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O autoritarismo que vive na democracia

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Publicado em 1950, ‘The Authoritarian Personality’ segue atual ao expor as sombras que rondam sociedades democráticas

Há 75 anos, em 1950, saía a público um livro de fôlego incomum, resultado de mais de uma década de pesquisa coletiva em psicologia social, sociologia e teoria crítica: The Authoritarian Personality, de Theodor W. Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e Nevitt Sanford. O projeto nasceu sob o patrocínio do famoso Instituto de Pesquisa Social — “transplantado” de Frankfurt para os Estados Unidos — dirigido por Max Horkheimer, em colaboração com a Universidade da Califórnia em Berkeley.

A pergunta que guiava a empreitada era simples e perturbadora: como explicar que tantos cidadãos comuns, em sociedades modernas e supostamente democráticas, pudessem se tornar terreno fértil para o antissemitismo, o etnocentrismo, o preconceito e a intolerância — em uma fórmula sintética, para o fascismo?

Creio que a grande inovação da abordagem de Adorno e colegas consistiu em uma espécie de virada copernicana na forma de representar o fascismo. No centro do sistema, em vez das ideologias, partidos e instituições, de um lado, e das circunstâncias históricas, de outro, como se costuma fazer, é posto o indivíduo e suas atitudes.

O livro nos convida a buscar a fonte da adesão massiva a movimentos antidemocráticos não simplesmente em discursos políticos ou conjunturas históricas, mas nos padrões subjetivos (e intersubjetivos) que levavam certas pessoas a buscar ordem em líderes fortes, a reagir com hostil intolerância diante da diferença e a aceitar certas explicações, em vez de outras, para problemas complexos.

No centro está a “personalidade”, definida como uma estrutura relativamente estável de atitudes, predisposições e modos de interpretar o mundo que orienta a experiência política e social. A pesquisa assumiu como pressuposto que, sob determinadas condições históricas e discursivas, disposições autoritárias — que moldam as nossas personalidades e estão latentes e prontas para serem ativadas — podem ser despertadas e trazidas à tona, abrindo espaço para formas patentes de autoritarismo, até o limite da eclosão do fascismo.

Aceito esse pressuposto, o fascismo e outras formas de movimentos sociais e políticos intolerantes, autoritários e violentos contra a alteridade perdem grande parte do seu excepcionalismo. Há sempre, em qualquer sociedade, um estoque considerável de disposição autoritária, mesmo em democracias estáveis. E ele pode se manifestar em muitos tipos de pessoas, inclusive naquelas que pouco se ocupam de ou se interessam por política.

Essa é a premissa mais perturbadora do livro: o fascismo e toda forma de intolerância política não são excepcionais, não desaparecem de fato e não são extintos.

Permanecem em estado latente nas pessoas, até serem despertados por apelos autoritários que conseguem vencer os freios sociais que os recalcam.

Essa inovação dá a medida do significado do livro. Ao combinar teoria crítica — herdeira da tradição frankfurtiana de crítica marxista e freudiana à razão instrumental e às ideologias reificadas — com os instrumentos empíricos da psicologia social americana, A Personalidade Autoritária inaugurou uma agenda de pesquisa que atravessou 75 anos de debates sobre intolerância política e as bases psicológicas do autoritarismo.

O livro marcou época não apenas por suas teses, mas pelo conjunto de inovações teóricas e metodológicas que trouxe. Pela primeira vez, aplicou-se em larga escala uma pesquisa que unia psicanálise, psicologia, sociologia e estatística em um único programa coerente.

Entre as inovações mais notáveis estão as escalas padronizadas de opinião — entre elas a célebre Escala F (de fascismo) —, as entrevistas clínicas em profundidade e os testes projetivos. O projeto não se limitava a medir preconceito; pretendia oferecer uma “biografia metodológica” das escalas criadas, registrando seus limites, vieses e o aprendizado obtido em cada tentativa. Tudo documentado em uma obra monumental de mais de mil páginas.

Essa disposição de articular teoria social, psicologia individual e técnicas estatísticas em uma só empreitada científica conferiu à obra um caráter pioneiro. Décadas antes de a psicometria se consolidar, A Personalidade Autoritária já oferecia instrumentos sofisticados para medir tendências antidemocráticas e, mais importante, para conectar essas medidas ao diagnóstico social.

