“Auxílio Brasil é um Emergencial com cara de ‘ticket eleição'”, diz economista que ajudou a criar o Bolsa Família
No último dia 20 o Bolsa Família, o maior programa de transferência de renda já feito no país, completou 18 anos. E justamente nessa maioridade, o ministro da Cidadania, João Roma, lançou o Auxílio Brasil, que deverá substitui-lo já em novembro com um reajuste geral de 20% no valor dos benefícios. O novo programa foi proposto pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso em agosto deste ano, por meio da Medida Provisória (MP) 1061/2021. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro estabeleceu em R$ 400 o novo benefício, mais que o dobro da média atual do Bolsa Família, de R$ 189, mas deixa lacunas no redesenho do programa e incertezas sobre a fonte de custeio. Na avaliação de especialistas, o Auxílio Brasil é um retrocesso da transferência de renda no Brasil, um crime em curso contra os pobres que só privilegia motivações eleitorais.
Para o economista Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco e um dos criadores do Bolsa Família, o novo programa é uma nova versão do Auxílio Emergencial, criado durante a pandemia, que dá um empurrão na economia em meio à crise, mas serve apenas como um alívio momentâneo, sem tratar o problema da pobreza de forma precisa e estrutural. Henriques foi secretário executivo do Ministério de Assistência e Promoção Social, quando coordenou o desenho e a implementação do programa. O economista também acredita que comprometer as Contas Públicas e o cenário fiscal para ampliar o valor do benefício pode ‘retroalimentar’ a inflação, prejudicando os mais pobres. E ele explica tudo isso com exclusividade para o Meio.
No caso do Auxílio Brasil, aumentar o valor da transferência de renda e o número de beneficiários é uma tática efetiva na redução da pobreza e da desigualdade?
Aumentar o valor da transferência e o volume de beneficiários, desde que se identifique os pobres, é sempre positivo. A questão é que fazer isso desmontando o Bolsa Família faz com que seja pouco provável que isso aconteça sem uma mudança mais estruturada para o enfrentamento da condição de pobreza extrema. Desde que desenhamos o Bolsa Família, o programa sempre foi baseado nas experiências do Brasil e de outros países e na literatura científica. É um programa que evoluiu e possui inúmeras evidências de impacto positivo no alívio da pobreza. Além da distribuição de mais dinheiro para as pessoas, o Bolsa Família influencia na melhora das condições de vida por meio da redução da mortalidade, no aumento da qualidade da saúde, sobretudo com o pré-natal e a vacinação, e a frequência no número de crianças e adolescentes na escola, que é maior entre os beneficiários do Bolsa Família.
Qual o aspecto mais importante do Bolsa Família?
A principal característica do programa é que ele ajuda a quebrar o ciclo geracional da pobreza. Ou seja, os filhos dos pobres podem deixar de ser pobres e, portanto, não terem filhos pobres. Isso porque aumenta a chance de que crianças e adolescentes tenham um “mergulho educacional” mais intenso, aumentando as oportunidades e gerando mobilidade social.
O programa também tem uma metodologia mais detalhada, não?
Sim. O Bolsa Família é feito a partir do CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), que permite mapear os graus de vulnerabilidade de cada família: quantos membros possui, quantos trabalham, estudam, se possuem alguma deficiência ou até mesmo se há algum dependente químico. Então, além dos resultados a médio prazo, o CadÚnico ajuda na “digestão” da política social e a endereçar cada família para outros produtos sociais. Já o Auxílio Brasil está estritamente dedicado ao curto prazo, no alívio da pobreza, o que em si é positivo, já que ele tem um valor per capita maior. O Bolsa Família também deveria ter um valor per capita maior e incorporar mais pessoas. Mas, ao acabar com o Bolsa Família, o Auxílio Brasil não dá conta de nenhuma destas outras dimensões de políticas sociais. Na prática, o Auxílio Brasil é um auxílio emergencial com cara de ‘ticket eleição’.
Esse alívio da condição de pobreza a curto prazo, somado ao fato de ser um programa temporário, pode agravar ainda mais esse retrocesso?
Com certeza. Perceba que há uma coerência nessa perversidade, a do Auxílio Brasil. Ao colocá-lo como um programa temporário, supõe-se que o Estado tem pouca ou nenhuma responsabilidade com a mobilidade social e igualdade de oportunidades. É uma abordagem utópica no tempo e sobre sua potência de transformação. O fato de não ter um Cadastro Único, cuja última atualização para o governo federal foi em março de 2020, é um sintoma da ignorância sobre a política social contemporânea e um desprezo com a situação de vulnerabilidade. É um retrocesso nos padrões do que era a plenitude da ignorância de política social nos anos 1950 no Brasil e no mundo, que radicalizou o populismo de clientela.
Com os impactos da pandemia de coronavírus, o Auxílio Brasil ou mesmo o Bolsa Família, se continuado, precisam de medidas específicas para mitigar os efeitos da crise?
A situação da pandemia tornou a condição de vulnerabilidade da população mais intensa, e o drama associado ao volume de vítimas, 600 mil pessoas, que incidiu sobre as famílias mais vulneráveis e de forma desproporcional sobre a população negra. Você vê um aumento na fragilidade da renda familiar dos adultos vitimados pela doença também de forma desproporcional. O que precisaria ser feito é aprofundar e melhorar o Bolsa Família ao contexto da pandemia, que provocou o aumento da insegurança alimentar e sanitária, e criar condições melhores de habitação e moradia, e obviamente de combate à fome, com foco na primeira infância. Ou seja, integrando com outras políticas sociais. E não tem como fazer isso sem o auxílio do Cadastro Único atualizado.
Viabilizar o Auxílio Brasil furando o teto de gastos não cria o risco de comprometer as contas públicas e aumentar a inflação, o que acaba sendo pior para os mais pobres?
Esse ajuste fiscal, associado às formas de financiamento não explicitadas e pouco responsáveis, terá impactos sobre a inflação, que já caminha para seus dois dígitos, e na desorganização do câmbio. Todo esse efeito composto é desproporcionalmente mais punitivo para os mais pobres. Então, desorganizar as contas, aumentando a pressão inflacionária, criando uma situação de crise mais duradoura – sendo que ainda não saímos da crise anterior -, tenderá a uma redução dos efeitos positivos do Auxílio Brasil no alívio à pobreza. Diante da crise em que vivemos, que pune mais essa população também beneficiada pelo auxílio emergencial, é um jogo perde-perde. Você perde o desenho da política social preocupada em gerar oportunidade e transformar a sociedade, e perde os próprios ganhos de alívio à pobreza.
Como saldo duradouro e pós-eleições 2022, qual legado você prevê para o Auxílio Brasil?
O Auxílio Brasil, mantidos os parâmetros do auxílio emergencial – tudo indica que assim será – terá como implicação o alívio momentâneo da pobreza com o desmonte da política social. Portanto, perde todos os acúmulos e ganhos do Bolsa Família para a população mais pobre. Será um desmonte duradouro no desenho da política social e consolidação de uma política de subordinação de clientela que olha para os mais pobres com uma agenda sem nenhuma empatia e simplesmente movida pela situação emergencial, abrindo mão da responsabilidade do Estado de desenhar uma política integrada de igualdade de oportunidade e equidade. Seria muito bom aumentar o valor de transferência de renda e famílias beneficiadas, mas o caminho deveria ser aumentar isso dentro do desenho institucional do Bolsa Família.