritárias – e por que isso ameaça a própria sociedade aberta que ele defendia.
Caro leitor, sugiro que você faça um experimento social de natureza política. É simples, e o resultado será muito educativo. Se o seu interlocutor for conservador, diga que você não acha que deva ser banido aquele vídeo do Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como um homem gay, nem que Porchat e Duvivier devam ir para a cadeia por vilipêndio religioso, embora compreenda que muitos cristãos tenham se sentido ofendidos por essa caracterização de Cristo. Em nome da liberdade artística, alguns sapos precisam ser engolidos. Se o interlocutor for progressista, manifeste seu dissenso com a condenação de Leo Lins por contar piadas debochando de minorias e grupos vulneráveis, embora considere razoável esperar que muita gente pense que o comediante ofende minorias, ajuda a perpetuar preconceitos e até cometa crime de racismo – ainda mais do tipo “recreativo”. Mais um sapo que o pluralismo nos ensina a engolir.
Além do horror que você provocará no seu interlocutor, que imediatamente procederá à reclassificação, para baixo, do seu caráter e do seu valor como ser humano, prepare-se para uma sequência invariável de respostas. No cardápio não faltarão três itens.
Primeiro, virá uma declaração de que a demanda por interdição e punição nem deveria estar sendo discutida, uma vez que o comportamento condenado já é tipificado como crime e a lei – principalmente contra os adversários – tem que ser cumprida. A depender dos valores da pessoa diante de você, ouvirá enunciados como “intolerância religiosa é crime” ou “racismo é crime”. É claro, porém, que em lugar de “racismo” ou de “intolerância” podem estar pedofilia, corrupção da infância, incentivo à homossexualidade, apologia da maconha, transfobia ou misoginia – numa lista necessariamente aberta de comportamentos intoleráveis para quem tenha valores morais. E, para o seu interlocutor, é evidente que você não os tem. A objeção de que há uma diferença entre a existência de uma lei e sua adequada aplicação ao caso não será considerada. Muito menos o argumento de que, talvez, a aplicação desejada da lei seja injusta ou inapropriada.
Em segundo lugar, costuma vir uma recusa preventiva do princípio que se supõe estar em jogo. Se estiver falando com alguém progressista, a suposição será de que você está defendendo a liberdade de expressão como o mais sublime dos direitos – e então prepare-se para ser lembrado de que “não existe liberdade de expressão absoluta”, coisa que você, por óbvio, nunca pensou em enunciar.
Já os conservadores assumirão que você está defendendo um regime irrestrito de liberdades e farão questão de lhe ensinar a diferença entre “liberdade e libertinagem” – o libertino, no caso, é você. Se o pressuposto atribuído for o da “compaixão humanista”, o contra-ataque pode vir na forma de: “se tem pena do bandido, leva pra casa”; “quero ver quando for com a sua irmã ou com o seu filho”; ou “errou, tem de pagar”. Contra isso, dizer que, mesmo reconhecendo os limites de qualquer liberdade, os direitos civis de quem está sendo julgado devem ser protegidos numa democracia consequente será recebido como sintoma de uma falácia liberal ou, o que é pior, de uma racionalização em interesse próprio.
Por fim, se o interlocutor for progressista, prepare-se para a derrota por xeque-mate filosófico: “você certamente nunca ouviu falar do paradoxo da tolerância de [Karl] Popper”. O tom será triunfante, e a frase final – “os intolerantes não devem ser tolerados” – virá com um sorriso matreiro e condescendente. Esse argumento é considerado simultaneamente letal e sofisticado em certos círculos progressistas. Funciona como citar Brecht durante quebra-quebras para justificar atos de violência política: “violento se diz do rio que tudo arrasta; nada se diz, porém, das margens que o oprimem”. Pronto. Uma carta branca lírica acaba de entrar no jogo. Ou como, diante de quem hesita em aderir aos constrangimentos públicos contra adversários políticos, citar a história segundo a qual “se há dez pessoas numa mesa, chega um fascista e ninguém se levanta, há onze fascistas naquela mesa”.
O problema do “paradoxo da tolerância” é que ele é um paradoxo, isto é, uma forma de enunciação que contém uma tensão normativa – e não um princípio categórico. O paradoxo é uma forma lógica de expressão de uma ideia que, em princípio, poderia ser dita como uma afirmação condicional ou como princípio normativo. Escolhe-se a forma do paradoxo para se mostrar que um determinado princípio, correto, se tomado como absoluto, produzirá uma autocontradição performativa (uma implosão lógica) e acabará, na prática, por gerar o contrário do que se deseja afirmar. O paradoxo, a rigor, é uma quase contradição, que escapa a essa condição apenas porque a tensão interna que ele enuncia ainda permite uma saída.
Em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Popper escreve:
“A tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo aos intolerantes [...] os tolerantes serão destruídos, e a tolerância com eles.” (vol. I, cap. 7, nota 4)
O paradoxo da tolerância está formulado, diga-se, num livro que é uma defesa da sociedade aberta, ou seja, de uma ordem liberal e pluralista em que a tolerância não é uma concessão nem uma virtude opcional, mas uma condição estrutural da democracia. É curioso, portanto, que um argumento elaborado para justificar a vigilância contra a intolerância autoritária seja invocado, com frequência, como salvo-conduto para o exercício da intolerância progressista. Ou seja, o filósofo que escreveu uma obra monumental contra os inimigos da sociedade aberta acaba sendo usado como valhacouto justamente por aqueles que adotam, sob outra gramática, práticas de perseguição e cancelamento que ele denunciaria.
