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A ascensão do autoritarismo legislativo

Foto: Cris Bouroncle / AFP
Foto: Cris Bouroncle / AFP

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Como o caso do Peru joga luz nos perigos de parlamentos disfuncionais e com ímpetos de autoblindagem em toda a América Latina

O século 21 trouxe uma nova ameaça à democracia na América Latina. Esse perigo não vem de golpes militares ou de presidentes que usurpam seu poder, mas de um lado mais surpreendente: de legislaturas eleitas pelo povo. Os estudos sobre o retrocesso democrático enfatizam os perigos do “engrandecimento do Executivo”, com o Poder Legislativo sendo visto como uma das ferramentas que o Executivo usa ao tentar concentrar o poder. Esse relato, entretanto, não pode explicar casos contemporâneos, como os da Guatemala e do Peru, onde fortes tendências autoritárias se manifestaram no próprio Poder Legislativo.

Esse caminho não Executivo para o retrocesso ainda não foi bem compreendido. A presença de um corpo de legisladores democraticamente eleitos no centro de um regime autoritário parece contraintuitiva. No entanto, em determinadas circunstâncias, a hegemonia legislativa pode se tornar real. Compreender essas condições — e as formas de lidar com elas para proteger a democracia constitucional — é uma tarefa importante para quem estuda a governança democrática.

Como é amplamente conhecido, a América Latina tende a sofrer com Executivos que são muito fortes ou muito fracos, levando à instabilidade política em vários países. Quando o Executivo é forte demais, ele usa o Legislativo como escudo para ajudar a encobrir a concentração descontrolada de poder que subverte o Estado de direito e produz o “retrocesso democrático”. Diferentemente de um golpe militar, não há uma ruptura única com a democracia, mas sim uma cooptação gradual de instituições-chave. A Venezuela, com o golpista que se tornou presidente Hugo Chávez, e a Nicarágua, com Daniel Ortega, são dois exemplos recentes.

Quando o Executivo é muito fraco, normalmente não há coalizão de governo dentro do Legislativo. Se a economia vacilar ou se a corrupção presidencial for exposta, o congresso geralmente pedirá o impeachment e removerá o presidente. A alta frequência de impeachments na região — desde 1995, onze presidentes tiveram que deixar o cargo como resultado direto ou indireto de processos de impeachment — sugere que o uso desse mecanismo estava sendo “esticado” por motivos políticos. O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, por exemplo, sofreu impeachment e foi destituído em apenas dois dias em junho de 2012, pois não teve tempo de preparar uma defesa. A politização dessa instituição por um Legislativo dominante pode resultar em uma “armadilha do impeachment”, na qual a destituição do presidente não proporciona nenhum alívio para os problemas políticos, econômicos e sociais subjacentes, mas, em vez disso, leva a pedidos de destituição do novo presidente, e assim por diante. Os seis presidentes que o Peru teve desde 2016 sugerem Executivos fracos demais para governar e talvez o surgimento de uma “armadilha do impeachment”.

As consequências políticas do aumento do poder do Poder Legislativo sobre o Executivo ainda não estão claras. Os estudiosos inicialmente pensaram que estavam assistindo à “parlamentarização” dos regimes presidenciais. O impeachment removeu presidentes que se tornaram profundamente impopulares ou altamente corruptos, mas sem causar um colapso democrático. Embora alguns autores tenham falado de “golpes parlamentares” ou “neogolpes”, especialmente quando as bases para o impeachment eram duvidosas, a implantação de procedimentos de impeachment não era vista como uma ameaça à democracia.

As relações disfuncionais entre os poderes Executivo e Legislativo (sem uma coalizão governamental estável) foram vistas inicialmente como uma “bênção disfarçada”, pois impediam que os presidentes se tornassem poderosos o suficiente para causar um retrocesso democrático. Mais recentemente, no entanto, os estudiosos interpretaram essa disfuncionalidade como uma forma de diluição do poder ou “esvaziamento democrático”. A alta rotatividade do Executivo, como visto no Peru, é inconsistente com as noções de “engrandecimento do Executivo” ou acúmulo de poder.

A diluição do poder é um problema porque pode tornar as democracias “ingovernáveis” e pode até resultar em seu colapso.

