A mãe do Carnaval paulistano é uma mulher negra
Antes de se tornar dona de uma pensão nos Campos Elísios, trabalhou como empregada doméstica para os Penteado, tradicional família da elite paulista. Filha da última geração do sistema escravocrata, ainda em meados dos anos 1920, acompanhou os patrões em uma viagem a Londres e, na terra da Rainha, deu de cara com seu destino. Após conhecer o movimento operário latente na Europa, Dona Augusta Geralda voltou ao Brasil e fundou o sindicato das empregadas domésticas. A casa situada no bairro da Liberdade, em São Paulo, virou ponto de encontro de mulheres pretas trabalhadoras, espaço de mobilização política e cultural — entre os saraus que viravam a noite e o choro da viola, sua história se entrelaçou à do samba paulistano. Dos encontros, nascia o embrião da Escola de Samba Paulistano da Glória.
Em meio ao batuque, criou seu filho, Geraldinho. Mãe incansável, inconformada e festeira de nascença. Todos os anos, organizava caravanas para as festas do Bom Jesus de Pirapora, na Grande São Paulo. Certa vez, mais que aproveitar a festa, a mulher precisava acertar as contas com o Divino. Fez promessa que, se curado de uma doença, vestiria seu menino de anjo e o levaria à procissão. E assim o fez — ou tentou. Ao chegar no cortejo, em 1931, o garoto de quatro anos foi impedido de desfilar por ser preto. Catando o filho, então, se dirigiu a um barracão, onde ele poderia viver a fantasia. Geraldinho levou a sério, e viveu da fantasia. Cresceu Geraldo Filme, sambista e baluarte do ritmo na capital. Fez do episódio em que não pôde ser anjo, música.
Em 1946, Geraldo viu o sindicato tomar forma de cordão carnavalesco. Anos depois, quando os desfiles de cordões foram extintos, a agremiação resistiu e incorporou, de vez por todas, o título de Escola de Samba, em 1972. Na casa, Dona Geralda acolheu muitos dos grandes compositores paulistanos, como Seu Nenê, Adoniran, Vanzolini… Não à toa, a escola foi apelidada de “oficina do samba”, onde o ritmo, envolto por enredos ligados à negritude paulistana, fincou raiz. A Paulistano da Glória encerrou suas atividades em 1985.
A poucos metros, na mesma Liberdade, a raiz se aprofundava com o trabalho de outra mulher preta. Essa jamais foi mãe. Era madrinha. Batizando mais de quarenta crianças ao longo da vida, não tinha jeito, Deolinda Madre virou Madrinha Eunice. Também filha de escravos alforriados, nasceu em 1909 em Piracicaba, no interior paulista, mas ainda menina mudou-se para a capital e se firmou no bairro que moraria até a morte. Aos vinte e poucos anos, numa festa na mesma Bom Jesus do Pirapora, conheceu Francisco Papa, o Chico Pinga, com quem se casou.
Numa viagem ao Rio de Janeiro, em 1936, o casal descobriu o carnaval da Praça Onze. Foi paixão à primeira vista. A mulher voltou determinada a trazer aquela festa para a terra da garoa. Assim, em 1937, fundou a Lavapés Pirata Negro, a mais antiga escola de samba paulista ainda em funcionamento. Em seu primeiro desfile, passou amarela e preta. No ano seguinte, no entanto, a mulher oficializou as cores da escola — as mesmas até hoje: vermelho e branco. Religiosa que só, adepta da Quimbanda, a escolha foi homenagem ao patrono da escola, Exu Veludo. Estampada na bandeira da Lavapés está uma baiana, referência às grandes matriarcas do samba.
Com o passar das décadas, muita coisa mudou. A mulher decidiu se separar de Chico Pinga quando este a pediu para escolher entre ele e a Lavapés. No coração, a batucada ecoou mais alto. Vários sambistas passaram e apreenderam a tradição nas quadras daquela escola, entre eles, Seo Carlão do Peruche, fundador da Unidos do Peruche. Até mesmo o apelido de Madrinha mudou. Com os cabelos brancos, virou a “vovó do samba”. O que não mudou foi sua entrega ao carnaval. Presidiu a escola até o último de seus dias, quando, aos 87 anos, viu a batucada silenciar.
O nascedouro do Carnaval paulistano entrelaça uma história de resistência proletária; outra, das religiões de matriz africana; ambas de mulheres negras. Nem as tentativas de branqueamento dessa origem, para se apagar um passado escravagista e emplacar uma ideia de cidade moderna, com imigrantes europeus, enfraqueceram essa aurora tão potente.