Uma das contribuições mais originais do livro é a formulação de um padrão de personalidade autoritária como uma constelação de disposições interligadas — que chamo de “poliedro de nove faces”. Em vez de reduzir o autoritarismo a um único traço, Adorno e colegas o descreveram como a combinação recorrente de diferentes dimensões.

Entre elas, o convencionalismo (adesão rígida a valores e convenções), a submissão à autoridade percebida como legítima pelo grupo de pertencimento, a agressividade autoritária dirigida contra grupos externos, a superstição e a estereotipia como modos simplistas de interpretar o mundo, a valorização da força em detrimento da compaixão, uma visão cínica e fatalista da vida social, a projeção de impulsos reprimidos sobre inimigos externos e a preocupação exagerada com questões sexuais (a repulsa ao sexo).

O instrumento metodológico que formularam servia basicamente para mostrar que essas facetas da personalidade não são independentes, mas se reforçam mutuamente. Quem pontua alto em convencionalismo tende a repetir o mesmo em agressividade contra grupos externos e submissão à autoridade, por exemplo.

É por isso que os autores preferiram falar em “constelação autoritária”: um arranjo de tendências que, tomadas em conjunto, revelam um padrão reconhecível de intolerância e predisposição antidemocrática.

Esse poliedro foi operacionalizado por meio da Escala F, mas também por inventários de valores, questionários de opinião e técnicas qualitativas. O resultado era mais do que um índice de preconceito: era um mapa de como diferentes disposições se articulam para produzir uma atitude política intolerante ao pluralismo, agressiva com o diferente e decididamente autoritária.
Um dos aspectos mais inovadores da Escala F foi justamente sua tentativa de captar predisposições autoritárias de modo indireto, sem despertar as defesas conscientes dos entrevistados. As escalas anteriores — como a A-S (Anti-Semitism Scale), voltada a medir atitudes antissemitas, e a E (Ethnocentrism Scale), focada na hostilidade contra grupos minoritários em geral — lidavam de forma muito explícita com preconceito, mas esse caráter direto induzia respostas socialmente desejáveis: muitos preferiam se apresentar como democráticos e igualitários.

A tentativa intermediária, a PEC (Politico-Economic Conservatism Scale), buscou contornar o problema evitando referências étnicas ou raciais, mas acabou excessivamente ideológica e transparente, o que a tornava fácil de “decifrar” pelos participantes. A Escala F nasce dessa lacuna: formular itens que, sem mencionar minorias nem recorrer a enunciados políticos óbvios, pudessem revelar tendências de fundo da personalidade — padrões de autoridade, convencionalismo, estereotipia, rigidez moral — que se manifestariam tanto em opiniões ideológicas quanto em temas aparentemente neutros da vida cotidiana. Com isso, pretendia-se medir não apenas crenças superficiais, mas disposições latentes, muitas vezes inconscientes, que estruturavam a abertura ou o fechamento de cada indivíduo ao pluralismo democrático.

Os efeitos do livro foram imensos. Ele inspirou pesquisas fundamentais sobre intolerância política (como o estudo de Samuel Stouffer em 1955), sobre preconceito e identidade social, sobre as bases cognitivas e motivacionais do autoritarismo, até os debates atuais sobre polarização, populismo e desinformação digital.

A Right-Wing Authoritarianism Scale de Bob Altemeyer, nos anos 1980, foi herdeira direta do modelo frankfurtiano-berkeleyano. E mesmo estudos recentes sobre left-wing authoritarianism e intolerância progressista continuam dialogando com o legado de 1950.

A fortuna crítica, contudo, não foi menor. Muitos acusaram o livro de “psicologizar” (antes, psicanalisar) o fascismo, dando peso excessivo à personalidade em detrimento de fatores históricos e estruturais.

Um dos limites mais discutidos de The Authoritarian Personality está na forma como a Escala F foi concebida e operacionalizada. A intenção era medir predisposições latentes ao fascismo como uma síndrome de atitudes e traços de personalidade, mas muitos itens acabaram confundindo posições políticas legítimas com traços psicológicos autoritários.

