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Desafios do campo evangélico para o novo presidente do PT

Fotos: Carl de Souza/AFP e Divulgação/Edinho Silva

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Edinho Silva terá de encarar o caráter heterogêneo desse segmento para romper sua resistência ao partido e à esquerda

O Partido dos Trabalhadores (PT) terá novo comando nos próximos dias, com o ex-ministro e ex-prefeito de Araraquara Edinho Silva assumindo a presidência com o desafio nada pequeno de preparar a legenda para a eleição de 2026 e a transição, nos próximos quatro anos, rumo a um Brasil, um PT e uma esquerda sem Luiz Inácio Lula da Silva disputando o voto do eleitorado brasileiro.

Há poucos dias, Edinho Silva publicou no jornal Folha de S. Paulo o que pode ser visto como uma carta de intenções. Deu destaque especial a como o Brasil e o governo precisarão lidar com o tarifaço imposto por Donald Trump, e também à relação entre o Executivo e o Congresso num contexto desfavorável ao governo, falando, de forma apaziguadora, em “cicatrizar as feridas deixadas pela recente batalha envolvendo o IOF”. Defendeu a recente campanha da justiça tributária promovida pelo governo e o PT, respondendo à crítica de que se trata de uma versão do “nós contra eles” e argumentando o necessário debate sobre carga tributária, desigualdade de renda e privilégios. Por fim, e importantíssimo, listou o que chamou de “agenda de futuro que fuja do varejo político e dos interesses individuais”, na qual incluiu reforma político-eleitoral, transição energética, uso dos recursos advindos da exploração do petróleo e política de segurança pública.

Se o PT e o governo querem sobreviver política e eleitoralmente nos próximos anos e, sobretudo, responder adequadamente às expectativas da maioria dos brasileiros, creio que Edinho Silva precisará incluir outra dimensão espinhosa, e sobre a qual os petistas e a esquerda em geral seguem patinando na interpretação e nas ideias: o diálogo com a vasta camada da população que se apresenta como evangélica. É um segmento que, como se sabe, tem crescido significativamente, atingindo, segundo o Censo do IBGE de 2022, quase 27% da população, enquanto o percentual de católicos, que foi e é maioria, diminuiu para 56,7%.

A despeito do crescimento mais modesto do que se esperava em relação ao Censo anterior, trata-se de uma parcela importante da população com demandas e lentes por vezes novas para a política brasileira, que exigem atenção. Ainda mais diante do fato inquestionável de que, nas duas últimas eleições presidenciais, votou majoritariamente em Jair Bolsonaro e no bolsonarismo.

Mas não basta a atenção, é preciso atualizar a leitura de cenários sobre um campo religioso e político, que é dinâmico, e saber que tipo de atenção se dará.

Como, a partir das eleições de 2018, parecia que o ultraconservadorismo surgia empurrado por uma religião que brotava do chão e a política havia se tornado, do dia pra noite, “cristã”, saímos com a tarefa importante no debate público de pontuar diferentes aspectos que denotavam preconceito e desinformação, especialmente com relação ao campo evangélico.

Não raro se via, e ainda se vê, a população evangélica como uma mera massa de manobra de pastores radicais

Não raro se via, e ainda se vê, a população evangélica como uma mera massa de manobra de pastores radicais e passamos a enxergar apenas a combinação entre valores conservadores e a associação direta entre a identidade cristã, a bancada evangélica no Congresso e o bolsonarismo. Como um casamento em que o exercício da fé se associa, necessariamente, a um antiesquerdismo e ao desejo por ordem, família, moral e bons costumes.

Essa combinação existe e é cada vez mais forte e mobilizada por lideranças políticas e religiosas e poucos a negam, mas não é tudo.

Nesse cenário, portanto, passamos os últimos oito anos — duas eleições municipais e uma nacional — martelando e martelando que era importante que as forças políticas progressistas, primeiro, passassem a enxergar no campo evangélico a heterogeneidade que lhe é característico; e, segundo, compreendessem que a identidade evangélica é uma entre muitas outras que fazem parte do perfil deste eleitorado. Ambas as premissas seguem válidas e importantes de serem lembradas a todo momento na construção de estratégias de interlocução com essa parcela da população.

Mas isso também precisa ser combinado com a dimensão de que é, também, a partir do campo cristão — católico e evangélico — representado e organizado na política brasileira, que as ameaças mais graves à democracia, aliadas à extrema direita, operam hoje. É como se fosse um esforço de combinar diagnósticos que supostamente seriam excludentes, ou se anulariam, mas não são. E, por vezes, a esquerda tradicional, o PT e o governo, em particular, escolhem um em detrimento do outro para lidar com esse segmento.