O que Popper realmente propõe, ao formular o paradoxo, não é uma regra simples, mas o reconhecimento de uma tensão inerente à sociedade aberta
Deixemos de lado essa ironia da história. O uso progressista do paradoxo da tolerância como justificativa para a intolerância seletiva merece exame mais rigoroso. O que Popper realmente propõe, ao formular o paradoxo, não é uma regra simples do tipo “os intolerantes não devem ser tolerados”, mas o reconhecimento de uma tensão inerente à sociedade aberta. Uma sociedade livre, baseada no pluralismo, na dissensão e na troca pública de razões, precisa se proteger contra aqueles que se mobilizam justamente para destruir esses fundamentos. No entanto, essa proteção não pode ser genérica nem arbitrária – ela precisa ser guiada por critérios precisos que evitem que o remédio vire veneno.
Popper não está dizendo que qualquer opinião perigosa, qualquer ideia ofensiva ou qualquer defesa de valores contramajoritários deva ser considerada intolerável. O que ele formula é algo mais rigoroso: que há casos em que determinadas práticas ou discursos colocam em risco o próprio convívio plural e democrático – especialmente quando incitam a violência ou a brutalidade, quando desautorizam o uso da razão, quando interditam o dissenso ou constrangem fisicamente a alteridade. Nestes casos, sim, “em nome da tolerância, temos o direito de não tolerar a intolerância” – mas trata-se de um direito condicionado, e não absoluto, como querem os militantes que fazem do paradoxo uma justificativa moral para a censura.
Ele mesmo adverte, literalmente, sobre os intolerantes:
“Enquanto pudermos enfrentá-los com argumentos racionais e mantê-los sob controle pela opinião pública, a repressão certamente será um erro.” (ibid.)
Aliás, o que Popper apresenta não é apenas o paradoxo da tolerância, mas um conjunto de três paradoxos fundamentais da sociedade aberta. Além do já citado, há o paradoxo da liberdade e o paradoxo da democracia. Esses três paradoxos têm algo em comum: todos partem da percepção de que certos princípios liberais, inteiramente válidos, se tomados de forma absoluta, podem ser instrumentalizados contra a própria sociedade que os sustenta e resultar em uma contradição com o que pretendem garantir. O paradoxo é, aqui, uma figura lógica que revela a tensão interna de certos ideais que podem levar à sua autocontradição performativa. A lição não é abandoná-los, mas formular princípios normativos que contenham essa deriva.
No caso da liberdade, Popper aponta que a liberdade irrestrita pode gerar sua própria supressão: se o mais forte é livre para oprimir o mais fraco, a liberdade acaba por ser apenas a liberdade dos opressores. Daí a formulação de um princípio da liberdade autolimitada: a liberdade deve ser protegida contra aqueles usos que tenham por efeito a destruição da própria liberdade, sobretudo quando instrumentalizada para legitimar a opressão dos vulneráveis ou a supressão das liberdades alheias.
Não é o desconforto ou a ofensa o que autoriza a repressão, mas a ameaça concreta à coabitação democrática
No caso da tolerância, a proposta é mais precisa: ela deve ser sustentada por uma exigência mínima de reciprocidade. Apenas ideias, práticas e movimentos ativos - por meio da violência ou da incitação à brutalidade - na violação da diferença e do diálogo, podem ser excluídos da esfera pública democrática. Isso significa que não se trata de excluir tudo que desagrada a um lado, é julgado perigoso ou vil, ou fere sensibilidades. Trata-se de identificar, com base em critérios funcionais – e não moralizantes –, aquilo que inviabiliza o convívio plural e destrói as condições de reconhecimento mútuo entre cidadãos. Em outras palavras, não é o desconforto ou a ofensa o que autoriza a repressão, mas a ameaça concreta à coabitação democrática.
Por fim, o paradoxo da democracia: Popper reconhece que uma sociedade democrática pode, por via majoritária, eleger um tirano. A crítica aqui não é à democracia, mas à absolutização da soberania popular. O problema está em tomar o voto da maioria como fonte última e incontestável de legitimidade do eleito para fazer o que lhe der na telha. Quando isso ocorre, abrem-se as portas para que o regime democrático se autodevore. Daí o princípio da democracia com garantias: a democracia deve conter salvaguardas institucionais que impeçam que a soberania da maioria seja usada para suprimir direitos fundamentais, eliminar a minoria, dissolver os limites do poder ou legitimar a ascensão de tiranias eleitas.
Tomados em conjunto, esses três princípios – liberdade com proteção contra sua autodestruição, tolerância com exigência mínima de reciprocidade e democracia com contenções institucionais – compõem o núcleo normativo da sociedade aberta popperiana. Não são fórmulas de exceção, mas critérios de autocontenção. E não são mandamentos morais para expurgar adversários, mas instrumentos para preservar o dissenso e a diversidade contra toda tentação à regressão autoritária.
Dizer que os intolerantes não devem ser tolerados não é o mesmo que transformar toda ideia ofensiva em ameaça pública. O que está em jogo é um cuidado com os limites que preservam a convivência plural: não recorrer à violência e não interditar o dissenso público. Quando se absolutiza o paradoxo e se faz dele um pretexto para prender, punir e calar, acabamos sendo nós mesmos os intolerantes que o princípio pretende excluir. E então, sim, a serpente devora o próprio rabo.