Assim, religiosidade intensa, apego à tradição, moralidade sexual convencional ou respeito a autoridades foram frequentemente tratados como sinais de fragilidade do ego e predisposição antidemocrática. A operação psicanalítica, ao traduzir essas atitudes em sintomas de repressão, projeção ou rigidez cognitiva, reforçava essa equivalência. O resultado foi uma tendência a patologizar disposições culturais conservadoras, aproximando-as do fascismo, mesmo quando poderiam existir em democracias estáveis sem comprometer sua vitalidade.

Esse viés não decorre de uma formulação explícita de Adorno e seus colegas, mas de decisões teóricas e metodológicas que deixaram em aberto a confusão entre conservadorismo e autoritarismo. Ao não distinguir claramente a deferência racional à autoridade da submissão acrítica, ou a religiosidade tradicional de uma hostilidade ativa ao pluralismo, a escala alimentou uma leitura segundo a qual apenas estilos de vida liberais e progressistas estariam em sintonia com a democracia.

Essa ambiguidade permitiu que, mais tarde, se difundisse no senso comum de esquerda a tendência de classificar posições de direita como “fascistas” ou “patológicas”. A crítica posterior — de Stouffer a Sullivan, de Altemeyer a Marcus — buscou corrigir esse excesso, refinando os instrumentos de medida para separar o apego a normas convencionais das atitudes francamente intolerantes e antidemocráticas.

Do ponto de vista normativo, esse legado é ambíguo. Por um lado, a obra foi pioneira em mostrar que predisposições psicológicas importam na compreensão do autoritarismo; por outro, deixou como herança a suspeita de que o conservadorismo seria intrinsecamente incompatível com a democracia.

A literatura posterior, sobretudo com o conceito de Right-Wing Authoritarianism de Altemeyer, mostrou que o problema não está em valores tradicionais ou em sociedades hierárquicas em si, mas na forma patológica como certos indivíduos transformam a obediência em subserviência, a moralidade em intolerância e a religiosidade em dogmatismo repressivo.

A grande lição, então, é dupla: se a pesquisa de 1950 revelou o perigo real das predisposições autoritárias, também mostrou como as próprias lentes intelectuais podem gerar distorções, confundindo diversidade cultural e ideológica com ameaça à democracia.

Outros questionaram a validade da Escala F e a homogeneidade sociocultural da amostra. Essas críticas são importantes e, em parte, justas. Mas seria injusto ignorar que o livro sempre insistiu na interação entre predisposições individuais e ambiente social: sem crises, ameaças e discursos mobilizadores, os potenciais autoritários permanecem latentes.

Essa noção de autoritarismo como predisposição ativável antecipou, em linguagem própria, o que décadas mais tarde se tornaria central na psicologia política. Hoje sabemos que cidadãos que se autodefinem tranquilamente como democratas convictos podem, sob condições de ameaça real ou imaginada, apoiar medidas intolerantes contra adversários políticos.

A atualidade do livro salta aos olhos. Democracias vivem sob pressão de forças que exploram exatamente esses mecanismos: líderes e movimentos que, ao amplificar medos e fabricar inimigos, despertam tendências latentes à intolerância e ao dogmatismo.

A ascensão da extrema direita digital, que organiza ressentimentos e oferece explicações simplistas para crises econômicas, culturais e identitárias, é prova disso. Mas não apenas ela: também movimentos progressistas identitários, ao reivindicar censura e punição de vozes dissidentes, alimentam novas formas de intolerância política.

A lição dos frankfurtianos e de seus colegas de Berkeley continua válida: sociedades democráticas não podem se dar ao luxo de ignorar as predisposições autoritárias que residem nelas mesmas. Reconhecer sua existência, estudá-las com rigor e criar mecanismos institucionais e culturais para neutralizá-las é parte essencial da defesa da democracia.

Se em 1950 a questão era entender o fascismo europeu, hoje é compreender como a intolerância se reinventa dentro de democracias que ainda se pretendem abertas.

Setenta e cinco anos depois, o diagnóstico permanece perturbador: o autoritarismo não é uma anomalia distante, mas uma sombra que acompanha a democracia, sempre à espera de novas oportunidades históricas para se manifestar.

Em tempo: Não tenho conhecimento de traduções de The Authoritarian Personality em português, mas a editora da Unesp traduziu, em cerca de 600 páginas, vários dos seus capítulos principais, e nomeou o livro Estudos sobre a personalidade autoritária, cuja leitura recomendo.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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