Ou trata-se de um segmento dominado e cooptado pelo ultraconservadorismo e aqui só restaria o pragmatismo político nu e cru de negociar o que se pode e considerá-los uma ameaça crescente e permanente, ou a forma de refinar a estratégia de diálogo seria, quase como um mantra, repetir que são heterogêneos, diversos, e assim não aterrizar em nada concreto e não conseguir se conectar politicamente com as pessoas reais, suas realidades e necessidades.

O ‘mundo evangélico’ é o mesmo enfrenta os problemas cotidianos brasileiros: insegurança, desemprego ou descrença nas instituições do país

Em outras palavras, para dar atenção a esse segmento e dialogar com ele, bastaria manter uma negociação pragmática e permanente com lideranças religiosas que estão na política hoje e são cada vez mais chantagistas com forças políticas democráticas no Brasil, afinal eles deteriam o poder de penetração e influência nas suas bases. Ou bastaria considerar um diálogo amplo com a sociedade, e o eleitor, sem considerar as especificidades de suas identidades, que passa também pela identidade religiosa.

De novo, essa não é toda a história. A identidade evangélica existe, assim como existem, no paralelo, outras identidades — como, por exemplo, a condição de mulher, de pessoa negra, de arrimo de família. Ou seja, esse “mundo evangélico” é o mesmo que precisa enfrentar os problemas cotidianos de quase todo brasileiro: insegurança, homicídios, desemprego ou descrença nas instituições do país.

Se é verdade que, conforme as pesquisas indicam, os evangélicos não se destacaram apenas por sua presença numérica, mas também por seu ativismo de fé, também é verdade que são cidadãos e cidadãs conectados a demandas e dinâmicas sociais que não dizem respeito apenas à sua identificação religiosa. Fiéis, sim. Mas não apenas. São pessoas que têm na sua fé um elemento importante para as suas escolhas eleitorais, mas ao mesmo tempo têm suas dificuldades financeiras, seu medo diante da violência, suas angústias ante a perspectiva de ver perder o emprego e a renda, entre outros problemas.

E é nessa convivência de identidades que o PT de Lula e Edinho Silva precisa trafegar. Pode-se falar em uma identidade evangélica, que se apresenta simultaneamente à identidade negra, por exemplo. Ou feminina. Ou de cuidadora da família. Ou de mulher, negra, periférica e cuidadora da família. E assim por diante. Detalhando mais um pouco: mulheres são, em grande parte, responsáveis pelo cuidado e pela subsistência das famílias e, portanto, dão prioridade a ofertas de ações públicas que façam diferença na gestão da vida cotidiana. É algo que tem sido instrumentalizado por movimentos políticos de direita apenas sob o slogan “família”. Mas essa família não se resume a uma imagem de cunho moralista, é também um elemento afetivo e social importante, diretamente ligado à responsabilidade dos vínculos que recaem sobre as mulheres.

Não é raro, porém, que entre petistas e integrantes do governo, seja tudo um problema de captura do voto a partir de valores conservadores e símbolos religiosos ou, o que é o mais grave, resuma-se a um problema de comunicação entre o governo e esse segmento. Em princípio, são louváveis iniciativas como a da Fundação Perseu Abramo, que elaborou cartilha para candidatos se comunicarem melhor com o eleitorado evangélico. Mas há uma dificuldade crônica, especialmente dentro do governo, não só na forma mas também no conteúdo. O que quero dizer? Que não é uma questão apenas de linguagem, e sim da convicção a ser difundida de que todas as identidades envolvidas num só segmento precisam ser respeitadas.

Pesquisas têm indicado que uma mulher negra evangélica pode se sentir agraciada com políticas públicas implementadas pelo governo do momento, mas continuará a achar que não terá sua identidade evangélica respeitada pelo governo Lula, o PT e a esquerda — e assim uma identidade acaba anulando a outra e alterando a sua preferência eleitoral. Em recente discurso, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro explorou essa aparente contradição, relacionando sensibilidades e medos ao respeito à identidade evangélica. Os números do voto nas eleições de 2018 e 2022 confirmam a eficiência com que o bolsonarismo mobiliza esses diferentes fatores, e a brasa da dúvida espalhada sobre a cabeça de eleitores e eleitoras identificados como evangélicos ou, de maneira mais ampla, como cristãos.

Há mais complexidades a explorar, que não cabem num só artigo. Mas exigirão de Edinho Silva e seus aliados no PT e na esquerda refletirem mais sobre como tratarão essas identidades que parecem conhecer apenas em parte.


*Ana Carolina Evangelista é cientista política com mestrado em relações internacionais pela PUC-SP e em gestão pública pela FGV-SP. É pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Faz cobertura eleitoral desde 2018 com colunas na 'piauí' e no 'UOL'.

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