O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Populismo reacionário em 3D

Foto: Isac Nóbrega/PR / World Economic Forum/Ciaran McCrickard

Receba as notícias mais importantes no seu e-mail

Assine agora. É grátis.

Fenômeno da direita radical deve ser analisado por três ângulos: centro x periferia, Velho e Novo Mundo e as condições de cada país

O populismo autoritário de direita, que atravessa as democracias ocidentais desde a última década, permanece como a principal reação política às disfunções e assimetrias produzidas pela globalização. Embora apresente traços comuns em diferentes contextos, está longe de ser um fenômeno homogêneo. Para compreender sua lógica e suas dinâmicas, é necessário observá-lo em três dimensões simultâneas: a clivagem centro-periferia, a diferença estrutural entre Velho e Novo Mundo e as condições políticas e institucionais específicas de cada país.

Na primeira dimensão, a clivagem centro-periferia, o populismo reacionário se manifesta, no centro do sistema internacional — Estados Unidos e Europa Ocidental —, como resposta direta ao declínio relativo da hegemonia ocidental diante da ascensão da China, da Rússia, da Índia e de outras potências do Sul Global. Diante da erosão de sua centralidade econômica, geopolítica e simbólica, as antigas potências reagem com o fechamento de fronteiras — comerciais, migratórias e culturais —, com a corrosão dos regimes multilaterais que elas próprias criaram e com a tentativa deliberada de restaurar uma hierarquia internacional que lhes devolva a primazia perdida. O populismo reacionário funciona, nesse contexto, como a ideologia política dessa restauração hierárquica, projetando para fora o mesmo programa de restauração social e cultural que mobiliza no plano doméstico.

O populismo reacionário americano opera como uma reação contra qualquer avanço democratizante

A segunda dimensão, a clivagem entre Velho e Novo Mundo, produz dinâmicas diferenciadas. Na Europa, sociedades historicamente estruturadas sobre bases nacionais relativamente homogêneas reagem prioritariamente a ameaças externas — notadamente à imigração africana, árabe e asiática, percebida como risco à coesão cultural, étnica e religiosa. Aqui, o populismo reacionário organiza-se em torno de uma retórica civilizacional, que opõe a cultura europeia a seus “inimigos externos”, reais ou imaginados. Nas Américas, o quadro é diverso. Sociedades construídas a partir da colonização, da escravidão e da mestiçagem, marcadas por desigualdades estruturais e por hierarquias raciais persistentes, o populismo reacionário mobiliza-se não apenas contra ameaças externas, mas sobretudo contra pressões internas. O inimigo, aqui, não é apenas o estrangeiro: são também os setores subalternizados — negros, indígenas, mulheres e populações LGBTQIA+ —, cujas demandas por inclusão, reconhecimento e reparação são percebidas como ameaças diretas à ordem social, racial e cultural que historicamente sustentou a dominação das elites brancas e cristãs. O populismo reacionário americano opera, portanto, como uma reação contra qualquer avanço democratizante, seja no plano étnico-racial, seja no campo dos direitos civis e das políticas redistributivas.

Na terceira dimensão, a nacional, o fenômeno se adapta às condições internas de cada país. Na América Latina, diferentemente do centro, o populismo reacionário não decorre nem da ansiedade geopolítica nem da pressão migratória. Ele surge principalmente como uma reação endógena, expressão da resistência das elites econômicas, militares e religiosas — e de parcelas das classes médias — contra os efeitos cumulativos de quatro décadas de democratização social, de modernização econômica e de expansão dos direitos. No caso argentino, ele emerge como expressão do colapso econômico prolongado e do esgotamento do modelo peronista, que abriu caminho para um populismo de novo tipo — libertariano no plano econômico e abertamente antipolítico no plano institucional, cujo traço definidor é o ataque simultâneo ao sistema político, ao Estado social e às mediações institucionais.

No Brasil, o bolsonarismo emergiu da confluência de três fatores: a crise terminal do modelo de governabilidade da Nova República; a reação de partes das classes médias e das elites econômicas aos efeitos sociais da Constituição de 1988, do ciclo progressista e das políticas de inclusão social; e a articulação bem-sucedida entre forças militares, neopentecostais, empresariais e redes digitais de desinformação, que conferiram ao movimento uma capacidade inédita de mobilização extra institucional. Por meio de memes e vídeos no WhatsApp e no X, o bolsonarismo ataca o STF e o governo Lula, explorando a lentidão das instituições democráticas. Seu fracasso na tentativa de ruptura institucional em 8 de janeiro de 2023 não resultou em sua eliminação, mas em sua retração parcial, sem que as condições estruturais que o produziram tenham sido superadas.

Esse quadro se consolida com o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Sua volta não é apenas a retomada de uma liderança pessoal, mas a intensificação de um reacionarismo programático de alcance global, organizado em dois eixos centrais. No plano externo, a nova administração norte-americana busca restaurar a hierarquia internacional, com a contenção da China, a desestabilização dos BRICS e a pressão sobre os países do Sul Global para subordinar seus projetos de desenvolvimento aos interesses dos Estados Unidos. No plano interno, abandona qualquer compromisso, mesmo retórico, com o liberalismo político, usando legislações de exceção para restringir direitos civis, suprimir garantias constitucionais e enfraquecer os mecanismos de controle dos poderes.

