As ideologias do Vale do Silício
Você está caminhando próximo a um lago. Veste, nesse dia, sapatos bastante caros. Especiais. Aí percebe, no meio da água, um menino bem pequeno que se debate. Ele vai morrer afogado e você é o único que pode salvá-lo. Mas perderá seus sapatos e chegará em más condições à reunião de trabalho que lhe espera. Por outro lado, como você é alto, o laguinho bate nos seus joelhos. Para você, o risco é zero. O que faz? Em 1972, o filósofo americano Peter Singer propôs esta parábola, esse experimento mental, no artigo Famine, Affluence, and Morality. Fome, afluência e moralidade.
Singer, hoje com 79 anos e professor emérito de Princeton, pertence a uma tradição filosófica inglesa com mais de dois séculos de idade: é um utilitário. Utilitaristas como Jeremy Bentham e James Mill renovaram o pensamento liberal, em princípios do século 19. Eles propunham que as pessoas deveriam agir coletivamente de forma moral. Que deveriam pensar, regularmente, sobre como atuar para promover o melhor para a maior quantidade de pessoas.
Singer não tinha qualquer dúvida de que, perante seu experimento, quase todo mundo diria de presto que entra no lago. E dane-se o custo dos sapatos ou a reunião. Mas este não era seu argumento. A todo momento, no outro lado do mundo, crianças morrem de malária ou má-nutrição. Salvá-las em quantidade custa por ano bem menos do que sapatos caros. Se agimos moralmente quando uma criança se afoga à nossa frente, deveríamos agir seguindo os mesmos princípios com crianças que estão distantes. Se esta é uma questão moral, o critério para salvar a criança em risco não pode ser o fato de ela estar na linha de visão.
Hoje, no Vale do Silício, os principais executivos, fundadores e financiadores se dividiram em três grupos políticos. Nos últimos dez a quinze anos, se politizaram num nível que jamais havia ocorrido antes. E isso tem razão. Até os primeiros anos do século, o Vale tinha importância econômica, claro. Mas a tecnologia era uma entre tantas indústrias americanas. Em agosto de 2011, a Apple se tornou a mais valiosa empresa do país por valor de mercado. No início daquele mês, ela ultrapassou a petroleira Exxon Mobil. Durante algumas semanas sambaram, com uma ultrapassando a outra, até que a companhia fundada por Steve Jobs começou a galopar. Exatos cinco anos depois, as cinco mais valiosas empresas do país eram de tecnologia. Mais dois anos e a mesma Apple cruzou a linha do um trilhão de dólares em valor de mercado. Agosto de 2018. Em setembro, foi a Amazon que conquistou a mesma marca. Aí, em abril de 2019, veio a Microsoft. A Alphabet (Google), em janeiro de 2020. A Meta, em junho de 2021. A Nvidia, em maio de 2023. Nunca houve, nos EUA, empresas que valiam mais de um trilhão. De repente, uma após a outra, foram cruzando o valor. Há quem aposte que a Nvidia será a primeira a chegar à marca de 5 trilhões em algum tempo.
E não foi só pela potência econômica. A partir de 2016, com o Brexit e a eleição de Donald Trump, o mundo começou a se perguntar sobre a influência do Vale na política. As duas questões, a da economia, a da política, levaram à conversa sobre regulação em inúmeros países. O Vale, assim, foi tragado para dentro do debate político. E o fez à moda do Vale, adaptando filosofias políticas com um olhar geek. O resultado é uma divisão em três grupos distintos que seguem visões de mundo bastante peculiares.
Reformistas atentos ao risco global
O experimento mental de Peter Singer encantou a dois doutorandos na Universidade de Oxford, estudantes que haviam migrado de sua formação original em matemática e ciência da computação para a filosofia. Toby Ord e Will MacAskill ergueram uma ong, o Centro do Altruísmo Eficaz, com o objetivo de mobilizar a maior quantidade possível de milionários a doarem para projetos realmente capazes de fazer diferença. Propunham como pergunta: em que, especificamente, se gasta melhor para gerar o maior bem possível à maior quantidade de pessoas? A Fundação Bill Gates segue exatamente este princípio.
Mas, no Vale, a ideia do altruísmo eficaz se misturou com outra. Desde 2002, um rapaz brilhante e altamente persuasivo chamado Eliezer Yudkowsky, fundador do Instituto de Pesquisa da Inteligência de Máquina, vinha alertando para a ideia de que uma inteligência artificial poderia eliminar a humanidade. Os dois conceitos se misturaram após o lançamento de Superinteligência, livro de outro filósofo de Oxford, Nick Bostrom. Em 2014, Bostrom justificava que governos precisavam começar a se preocupar com IAs o mais rápido possível. Mas o público que ele encontrou não foram governantes. Foram pessoas como Bill Gates, Elon Musk e Sam Altman. A partir daí, popularizou-se a expressão p(doom). Todo mundo no Vale tem o seu: é o valor percentual da probabilidade de a IA destruir a humanidade. Yudkowsky põe seu p(doom) em 95%. Musk, entre 10 e 20%. Altman não costuma oferecer um número, mas fala em algo com um dígito. Bill Gates considera a possibilidade menor do que 1%.
