Como o aborto virou arma política

Em junho de 1967, Ronald Reagan ocupava fazia seis meses o governo da Califórnia, seu primeiro cargo eletivo. O mês começara difícil, com um assassinato político que abalou os Estados Unidos em Los Angeles, a mais populosa cidade do estado. O senador nova-iorquino Bobby Kennedy, que havia participado de um debate sobre a Guerra do Vietnã com o governador apenas alguns dias antes, foi morto por um ativista palestino quando estava próximo de ser escolhido candidato democrata à presidência. Reagan tinha 56 anos, usava um topete e muita goma, seu rosto ainda não era marcado pelas rugas que carregaria por quase toda a presidência. Ele já era, porém, a voz de um novo conservadorismo americano, que traria valores religiosos de volta para a arena política após muitas décadas em que o laicismo havia imperado em Washington. E foi naquele mês, no dia 14, que Reagan sancionou o Ato do Aborto Terapêutico, tornando seu estado o terceiro no país a legalizar a prática. Em 1967, 518 abortos foram realizados legalmente na Califórnia. A partir de 68, a média anual saltou para a casa dos 100 mil. Reagan havia manifestado alguma hesitação a respeito da lei, mas sancionou ainda assim. A questão do aborto simplesmente não era uma que mobilizasse a direita americana.

A lei californiana era ampla — previa que o aborto seria legal em casos de estupro, incesto ou quando ameaçasse a saúde física ou mental da mulher. Este último caso, o da “saúde mental”, em essência permitia a médicos que autorizassem quaisquer pacientes aflitas com a possibilidade de terem filhos. Àquela altura, nos EUA, a tendência já estava estabelecida e outros estados seguiriam o exemplo da Califórnia até que, em janeiro de 1973, a Suprema Corte definiu que a Constituição do país protege a liberdade da mulher de escolher realizar um aborto sem que o Estado tenha o direito de interferir. A decisão no caso Roe vs Wade tornou o procedimento legal em todo o território americano.

Esta última semana, em campanha pela presidência da República aqui no Brasil, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva argumentou que o aborto precisa ser encarado como uma questão de saúde pública. “Todo mundo deveria ter direito e não ter vergonha”, afirmou num debate. “É uma coisa muito atrasada.” Embora intimamente tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Dilma Rousseff fossem também a favor da descriminalização, o assunto é tabu nas campanhas eleitorais. Tanto que Lula voltou atrás o quanto deu. “Sou contra o aborto”, se apressou a dizer no dia seguinte. “Foi a única coisa que deixei de falar.” É tabu, principalmente, por conta de um eleitorado em particular: o evangélico, que vê no tema um dos que definem suas prioridades de ação política. Aquilo que motiva seu voto. E esta preocupação é importada dos EUA, onde o pastor batista Jerry Falwell criou, em 1979, um movimento batizado de ‘Maioria Moral’, que se tornou um dos mais influentes dentro do Partido Republicano. Um movimento que definiu uma agenda conservadora no âmbito do comportamento que ressoa ainda hoje. Manifestar-se em favor do aborto deixou de ser compatível com estar no Partido Republicano — é perda imediata de votos.

E, no entanto, Ronald Reagan, o pai do atual conservadorismo político, amigo pessoal de Jerry Falwell, em 1967 sancionou uma lei legalizando a prática. Não só o fez como sua assinatura não provocou protestos, tampouco atraiu a censura de pastores, ou gerou qualquer grande controvérsia.

O aborto simplesmente não fazia parte da pauta da direita. Ou mesmo dos evangélicos.

Como começou

Frank Schaeffer, um diretor de filmes B em Hollywood, ainda lembra da cena. “Esse não é um assunto do qual quero tratar”, ele ouviu Billy Graham dizer na virada dos anos 1970 para 80. Na época, junto com Falwell, Graham era um dos mais célebres pastores evangélicos americanos. Ainda nos anos 1950, foi um dos inventores do televangelismo, a pregação cristã pela TV. Foi figura frequente na Casa Branca nos governos Eisenhower, Nixon, Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho. Naquele dia do qual Schaeffer se recorda, Graham se recuperava de um procedimento cirúrgico na Mayo Clinic, um importante hospital no estado de Minnesota. O pai do cineasta, o também pastor Francis Schaeffer, se tratava de um câncer na mesma clínica e ambos passavam dias conversando, Graham e o velho Schaeffer. Eram amigos de longa data. “Não é um assunto do qual quero tratar”, explicou Graham. “Acho que prejudicaria minha habilidade de pregar o amor de Jesus. Não é um tema nosso, isso aí é coisa dos católicos.”

Mas Francis Schaeffer queria falar contra o aborto. Aos 67, o pastor, um teólogo presbiteriano, não era um reacionário. Nem mesmo conservador. Na verdade, dentro da comunidade evangélica, era visto como um declarado progressista, amigo de estrelas do rock dos anos 1960. Usava um denso cavanhaque sem bigodes e, apesar de americano, seu cosmopolitismo o levara a fundar na Suíça L’Abri, um misto de retiro espiritual e seminário, também uma comuna frequentada por hippies, onde em dias lentos de meditação perante os Alpes se discutia temas cristãos. Schaeffer era autor de inúmeros livros que popularizavam temas densos de teologia, best-sellers entre evangélicos americanos. Quando vivo — ele morreu em 1984, aos 72 —, era tão conhecido quanto os grandes televangelistas, Graham, Fallwel ou Jimmy Swaggart.