O perigo para a democracia constitucional de um Legislativo dominante é menos bem compreendido do que o perigo do engrandecimento do Executivo. Os estudiosos do “esvaziamento democrático” consideram improvável que o Poder Legislativo realize uma tomada autoritária de poder, já que os políticos que ocupam as cadeiras do Congresso na América Latina tendem a se concentrar no curto prazo e “não sentem nenhum incentivo para cooperar” uns com os outros.

Legislaturas excessivamente ousadas e outros sinais de que as relações entre o Executivo e o Legislativo estão fora de sintonia podem acabar rapidamente com uma nova eleição e a formação de uma nova coalizão de governo. Se o domínio do Legislativo se prolongar por muito tempo, no entanto, o resultado pode ser uma coalizão de governo que desconsidera as condições básicas da democracia. Legisladores movidos por cálculos convergentes de curto prazo podem começar a colaborar na consecução de objetivos compartilhados, como aumentar seu poder sobre as instituições de controle (cortes, comissões eleitorais, e assim por diante), ao mesmo tempo em que blindam do controle. Se estiver livre de freios e contrapesos e sem uma sociedade civil que resista, um Legislativo dominante pode ser um problema tão grande quanto um Executivo que se engrandece. A Guatemala, onde uma coalizão legislativa de criminosos e oligarcas tentou desmantelar as instituições democráticas do país, é um exemplo recente.

O caso do Peru é ideal para examinar os efeitos de longo prazo sobre a democracia de uma legislatura arrogante, como a que o país tem tido desde 2016. Os partidos são hiperfragmentados e os legisladores agem principalmente de acordo com “o mais curto de seus objetivos de curto prazo”. No entanto, uma coalizão legislativa conseguiu concentrar e aumentar seu poder.

O que é autoritarismo legislativo?

Ao longo do último meio século, os cientistas políticos que estudam a democracia identificaram diferentes caminhos para a democratização e a autocratização, bem como as condições que dão origem a regimes híbridos. A hegemonia do Executivo é muito importante na maioria dos relatos. Eles mostram como regimes híbridos ou autoritários podem se formar à medida que o poder se acumula em um único líder ou em um grupo que governa por meio do Poder Executivo. O que esses relatos não mostram é como o poder também pode ser concentrado por grupos no Poder Legislativo. Essa concentração de poder define outro caminho para o retrocesso democrático, por meio do que chamamos de autoritarismo legislativo crescente.

Tradicionalmente, os acúmulos de poder fora do Executivo têm sido entendidos como uma ameaça direta à boa governança, mas apenas indireta à democracia. Alguns autores descrevem um processo de “esvaziamento democrático” no qual a democracia é corroída não por um Executivo que usurpa o poder, mas pelo fato de o poder estar excessivamente distribuído entre os políticos (geralmente deputados), que o exercem apenas de forma fragmentada e sem coordenação entre si. A democracia se enfraquece em meio à disfuncionalidade, mas nenhum caudilho ou regime autoritário parece tomar o lugar da democracia. Ignora-se o risco de que grupos de legisladores — movidos por interesses estreitos e de curto prazo — possam minar o sistema de freios e contrapesos e, assim, destruir um pilar fundamental da democracia.

Como não há um único líder forte — nenhum Alberto Fujimori (Peru), Hugo Chávez (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua) ou Nayib Bukele (El Salvador) — centralizando o poder e aumentando o controle sobre as instituições políticas, econômicas e sociais, o autoritarismo legislativo é mais difícil de ser detectado. Esses presidentes usaram o clientelismo, a força e as manipulações da lei para manter sua própria autoridade e suprimir a oposição. Os órgãos legislativos, por definição, criam legalidade: eles podem aprovar leis para expandir seus próprios poderes ou fazer com que o Poder Executivo atenda a vários grupos de interesse. Os Legislativos também podem mudar o que os tribunais podem fazer ou alterar o número e a composição dos órgãos judiciais. Na ausência de um partido governante único e disciplinado, todas essas decisões poderiam ser descartadas como ameaças descoordenadas.

As evidências sugerem que o autoritarismo legislativo pode existir sem um partido forte ou uma coalizão de governo bem definida. Se os interesses e as intenções se alinharem e houver votos suficientes no Congresso, as restrições ao poder do Legislativo podem ser deixadas de lado. O Partido Revolucionário Institucional (PRI) do México é um exemplo próximo: ele não era o veículo de um único líder, mas concentrava o poder e, frequentemente, contornava os processos democráticos e os mecanismos de responsabilização.

