A volta da filha pródiga
Existe uma cena que não sai da cabeça dos petistas. De todos, não só os das tendências do partido mais à esquerda. Foi um golpe difícil para os integrantes da legenda ver a então senadora Marta Suplicy, na época no MDB, entregando um buquê de lírios e rosas para a advogada Janaina Paschoal, em plena sessão do Senado para julgar o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Com desenvoltura e risos, ela ainda tirou uma rosa do luxuoso ramalhete e ofertou ao advogado Hélio Bicudo, como quem diz: “tem para você também”.
Marta poderia não ter tripudiado, poderia ter sido discreta em seu voto em favor da condenação da ré, Dilma. Mas não. Diante dos olhares perplexos de vários membros da cúpula do partido que estavam ao lado da presidente naquele 30 de agosto de 2016, a ex-petista optou por explicitar o lado que escolhera. Optou por praticar o máximo de gentileza para com os dois advogados autores do pedido de impeachment. Quis agradar os algozes do governo do seu antigo partido, do qual ela mesmo havia feito parte como ministra da Cultura.
Agora, a volta de Marta ao PT tem gosto daquela famosa frase do tetracampeão Mario Jorge Lobo Zagallo, que morreu na semana passada: “Vocês vão ter que me engolir”. E vão mesmo. Principalmente porque a deglutição vem pelas mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reedita seu velho costume de impor ao partido as costuras políticas de sua imaginação. Sempre foi assim. Agora não será diferente.
Lula se fia no faro político e em pesquisas qualitativas do PSOL que indicam que Marta tem, reconhecidamente, a fama de ter feito a melhor administração de São Paulo. Ela é querida da periferia, dizem as consultas, ainda que existam dúvidas de que essa periferia compareça em votos para a chapa com Boulos devido a presença de Marta como vice. Em 2016, por exemplo, a então candidata pelo MDB à prefeitura terminou em quarto lugar, com 10,14% dos votos válidos. Naquele ano, João Doria venceu a eleição em primeiro turno pelo PSDB.
“Pode ser que a imagem de Marta só funcione atrelada ao PT para esse segmento da população. Os feitos de sua administração para essas áreas também são reconhecidos como feitos do PT. A população percebe, por exemplo, a criação dos CEUs (Centro Educacional Unificado), que é do Haddad. Na época, a população não gostou de Marta concorrendo pelo MDB. Ela tem a marca do partido”, avaliou um interlocutor do presidente, em reservado. Além dos centros de ensino superequipados que Marta cuidou de espalhar em bairros pobres de São Paulo, outra marca que a campanha pretende enfatizar é a integração dos ônibus da cidade por meio do Bilhete Único.
Marta, na opinião de petistas mais ligados a Lula tem a capacidade de dar um ar de maior serenidade a Boulos. “Uma normalidade” perante a setores que ainda enxergam o psolista, ex-líder do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), como um integrante da esquerda radical. Ela dará peso político à candidatura e ajudará a combater o “fantasma Boulos”. “Aquele que vai invadir sua casa e levar uma família de sem-teto para morar na sala”, explicou um petista. O eleitor de Boulos é de classe média. Marta teria penetração nas classes baixas e alta. Uma combinação de Lula acredita que pode funcionar.
Traição ou Lealdade?
As razões de Lula incluem, porém, um ingrediente que soa meio afrontoso dentro do partido que a taxa de traidora: Marta é leal. Não ao partido, mas a Lula. “Ela sempre trabalhou na linha de que Lula não era igual ao resto do PT. Ela sempre tratou Lula como uma personalidade e não como um articulador político do partido”, disse ao Meio, também sob reserva, um petista histórico.
Neste contexto é que o entorno do presidente procura rebater internamente as críticas com a ideia de que “Marta já teria sido perdoada”, ou “se redimido” no apoio dado na construção da chapa Lula/Alckmin e durante toda campanha de 2022. Entre muitas participações, algumas discretas, outras nem tanto, Marta e seu marido, o empresário Márcio Toledo estiveram firmes ao lado do petista contra Bolsonaro. Da gestação da união do petista com o ex-tucano até o segundo turno. Foi em um jantar na casa de Marta que também se começou a costurar a aliança com Simone Tebet (MDB), com quem ela já tinha proximidade desde o processo de impeachment de Dilma.
A resistência no PT, no entanto, ainda existe, mesmo com a consciência de que não adiantará em nada perante a liderança de Lula. A única corrente a marcar posição contrária até o momento foi a Articulação de Esquerda, presidida por Valter Pomar, que defende que o diretório nacional não aceite a volta dela aos quadros do partido. “Para que Marta volte ao PT, não basta o apoio de quem quer que seja, mesmo que esse alguém seja o presidente da República e principal liderança do Partido. Segundo o estatuto do PT, cabe uma decisão formal a respeito, decisão que compete à direção do partido”, escreveu, em seu blog. “O motivo principal é o seguinte: Marta traiu seu eleitorado e seu Partido, ao participar do golpe contra Dilma”, enfatizou Pomar. “Todos pensam o mesmo. Todos estão tristes com a volta dela. A diferença é que nós tornamos a nossa crítica pública, por meio da nota”, disse uma integrante da AE, ao Meio. Já Eduardo Suplicy, ex-marido de Marta, defende que haja prévias para a definição de quem será o vice de Boulos.
E, à revelia de todas essas críticas, Lula já tem o caso como acertado, tanto com o PSOL, quanto internamente. Na sexta-feira (12/1), o presidente cancelou uma agenda que tinha no Rio de Janeiro com militares da Marinha para seguir para São Paulo, sem compromissos públicos. Uma reunião com Marta e Boulos, segundo fontes do PSOL, está marcada para o fim de semana.
Lula decisivo
O quanto o apoio de Marta a Boulos poderá se reverter em votos ainda é uma incógnita. Mas as pesquisas do PSOL indicam que o fiel da balança será Lula no palanque. A coordenação da campanha tem em mãos pesquisas qualitativas que indicam que apenas três nomes seriam capazes de agregar votos em São Paulo em todos os nichos: o principal é Lula, seguido por Fernando Haddad e pelo governador Tarcísio de Freitas (PL) para a direita. “Lula no palanque é mais importante do que qualquer vice que se possa imaginar. Lula é hoje o fator decisivo”, disse um integrante da coordenação da campanha de Boulos.
Quanto a Marta, a campanha psolista avalia, com base nessas consultas, que ela não agrega votos a Boulos nesse momento, mas que não existe nenhum passivo de imagem que possa prejudicar. Além disso, a estratégia de lembrar o legado antigo ao longo de toda propaganda eleitoral, de mais de 20 anos, poderá trazer eleitores. Boulos ainda investirá em ter no palanque todos aqueles do campo progressista que administraram: Haddad, a deputada Luiza Erundina e a própria Marta. Essa reunião tem o objetivo de se contrapor a um ponto negativo identificado pelas avaliações qualitativas: o de que ele não tem experiência administrativa. “Não tem, mas está com quem tem. Essa é a ideia”, disse o um dirigente do PSOL.