David McCullough, in memoriam

“Sempre digo a quem deseja ser escritor que faça um curso de desenho ou pintura”, disse certa vez David McCullough. “Isso ajuda você a aprender a olhar, a observar. E escrever é observar.” McCullough morreu em sua casa no último domingo. Tinha 89 anos. Os seus eram livros de história. Escreveu um sobre a construção da Ponte do Brooklyn, um feito de engenharia para o século 19. Seu primeiro contava a história de uma enchente. Dedicou-se também, noutro livro, a explorar a influência que alguns anos vividos em Paris causaram em diversos americanos num arco de dois séculos, como isto moldou estas pessoas e, através delas, a ideia do que são os EUA. Mas McCullough é mais lembrado pelas biografias definitivas de dois presidentes — Harry Truman e, principalmente, John Adams, que adaptada se tornou uma das séries de maior sucesso da HBO (assista). Talvez a morte de um único escritor, um homem que passou meio século escrevendo livros de história americana, não valesse o espaço principal numa edição de Sábado cá deste Meio. Mas ele, David McCullough, não é um caso isolado. McCullough pertenceu a uma geração de jornalistas tornados escritores que juntos reinventaram por completo a arte de escrever não-ficção. Ao fazê-lo, criaram uma multidão de novos leitores, gente que descobriu interesse por política, por história, por compreender por que a sociedade é como está.

Talvez, no sucesso que tiveram, exista uma lição que poderia ser aplicada hoje. Porque, afinal, parte da crise da democracia ocorre por um público desinteressado em se informar. Esta é a história de uma geração.

O Novo Jornalismo

Já havia quem escrevesse não-ficção como se fosse ficção. A revista The New Yorker nasceu, nos anos 1920, com este objetivo. Nela, na década 1940, um repórter excêntrico e obsessivo chamado Joseph Mitchell escreveu alguns dos melhores textos jornalísticos vistos até ali, repleto de descrições, de diálogos. Mas Mitchell, por vezes, não resistia. Se desviava pelos meandros da ficção. Juntava personagens reais diversos num só para dar força ao texto e, desconfiavam alguns de seus críticos, deixava sua imaginação fluir para dar cor às cenas que descrevia. Mas, de certa forma, a ideia do jornalismo literário, de contar histórias reais com a mesma riqueza, ritmo e estrutura dos melhores romances, já estava lá em Mitchell assim como em outros.

Dois repórteres são considerados os pais do que se convencionou chamar Novo Jornalismo. Dois homens muito diferentes, com estilos de texto distintos, que tinham, em comum, uma atração irresistível por ternos bem cortados. Gay Talese e Tom Wolfe.

Talese aprendeu o ofício como bons repórteres o aprendem — cobrindo o cotidiano das cidades em que vivem, um dia após o outro. Chegando à redação, ouvindo dos chefes que esqueceu de fazer perguntas básicas, tendo de voltar ao escrivão de polícia, ao vereador. Mas cedo, ainda jovem, percebeu que o ofício de escrever duas ou três pequenas matérias por dia lhe interessava pouco, queria contar histórias nas quais pudesse revelar melhor as pessoas envolvidas. Foi em seu jornal, o New York Times, que começou a fazer isso. Daí saltou para a Esquire, uma revista refinada e nova-iorquina no talo, onde teria mais liberdade para escrever textos longos. Escreveu para suas páginas aquela que é considerada uma das melhores reportagens jamais feitas — Frank Sinatra está resfriado. (Publicado no Brasil pela Companhia das Letras no volume Fama & Anonimato.)

Sua missão era por no papel um perfil, o gênero jornalístico no qual se revela a personalidade de alguém, do cantor Frank Sinatra. Ocorre que Sinatra, resfriado, com a voz ruim e a dias de fazer um especial para televisão, angustiado com isso, se recusou a conversar com o repórter. Talese o acompanhava em todos seus compromissos. Passaram horas juntos sem conversar — e assim, percebeu, não precisava da conversa, só observar. “Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível – só que pior. Porque um resfriado comum despoja Sinatra de uma joia que não dá para pôr no seguro — a sua voz —, minando as bases de sua confiança, e afeta não apenas seu estado psicológico, mas parece também provocar uma espécie de contaminação psicossomática que alcança dezenas de pessoas que trabalham para ele, bebem com ele, gostam dele, pessoas cujo bem-estar e estabilidade dependem dele. Um Sinatra resfriado pode, em pequena escala, emitir vibrações que interferem na indústria do entretenimento e mais além, da mesma forma que a súbita doença de um presidente dos Estados Unidos pode abalar a economia do país.” Ver como Sinatra tratava as pessoas de suas relações, como era tratado, e dessa experiência não apenas saiu um clássico. Saiu dali, também, a compreensão final que ele precisava sobre como fazer jornalismo literário.

O melhor trabalho de Gay Talese, como Honra teu Pai, livro sobre a máfia, e A Mulher do Próximo, sobre a revolução sexual dos anos 1970, foi escrito com o repórter presente por horas, dias, meses — até anos — enquanto suas personagens tocavam a vida. A presença ostensiva do repórter não ocorria apenas pela riqueza de detalhes colhidos, tinha também a função de aos poucos se tornar despercebido. Ignorado a ponto de as pessoas agirem como se não estivessem sendo observadas. No caso de A Mulher do Próximo, trabalhou como gerente em uma casa de massagens, frequentou por seis meses um clube nudista dedicado a casais com relações abertas, viveu a vida que depois descreveria. Não foram poucas as críticas éticas que recebeu por perda de distanciamento. Com o tempo, porém, seus livros seguem de pé. Considerados clássicos.