Coalizões como a que apoiou o PRI durante seu longo apogeu (que abrangeu as últimas sete décadas do século 20) podem manipular os processos legislativos internamente, controlar as principais instituições estatais e empregar o clientelismo para manter seu domínio. Essas coalizões geralmente se formam em ambientes políticos fragmentados, onde nenhum ator pode dominar de forma independente. Diferentemente dos regimes autoritários tradicionais liderados por um único líder, o autoritarismo baseado em coalizão pode ser mais resistente e adaptável, pois a estrutura de poder não depende de um único indivíduo, mas de uma rede de atores influentes.

No autoritarismo legislativo baseado em coalizão, o Poder Executivo recebe ordens dos grupos que dominam o Legislativo, e não o contrário.

O autoritarismo legislativo implica um Legislativo com muito poder e poucos limites. Ao estudar suas ações, perceberemos dois processos em curso que se reforçam mutuamente: no primeiro, o Poder Legislativo concentra poderes e autoridades em si mesmo. Chamamos isso de “concentração de poder”. No segundo, o Poder Legislativo se blinda do controle limitando a fiscalização que outros poderes podem exercer. Chamamos isso de “restrição de controle”. No primeiro processo, o Legislativo aumenta seu próprio poder, enquanto no segundo, ele reduz o poder de outros poderes e instituições estatais (sendo que essas últimas geralmente incluem tribunais e agências de controle independentes).

Se apenas um processo for observado, temos uma variante do que Guillermo O’Donnell chamou de “democracia delegativa”. Se observarmos os dois processos em curso — o Congresso expandindo seu poder e tentando controlar as ações de outras instituições do Estado que precisam de autonomia para desempenhar suas funções adequadamente —, então sabemos que estamos diante de um caso de autoritarismo legislativo em formação.

Uma estratégia informal popular é a cooptação legislativa. Ela inclui assumir o controle de instituições contratando, demitindo ou punindo seus principais funcionários com a intenção de roubar dessas instituições a autonomia que elas foram projetadas para ter. Órgãos do Estado que deveriam ter certa independência para que pudessem fazer seu trabalho são transformados em acessórios do Congresso que cumprem suas ordens, ponto final. O que isso significa para os freios e contrapesos é óbvio.

A restrição formal de controle ocorre quando o Congresso aprova ou altera leis para se proteger, reduzindo diretamente os poderes de outras instituições. Essa estratégia de “blindagem” é mais evidente e, portanto, mais provável de sofrer resistência das instituições visadas, bem como da sociedade civil e da comunidade internacional. Os efeitos observáveis incluem reduções nos poderes de supervisão dos tribunais, promotores, comissões eleitorais e órgãos de ouvidoria.

O caso peruano

O retrocesso que se instalou na democracia do Peru é evidente. Todos os principais índices — o da Economist Intelligence Unit, da Freedom House e o projeto Variedades da Democracia (V-Dem) — rebaixaram recentemente a classificação do país. A Freedom House o classifica como “parcialmente livre” em vez de “livre”. Esse não pode ser um caso de engrandecimento do Executivo: o retrocesso vem ocorrendo mesmo quando o Poder Executivo está em baixa, com vários presidentes em poucos anos, um número recorde de reformas ministeriais e índices de aprovação presidencial que chegam a 5%. O Congresso do Peru, por sua vez, é visivelmente dominante. Ele vem expandindo seus poderes e, ao mesmo tempo, limitando sua responsabilidade.

A disfuncionalidade Executivo-Legislativo no Peru evoluiu em três fases distintas desde 2016. Inicialmente, o Congresso buscou a hegemonia quando seu principal partido, o Fuerza Popular, aprovou por duas vezes o impeachment do presidente Pedro Pablo Kuczynski (PPK) e forçou sua renúncia em março de 2018.

A segunda fase começou naquele ano, quando o companheiro de chapa e vice-presidente de PPK, Martín Vizcarra, assumiu a sucessão e tentou restaurar o poder do Executivo. Ele apresentou um referendo popular em dezembro de 2018, no qual 86% dos eleitores proibiram a reeleição imediata dos membros do Congresso. Na mesma votação, no entanto, uma parcela ainda maior derrotou sua tentativa de introduzir o bicameralismo. A falta de alianças partidárias de Vizcarra deixou-o vulnerável à oposição do Congresso. Em 2020, ele também sofreu dois impeachments, e perdeu seu cargo após uma votação de condenação na segunda vez.

