A lógica da escolha de Lula para o Supremo

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Preferência por perfil leal ao presidente, alinhado com questões econômicas e moderado na pauta identitária reflete mudanças trazidas pela “desglobalização”
O processo secular de mundialização parece ter entrado num daqueles momentos de retração. O ciclo liberal e globalista que marcou o início do século 21 chegou ao fim. A promessa de uma economia sem fronteiras, de valores universais e identidades móveis entrou em crise. Há mais de dez anos observa-se um processo de desglobalização: retração das cadeias produtivas, revalorização das fronteiras e reemergência das soberanias nacionais.
Essa inflexão não é apenas econômica, mas também ideológica. Durante o período de globalização, a esquerda deslocou progressivamente seu eixo do social para o cultural, da nação para o cosmopolitismo e da luta de classes para as lutas de reconhecimento. Agora, a direita reage promovendo uma guerra cultural que expressa a resistência dos setores que se julgam prejudicados ao longo dessas décadas, levantando novamente os muros antes derrubados, reavivando as rivalidades geopolíticas e o protecionismo. Tudo indica que a política reassume o comando da economia.
As causas identitárias, sem dúvida, permanecem, mas perdem o monopólio da sensibilidade progressista
Nesse novo cenário, o antigo socialismo cosmopolita — mais próximo do liberalismo e das pautas identitárias — cede espaço, em toda parte, a um socialismo mais tradicional e de caráter nacional, voltado ao combate ao imperialismo e à desigualdade econômica, recuperando a noção de “povo brasileiro” como categoria de solidariedade ampla, acima das clivagens mais recentes. As causas identitárias, sem dúvida, permanecem, mas perdem o monopólio da sensibilidade progressista e sofrem pressão para se subordinarem novamente à identidade maior — a nacional.
O governo Lula se insere nesse movimento de forma quase natural. Formado politicamente nos anos 1970, o presidente é um homem de um tempo anterior à globalização — época em que a esquerda ainda se estruturava em torno da luta de classes, da soberania e da ascensão dos trabalhadores como grupo social. Por isso, embora reconheça as causas identitárias que emergiram com a globalização, nunca tendeu a lhes atribuir demasiada centralidade. Hoje, quando o identitarismo parece desafiado não apenas pela direita, mas também pela própria esquerda, o descaso do presidente com a pauta tende a se acentuar.
Basta ver a que ponto de irrelevância chegaram os ministérios voltados ao atendimento de tais pautas, que simplesmente desapareceram do noticiário nos últimos tempos. Essa disposição pessoal do presidente vem acompanhada também de uma visão mais tradicional em temas domésticos e familiares, que o aproxima do conservadorismo médio da sociedade brasileira. Num momento em que o debate sobre costumes divide fortemente o eleitorado e se reflete no Congresso, Lula tende a incorporar esse dado em seu cálculo político.
É nesse contexto — histórico e pessoal — que se inscreve a atual controvérsia sobre a nomeação de um novo ministro para o Supremo Tribunal Federal. Desde a chamada “revolução judiciarista” da década passada, o STF deixou de ser apenas uma corte técnica e passou a integrar o núcleo de poder da República. Governar, no Brasil de hoje, exige não apenas uma base parlamentar — fragmentada e majoritariamente conservadora —, mas também uma base judicial capaz de oferecer previsibilidade e contrabalançar a resistência legislativa. É o que tenho chamado de judiciarismo de coalizão, no qual o Executivo busca, na Corte, um ponto de apoio institucional que compense sua fragilidade no Congresso.
A escolha deverá recair sobre alguém afinado com o governo nas pautas econômicas e sociais, mas prudente nos costumes
Nessas condições, Lula tende a privilegiar um nome de confiança pessoal, com experiência política e perfil moderado em temas morais. A escolha deverá recair sobre alguém afinado com o governo nas pautas econômicas e sociais, mas prudente nos costumes — um perfil capaz de conter a maioria conservadora do Congresso sem provocá-la abertamente. É o que explica a provável escolha do advogado-geral da União, Jorge Messias, que reúne, aos olhos do presidente, todas essas características: é leal, mantém boa interlocução com ministros do Supremo e é bem-visto por setores evangélicos e conservadores do Parlamento. A escolha combina, assim, cálculo institucional e prudência eleitoral. Acerta vários coelhos com uma cajadada só.
Seria, sem dúvida, desejável que o presidente escolhesse uma mulher, dado o desequilíbrio da representação feminina na Corte — e, mais ainda, uma mulher negra, já que nenhuma ocupa assento no Supremo. Certamente, se houvesse em seu círculo de confiança uma jurista negra que reunisse as mesmas condições — confiança consolidada, moderação moral e identidade religiosa próxima à base evangélica —, ela seria uma candidata natural. Mas essa figura, aparentemente, ainda não existe (e talvez nem venha a existir no círculo de Lula, a esta altura do campeonato).
Destaca-se também que, em um tempo de aparente refluxo das pautas identitárias — às quais o Centrão é insensível e a extrema-direita, abertamente adversa —, o custo político para o presidente de deixá-las em segundo plano segue relativamente baixo. Esse setor da esquerda simplesmente não tem para onde correr. Razão pela qual as expectativas desses grupos por mais ações voltadas à reparação simbólica de sua histórica sub-representação terão de esperar por tempos mais bonançosos — ou menos perigosos. Porque os atuais, como se dizia antigamente, não estão para peixe. Ainda.