Singer argumentava que não devemos deixar de fazer uma boa ação apenas porque as crianças que podem ser salvas estão muito longe. Ord e MacAskill, quando foram bater à porta de bilionários do Vale, propunham o mesmo e traziam método. Como determinar que gastos salvam mais gente. Mas pessoas como Yudkowsky, Musk e Altman trouxeram outra variável para o experimento. O tempo. E se a melhor forma de ser altruísta com a humanidade for se preocupar com o futuro? Ao invés de se preocupar em salvar pessoas que estejam hoje, muito longe, salvar outras: aquelas que sequer nasceram ainda. Muitos, convencidos de que a inteligência artificial põe em risco a humanidade, concluíram que controlar eles mesmos seu desenvolvimento é o único jeito de garantir sua proteção. De certa forma, o altruísmo eficaz para muitos no Vale abstraiu-se de pessoas reais em crises humanitárias e se tornou um conto distópico de ficção científica. É este o ideário que move companhias como a OpenAI e, ainda mais, a Anthropic. Pois é, montam negócios bilionários enquanto sonham a salvação da humanidade.
Mas, ao seu jeito, este campo é moderado. Quem se afilia a ele é favorável a regulação pelo Estado, cosmopolita, se preocupa com os impactos da tecnologia que cria no mundo real. São reformistas preocupados com o risco global causado pelo que criam.
Conservadores Tecno-Nacionais
Em 2007, começou a chamar a atenção de inúmeras figuras no Vale um blog. Era Unqualified Reservations, assinado com o pseudônimo Mencius Moldbug. Seu autor, que evidentemente conhecia tecnologia em profundidade e estava imerso na cultura local, se propunha a reinterpretar a maneira como os EUA funcionavam. Ele via o país não como uma democracia, mas em verdade como uma oligarquia disfarçada, controlada pelo que batizou “a Catedral”. Uma elite liberal e progressista, saída das grandes universidades, impunha valores ao povo incapaz de resistir.
Seu autor era Curtis Yarvin, hoje com 52 anos, filho de diplomata, formado pela Universidade Brown, com passagem por Berkeley, duas das mais prestigiadas instituições de ensino dos EUA. Em seu blog, ele propôs que a gestão de países deveria ser reformada em busca de eficiência. Democracias sempre serão controladas por elites, argumentava. A saída seria adotar o mercado como solução. Imaginar o governo como o conselho gestor de uma empresa, o presidente como CEO, que respondem a acionistas — não a eleitores. Cada cidadão, uma ação. Não um voto. Num plano mais de longo prazo, Yarvin imagina uma série de cidades-corporações espalhadas pelo mundo, disputando talentos uma com a outra como startups o fazem.
Suas ideias ressoaram com gente importante. Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal, foi um deles. Marc Andreessen, que criou o Mosaic e depois o Netscape, os primeiros navegadores gráficos da web, foi outro. Andreessen hoje é sócio de Ben Horowitz na a16z, um dos mais importantes fundos de investimento do Vale. Ele próprio, como Yarvin, veio para a região criar sua startup na década de 1990 e se inclinava à esquerda. O tempo, e seu sócio Ben, o mudaram.
O Vale, na Península de San Francisco, é parte do naco mais progressista dos Estados Unidos. O pai de Ben, David Horowitz, foi um agitador de esquerda, trotskista, com envolvimento extenso nas manifestações contra a guerra do Vietnã. Andava, em Berkeley, com os Panteras Negras. Mas mudou. Nos anos Ronald Reagan iniciou uma lenta virada à direita, argumentando pela parca liberdade de expressão de professores que não são de esquerda nas universidades. Era uma visão bastante compatível com a que Yarvin apresentaria. No início deste século, fundou o Freedom Center, uma organização de direita que deu apoio ao movimento Make America Great Again, de Donald Trump.
Curtis Yarvin é uma das maiores influências do vice-presidente J. D. Vance e, com ele, suas ideias começaram a circular em Washington. Ele vem defendendo que o Fed, o Banco Central americano, deveria ser um departamento do Tesouro. Assim, sem independência e sob o comando do presidente, poderia reavaliar os títulos do Tesouro. Yarvin defende que, hoje, governos estrangeiros têm poder sobre os Estados Unidos por serem credores do país. O inquilino da Casa Branca poderia virar esse jogo.