A terceira fase começou com as eleições de abril de 2021. Pedro Castillo, um outsider populista de esquerda, conquistou a presidência por uma pequena margem em um segundo turno contra a líder da Fuerza Popular, Keiko Fujimori (filha de Alberto). Enquanto isso, o Congresso instaurava uma agenda antirreformista que o levou a se opor não apenas aos planos de Vizcarra, mas também a reformas anteriores que buscavam aumentar a capacidade do Estado de regular a mineração e o ensino superior.

O Congresso tem se concentrado mais na mudança das características do regime do que no avanço de políticas amplas. Essa mudança diminuiu muito o poder do Executivo. A presidente Dina Boluarte, companheira de chapa de Castillo e sucessora depois que ele também sofreu impeachment, no início de dezembro de 2022, conseguiu permanecer no cargo em grande parte seguindo as diretrizes da coalizão dominante do Congresso.

Por que o autoritarismo legislativo?

Em um típico retrocesso democrático liderado pelo Executivo, um presidente forte corrói a constituição para concentrar mais poder e acabar com a oposição. No autoritarismo legislativo baseado em coalizão, por outro lado, pode não haver um único fator determinante do retrocesso, mas, com base na experiência peruana, consideramos pelo menos três explicações diferentes.
Primeiro, uma reação contra Executivos dominantes é uma explicação plausível.

No caso peruano, o presidente Vizcarra representou o verdadeiro ponto de inflexão. Ele tomou medidas radicais, como a dissolução do Congresso e a convocação de um referendo, e desfrutou de popularidade e capital político sem precedentes. Isso nunca foi tão verdade quanto durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19, quando ele governou às custas de um novo Congresso. Sua destituição mostrou que até mesmo uma legislatura muito fragmentada, cheia de neófitos, poderia, caso se sentisse pressionada o suficiente, dar um golpe devastador no Poder Executivo, pondo fim em uma presidência.

Segundo, por trás do autoritarismo legislativo baseado em coalizão pode haver uma lógica de preservação. Nesse caso, o poder é perseguido principalmente para manter o status quo, e não para promover uma transformação (o objetivo típico do retrocesso liderado pelo Executivo).

O caso peruano mostra que a fragmentação política extrema pode coexistir com a possibilidade de estabelecer pactos e consensos dentro do Congresso. A cola que une os legisladores peruanos é a determinação de dar mais liberdade à atividade de mineração e ao ensino superior privado. O que, na superfície, parece ser um “esvaziamento” anárquico ou uma “democracia sem poder”, pode ter sua própria lógica mais profunda como uma tentativa de preservar ou restaurar um status quo. Somente a presença de tal lógica pode explicar por que os políticos predadores mudaram de estratégias de curto para longo prazo.

Terceiro, a oposição a atividades investigativas excessivamente zelosas e a processos por corrupção pode estar alimentando o autoritarismo legislativo. Desde as revelações do caso Lava Jato do Brasil, o combate à corrupção deixou uma marca na política peruana. Não há um único presidente eleito desde 2001 que não tenha sido acusado de corrupção, e alguns foram presos por isso. Uma ameaça comum pode gerar os incentivos necessários para que a agenda de concentração de poder e restrição de controle avance no Legislativo. As preocupações comuns dos legisladores com relação a isso também podem ajudar a explicar por que tantos deles querem acabar com a proibição da reeleição e adicionar mais assentos ao Congresso na forma de uma câmara alta.

Devido à dinâmica institucional, o “esvaziamento democrático” pode ser apenas um estado de coisas transitório, embora recorrente. Também pode ser um estado que pode acompanhar a formação de um autoritarismo legislativo baseado em coalizão. Uma coalizão criminosa-oligárquica como a observada na Guatemala provavelmente considerará o autoritarismo legislativo um tipo de regime naturalmente confortável devido à sua aparente fragmentação e às coalizões obscuras não aparentes. Tanto na Guatemala quanto no Peru, o Poder Legislativo é claramente o centro de gravidade. Os acadêmicos precisam prestar mais atenção nas consequências políticas de períodos prolongados de disfuncionalidade Executivo-Legislativo, no surgimento de coalizões de legisladores em ambientes altamente fragmentados e no impacto da hegemonia legislativa sobre a democracia.

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O artigo completo será publicado na edição de outubro do Journal of Democracy em Português, da Plataforma Democrática (Fundação FHC e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais). As demais edições estão disponíveis gratuitamente para download.

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