Com o objetivo de ampliar a popularidade dos temas que lhe interessavam, Schaeffer lançou em 1976 um grande documentário, uma série dividida em dez episódios, chamada How Should we then Live? (YouTube) — Como deveríamos viver? Ao longo dos filmes de meia hora cada ele reconta a história do Ocidente através da ciência, da filosofia, das artes e da religião. Não é uma obra de ataque à ciência ou à arte moderna, como boa parte do conservadorismo político viria a ser décadas à frente. Mas é uma defesa de que a ética cristã guie decisões. Os filmes se tornaram imensamente populares e moldaram a compreensão religiosa de toda uma geração de evangélicos, nos EUA. E foram, todos eles, dirigidos pelo jovem Frank, seu filho de 24 anos.

Animado com o sucesso, o teólogo lançou em 1979 uma segunda série, Whatever Happened to the Human Race? (YouTube) — O que aconteceu à raça humana? Cuidadosamente filmada com o mesmo requinte da primeira, foi um fracasso de público quando lançada. Custou, à família, um prejuízo de US$ 1,2 milhões. Em cinco episódios de uma hora, Schaeffer argumentava que a prática do aborto era equivalente a infanticídio e sua tolerância levaria à permissão legal para eutanásia. Uma clara violação da santidade da vida humana, em seu ponto de vista. Não era um pastor conservador, apenas assim compreendia a Bíblia.

Naquele dia, na Mayo Clinic, quando tentou convencer o conservador Billy Graham a abraçar a causa, Schaeffer tinha em mente o fracasso de sua nova série. Não era só o prejuízo financeiro que o afligia. Considerava que era necessário convencer os evangélicos a se mobilizarem contra o aborto. Graham não foi o primeiro líder religioso protestante a não querer se misturar com o assunto. “Isso é coisa dos católicos” é uma frase que ambos os Schaeffers, pai teólogo e filho diretor, ouviriam ainda muito.

O lobista certo

Na década de 1970, Paul Weyrich era um importante ativista do Partido Republicano, um estrategista político. Durante os anos 1960, nos governos de John Kennedy e Lyndon Johnson, uma série de leis e decisões judiciais haviam tornado a segregação racial ilegal em todo o território americano. Com as escolas públicas proibidas de recusar crianças negras, muitas comunidades evangélicas no Sul conservador criaram escolas particulares em que só brancos eram aceitos. Logo, porém, por conta da prática discriminatória essas escolas perderam a isenção de impostos que teriam como instituições religiosas.

A incapacidade de seguir sem pagar impostos mantendo a segregação racial fez com que pastores ultraconservadores sentissem a necessidade de criar um movimento de pressão política. Foi neste ambiente que Weyrich se impôs uma missão difícil — mobilizar politicamente os americanos evangélicos. Torná-los uma grande base capaz de se impor a parlamentares e, quem sabe até, a presidentes. O problema é que a razão original, segregação racial, era um tema cada vez menos popular. Além disso, se poderia ainda atrair evangélicos brancos do Sul, o racismo ostensivo afastava os também evangélicos de outras regiões do país. Weyrich precisava de um tema, uma questão que tocasse emocionalmente os frequentadores de igrejas e os motivassem a agir como grupo político unificado.

“Tentei fazer as pessoas se interessarem por vários assuntos”, ele lembraria. Utilizava técnicas de propaganda, tentava convencer pastores a falar sobre questões, explorou tudo que lhe ocorreu. Proibição da pornografia, por exemplo. Obrigação da prece nas escolas. Oposição à emenda constitucional que garante direitos iguais a homens e mulheres. Nenhuma das pautas colou.

Mas em 1980, quando Ronald Reagan e o então presidente Jimmy Carter se enfrentaram na disputa da Casa Branca, Weyrich descobriu um assunto que parecia dar liga nas pesquisas: uma emenda constitucional que proibisse o aborto no país. A série de Schaeffer havia sido um fracasso apenas um ano antes, mas de alguma forma tocara quem a assistiu. Quando Reagan assumiu o compromisso público de tentar fazer passar a emenda, de repente o tema foi parar no debate político. Os líderes evangélicos começaram a se mexer. E a série encontrou sucesso tardio.

O trabalho de mobilização em torno da proibição do aborto demoraria anos, ainda, até se consolidar na década de 1990. Hoje, é daqueles assuntos que divide quase que numa linha perfeita, nos Estados Unidos, direita de esquerda, republicados de democratas. Não foi espontâneo, uma compreensão teológica unânime ou mesmo indiscutível. Havia debate. Evangélicos, nos EUA, se tornaram contra aborto e fizeram disso ferramenta de mobilização política porque uma estratégia foi construída. Uma estratégia com o objetivo de criar uma base que facilitasse a eleição de parlamentares e presidentes conservadores nos costumes.

Funcionou.

Frank Schaeffer, hoje aos 69 anos, tem quase a idade que seu pai tinha quando morreu. Tendo dirigido as duas séries do velho teólogo, tornou-se um ativista pró-legalização do aborto. Circula o país contando a história do tempo em que evangélicos não se interessavam pelo assunto.

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