A relação entre Charles Schulz e Cidadão Kane em Peanuts

Como muitos artistas, Charles Schulz afirmava que poderia ser conhecido apenas através de sua criação. “Se uma pessoa ler minhas tiras todos os dias, ela me conhecerá, com certeza – saberá exatamente o que sou”. Parte da atmosfera de mistério do criador de Charlie Brown e Snoopy era sua total autossuficiência. Por quase cinquenta anos, conforme reza a lenda, ele foi sempre o único ser humano a escrever, esboçar a lápis, cobrir com tinta e colocar as letras em Peanuts. A pergunta padrão – Charlie Brown é realmente seu alter ego? – era respondida inicialmente com ironia. “Na verdade, não, se bem que isso dá uma boa história”. Dez anos mais tarde, a novelista Laurie Colwin perguntou se alguém que acompanhasse a tira desde o início realmente conseguiria fazer o seu retrato biográfico. “Acho que sim. Suponho que teria de ser alguém bem esperto”. Um ensaísta recebeu a notícia de sua aposentadoria com uma resposta ainda diferente: “Nós conseguimos imaginar qualquer norte-americano mais merecedor de uma busca de interpretação biográfica ao estilo de Rosebud. Todavia, Schulz, sempre um mestre da narrativa em quadrinhos, já juntou as peças para nós”.

E ele de fato havia juntado.

Em 1941, Cidadão Kane, de Orson Welles, chegara ao cinema. E Sparky, apelido de Schulz, imediatamente reconheceu sua grandeza. O filme é um longo flashback investigativo sobre o significado da palavra Rosebud, dita no leito de morte pelo personagem Charles Foster Kane. Com o passar dos anos, Cidadão Kane se tornaria uma fascinação pessoal e seu filme favorito. Ele assimilava repetidamente, chegando a assistir mais de quarenta vezes, a história do homem reservado e poderoso que foi enxotado de seu lar numa choupana coberta de neve.

Assim como o herói de Orson Welles, o criador da caixa de correspondência eternamente vazia de Charlie Brown teria sucesso em uma escala além de seus maiores sonhos de infância e, ainda assim, ele teria dificuldades em amar e ser amado.

Nessa tira, Linus troca de canal. Lucy caminha atrás de Linus, agora sentado em uma almofada. Ela pergunta: “O que você está assistindo?” Ele se vira e diz: “Cidadão Kane”.

Quando pediam que Schulz falasse sobre sua vida, ele nunca começava pelo início, com seu nascimento em 26 de novembro de 1922, mas sempre com a despedida e morte de sua mãe em 1º de março de 1943, sua própria partida para a guerra e a impiedosa velocidade de tudo aquilo. Tudo na mesma semana. Assim como o herói de Orson Welles, a história de Schulz começava com um jovem solitário, não mais do que um menino, sendo levado embora de trem pela neve.

A ocasião ficou congelada no tempo – uma despedida tão estarrecedora, quanto a fala interpretada pela mãe que se prepara para perder o filho em Cidadão Kane: “Estou com essa mala toda arrumada. Estou com ela arrumada faz uma semana”. Frequentemente, Sparky expunha aquela que foi, certamente, a pior noite de sua vida. A qual ele, repetidamente, colocava nos termos de seu sentimento de não realização por sua mãe “nunca ter tido a oportunidade de ver algo meu publicado”.

Durante toda a publicação dos Peanuts, os bonecos de neve apareceram em incontáveis tiras e páginas dominicais, apresentados tal qual um comentário jocoso sobre a significância da forma na arte moderna. A neve sempre ocupou um lugar de honra na visão de mundo de Schulz desde os seus primeiros desenhos. E foi assim a última aparição dos Peanuts antes da muito aguardada passagem para o ano 2000.

O frio do primeiro dia do ano. Patty Pimentinha e Marcie, por trás das grossas paredes de uma fortaleza de neve, atiram bolas em Charlie Brown e Linus, que revidam. Snoopy está sentado atrás das linhas defensivas de Charlie Brown, segurando pensativamente uma bola. Não há diálogos na tira, nem pensamentos na cabeça de Snoopy. Há, curiosamente, uma legenda. “De repente, o cachorro percebe que seu pai nunca lhe ensinou a atirar bolas de neve…”

O cachorro que começara a sonhar, tornando-se assim sobre-humano, agora encarava a realidade e se aproximava novamente de um cachorro normal que não consegue segurar adequadamente uma bola de neve com as patas. No caso, a realidade toma a forma de uma bola de neve – um símbolo não muito diferente do peso de papel de vidro com neve artificial que nos dá a primeira pista para a identidade de “Rosebud” em Cidadão Kane. A tira – a última das suas diárias, mas, de forma alguma, um encerramento ou resolução dos Peanuts – é também um acerto de contas. Por sua vez, Snoopy luta na tira final, como sempre, com o tema da identidade. Agora, no final, está preso à terra. Sua crise é toda interior, não envolve nenhum dos outros personagens, e suas fontes estão no passado.

A neve é uma mídia temporária, mas as tiras de Schulz seriam perenes? Cem anos mais tarde, já sabemos a resposta. Algumas dessas referências estão listadas na Peanuts Wiki e na biografia de Charles Schulz.

Cidadão Kane ainda é considerado por muitos críticos como o melhor filme da história do cinema. Onde assistir.

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