Trump se torna a liderança central de uma internacional reacionária, cujos efeitos se projetam sobre todos os regimes democráticos, inclusive os do Sul Global

A isso se soma um elemento decisivo para a nova etapa da internacional reacionária: a defesa da não regulação das plataformas digitais, vistas como essenciais para o extremismo de direita, a radicalização política e a corrosão dos regimes democráticos. As redes sociais funcionam como canais de mobilização permanente, desinformação sistemática e desestabilização institucional. Enquanto a extrema-direita domina as redes com mensagens rápidas, o Estado, preso a processos analógicos, não acompanha o ritmo. Trump se torna, assim, a liderança central de uma internacional reacionária, cujos efeitos se projetam sobre todos os regimes democráticos, inclusive os do Sul Global.

O bolsonarismo se reposiciona como expressão periférica desse projeto. Sem a força interna de antes, aposta no respaldo diplomático, político e simbólico do trumpismo global para rearticular sua base, pressionar as instituições e reconquistar espaço no sistema político brasileiro. No entanto, o quadro doméstico é hoje distinto daquele que prevalecia na década anterior. A extrema-direita brasileira encontra-se, de fato, enfraquecida.

Paradoxalmente, esse enfraquecimento não resulta apenas da repressão institucional que se seguiu à tentativa de golpe, mas sobretudo do sucesso da direita convencional, que se expandiu, se diversificou e se consolidou como força política autônoma, assumidamente conservadora, liberal na economia e institucional no funcionamento. A multiplicação de candidaturas competitivas no campo da direita — que hoje ocupa posições de governo, de parlamento e de opinião pública — reduziu significativamente o espaço político para projetos abertamente iliberais ou antipolíticos. Ainda assim, o cenário permanece estruturalmente instável.

Não se pode descartar que a eleição presidencial de 2026, dependendo da dinâmica da campanha e da interação entre variáveis econômicas, sociais e internacionais, abra espaço para a emergência de uma nova candidatura de perfil antissistema, capaz de reativar dinâmicas autoritárias que hoje parecem temporariamente contidas. O populismo reacionário permanece, portanto, como uma variável estrutural da política contemporânea, moldado por suas lógicas globais, hemisféricas e nacionais.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Esta é uma matéria para assinantes premium.
Já é assinante premium? Clique aqui.

Meio Premium: conteúdo pensado para leitores influentes

Quem toma decisões – seja na vida corporativa, profissional ou pessoal – precisa estar bem informado. Assinantes do Meio Premium recebem reportagens, análises e entrevistas que esclarecem os temas mais complexos da atualidade. Os últimos avanços tecnológicos, a geopolítica mundial, a crise climática – não há assunto difícil para o Meio.

Edição de 06/12/2025
EDIÇÃO DE SÁBADO

Uma newsletter elaborada com cuidado durante a semana, sempre com temas importantes e um olhar inovador e aprofundado sobre eles. Política, comportamento, cultura, vida digital apresentados em textos agradáveis e leves para você ler com calma no fim de semana.

Edição de 03/12/2025
MEIO POLÍTICO

Às quartas, tentamos explicar o inexplicável: o xadrez político em Brasília, as grandes questões ideológicas da atualidade, as ameaças à democracia no Brasil e no mundo. Para isso, escalamos especialistas que escrevem com base em pesquisas e fatos.

assine

Já é assinante? Clique aqui.

Nossos planos

Acesso a todo o conteúdo do Meio Premium com 7 dias de garantia e cancelamento a qualquer momento.

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Meio Político
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*

Assine por R$ 15/mês

ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual, equivalente a R$ 12,50 por mês.

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Meio Político
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 5 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio

Assine por R$ 70/mês

ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual, equivalente a R$ 58,34 por mês.

Premium + Cursos

Para aqueles que querem aprimorar seu conhecimento, assine agora o plano Meio Premium + Cursos. Assista os cursos do acervo dos Cursos do Meio na sua TV, celular ou computador. Política, história, inteligência artificial, aprimoramento profissional. Temas importantes explicados por especialistas no assunto.

Capa do curso do Meio: IA modo de usar

Capa do curso do Meio - Ideologias brasileiras

Capa do curso do Meio: Israel e Palestina

Capa do curso do Meio: O fim da nova república?

Capa do curso do Meio: Você pode ser um liberal e não sabe

Capa do curso do Meio: Você na mídia

assine

Já é assinante? Clique aqui.

O que é o Meio

O Meio é uma plataforma de jornalismo pensada para o século 21. Acreditamos que informação de qualidade fortalece a democracia, por isso entregamos notícias e análises que ajudam você a entender o agora e decidir melhor. Seja por e-mail, vídeo ou podcast, chegamos até você da forma que mais combina com a sua rotina.

Christian Lynch

Cora Rónai

Creomar de Souza

Deborah Bizarria

Flávia Tavares

Márvio dos Anjos

Mariliz Pereira Jorge

Pedro Doria

Wilson Gomes