A ideia de governo com governança corporativa é uma de ter agilidade. Poder tomar decisões sem atropelo de burocratas. Democracia, diz Yarvin, necessariamente cria regras demais e, portanto, fica à mercê desses burocratas que as policiam. E, neste momento, com o desenvolvimento tecnológico chinês, a lentidão dos EUA o angustia.
Elon Musk, embora com um pé firme na turma de segurança de IA, com frequência balança na direção dos Conservadores Tecno-Nacionais. É, dos três grupos políticos do Vale, o mais afeito ao autoritarismo nacionalista que, de muitas formas, se vê espelhado no governo de Donald Trump.
Este grupo não é libertário — pelo contrário, acredita em poder do Estado. Pesadamente nacionalista, se preocupa com a habilidade do país de se reposicionar estrategicamente com rapidez. Imaginam sociedades hierarquizadas por talentos. Dos três, é o grupo que mais percebe o identitarismo de esquerda como ameaça aos seus valores, já que impõe às políticas públicas critérios alheios à eficiência.
Aceleracionistas de Mercado
Em A Nascente, de Ayn Rand, ela narra a história de Howard Roark, um arquiteto que se recusa ao conformismo do gosto comum. Ao longo do livro, ele é banido de firmas tradicionais, vê seu rival na escola de arquitetura crescer cedendo ao padrão, passa por guerras de tribunal. Nos círculos libertários brasileiros, e mesmo em outros cantos do mundo, o romance mais popular de Rand é A Revolta de Atlas. Não no Vale. A ideia do engenheiro enquanto herói, o sujeito que se recusa a sacrificar sua visão perante o conformismo da sociedade, fascina.
Thiel e Andreessen já mencionaram o livro de Rand inúmeras vezes em público. Mas não só eles — e a lista é extensa. Mark Zuckerberg (Meta), Larry Ellison (Oracle) e Travis Kalanick (Uber) estão entre os muitos fundadores e executivos que o citam recorrentemente. É, possivelmente, a obra literária mais popular da região. E faz sentido. O mantra adotado por Zuck nos primeiros anos do Facebook, “mova-se rápido e quebre coisas”, segue na mesma linha. O empreendedor, nesta visão, está acima de tudo e sociedades não deveriam impor regras que atrapalhem sua ação.
Dos três grupos, o mais avesso a governos e regulação é o dos aceleracionistas. Estados, se são necessários, deveriam manter um conjunto mínimo de regras para que o mercado seja previsível, e só. Mas um subcontingente destes chega ao ponto de criar ilhas artificiais em águas internacionais para viver livres de quaisquer regras. Outros começam a erguer cidades autônomas na Califórnia, que pretendem gerir com a maior independência possível.
O culto ao fundador é antigo no Vale do Silício. É natural, já que pessoas com ideias grandes realmente construíram negócios formidáveis. Mas, ao ganhar o nível de influência que ganharam, o olhar mais atento de governos fez com que esse espírito libertário brotasse.
Querem o Estado longe e o mercado, livre. Defendem que gente talentosa deve navegar pelo mundo com liberdade, sem necessidade de vistos, para se empregar onde quiser. Acreditam que inovação, livre de obstáculos, vai criar um futuro melhor para todos.
As ideologias do Vale
Não existem partidos políticos aos quais CEOs, fundadores e investidores se afiliam. Marc Andreessen é essencialmente um aceleracionista que também sente atração pela ideia do presidente enquanto CEO. Peter Thiel faz o caminho contrário — um conservador tecno-nacionalista que já foi mais libertário, e hoje considera utópica a inexistência de Estados. Elon Musk, que sempre orientou seus negócios pela visão utilitarista do altruísmo eficaz, nos últimos anos abandonou aquela visão em detrimento do nacionalismo. E, desde que brigou com Donald Trump, sabe-se lá onde está. Mesmo Sam Altman, um dos mais moderados fundadores do Vale, dedicado utilitarista, vem se aproximando da Casa Branca no vácuo aberto por Musk. E tem lá seu sentido, já que se o objetivo é o fim, não importam os meios. No último mês, Altman se desfiliou do Partido Democrata.
Ninguém vai para o mundo da tecnologia pensando em política. Fazer política não é o objetivo nem algo particularmente atraente. Em geral, com raras exceções, quem é do Vale nunca leu muito sobre o assunto. Mas todos têm técnicas de leitura e uma tendência a inventar as coisas do zero. As ideologias que começaram a se formalizar nos últimos 15 anos pescam um tanto do pensamento político do Ocidente, mas sempre incluem umas salpicadas daquela cabeça, daquela indústria. E, neste momento da história, com exceção do primeiro grupo, não há muito respeito pelos ideais das democracias. Pelo contrário. À maioria deles, democracias parecem obsoletas.