Tom Wolfe, que surgiu pouco tempo após Talese na vida literária, se difere do companheiro de geração principalmente pela escolha de estilo. Gay Talese é um modernista, sua prosa tem uma elegância que lembra a dos mestres americanos como Ernest Hemingway ou F. Scott Fitzgerald. Wolfe era mais anos 60, escrevia como um beatnik, com um texto nervoso no fluxo de pensamento, se aproximando dum Jack Kerouac.

A primeira reportagem de Wolfe para a Esquire — sim, a mesma revista — seria um texto sobre carros esportivos. O jovem repórter foi mandado para Los Angeles, sustentado lá por uma semana e, quando voltou, estava bloqueado. O bloqueio do escritor é o pesadelo de quem escreve. Quando bate, é inclemente. Trava. No desespero pelo que já havia gasto, seu editor sugeriu então que escrevesse apenas um relatório corrido, sem qualquer preocupação com estrutura ou qualidade de texto, e assim outro jornalista, a partir das informações, construiria a reportagem. Livre da responsabilidade de entregar um texto final, Wolfe se sentou à máquina e bateu. Laudas e laudas. Ao fim era aquele um fluxo de informação, cenas, conversas, carros. A revista publicou na íntegra o que havia sido escrito como rascunho pois ali estava uma integridade viceral.

O momento

Nada acontece apenas porque pessoas têm ideias e as põem em prática. É preciso um contexto do tempo, algo que faça a sociedade estar receptiva a uma certa novidade. É preciso, igualmente, que estejam postas as condições para certas novas ideias de forma que floresçam. E os anos 1960 ofereceram esse tipo de zeitgeist para o Novo Jornalismo. Muitos já haviam experimentado com Jornalismo Literário, mas naquela década é que ele se tornaria um formato definitivo. Por três razões.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA se viram numa posição geopolítica ímpar. Se é verdade que o conflito havia atrofiado a economia global, ao fim havia uma nação plenamente industrializada no mundo que não tomou parte do cenário de guerra. Os EUA estavam de pé, produtivos, e isso queria dizer que o caminho estava aberto para a imensa prosperidade econômica das décadas seguintes. Uma das formas de ação escolhidas nos anos imediatamente após o conflito foi a GI Bill, uma lei que garantia bolsa de estudos integral para todo jovem que havia servido no conflito. Um dos resultados é que os jovens repórteres que começaram a chegar às redações, nos anos 1950, eram os mais bem formados que o jornalismo jamais vira.

Outro resultado é que este salto do número de pessoas com nível superior criou, nos grandes subúrbios americanos, um público leitor ansioso por material de qualidade. A indústria livreira se ampliou muito, mas não apenas. A década de 50 marca também a explosão da impressão offset, que barateava e melhorava a reprodução de fotografias em cores. Também explodiu a oferta, e a demanda, por revistas de qualidade. O que acelerou a indústria publicitária, também de olho na publicação de propagandas cada vez mais atraentes.

Em essência, havia dinheiro sobrando para pagar a jornalistas que pudessem ficar meses trabalhando num único assunto para uma única, e longa, reportagem.

A terceira mudança foi o surgimento da televisão, que rapidamente se popularizou por aquele tempo. A TV por um lado era concorrente da leitura. Por outro, com as belas fotografias nas revistas, criava uma cultura cada vez mais visual — a cultura onde a arte pop apareceu. Por isso, a leitura tinha de oferecer um pouco mais de entretenimento, de distração. Precisava, também, ser uma leitura mais visual, que ajudasse quem mergulhava no texto a visualizar a história. A ler como quem vê um filme. Se os romances que explodiram no século 19 influenciaram no tipo de narrativa do cinema que surgiu em princípios do século 20, agora o cinema e a TV convidavam o jornalismo a olhar para aqueles mesmos romances e redescobrir como contar uma história em texto.

História e Política

Joan Didion, David Halberstam, Norman Mailer, a lista de jornalistas escritores cresceu imensamente entre 1965 e 70. O novo gênero se consolidava e encontrava mercado — era inevitável que descambasse para um mergulho na política e, a partir daí, na história. Em 1974, Bob Woodward e Carl Bernstein puseram nas livrarias Todos os Homens do Presidente (Editora Martins Fontes). Não era um livro brilhante — não pelo texto. Mas escrito por repórteres brilhantes. A dupla Woodward e Bernstein, do Washington Post, havia levado o presidente Richard Nixon à renúncia após uma série de reportagens num arco de mais de ano em que esmiuçavam seu envolvimento com a espionagem de adversários políticos. Quando publicaram às pressas um livro contando o escândalo Watergate, porém, escolheram narrar a história do seu ponto de vista — uma história passada na redação do Post, da longa espera por telefonemas chaves, dos encontros furtivos com uma fonte secreta numa garagem perdida. Era a história de como se faz trabalho jornalístico mais do que a de como se derruba um presidente. Se não era um livro brilhante, abriu dois caminhos para o jornalismo literário. Um para o cinema, outro para a cobertura política.

O sinal de que aquelas histórias bem contadas tinham valor de entretenimento equivalente ao dos melhores romances de ficção se comprovou quando duas das maiores estrelas do cinema americano de então, Robert Redford e Dustin Hoffman, dirigidos por Alan Pakula, incorporaram os repórteres num filme com o mesmo título (HBO Max). Aqueles livros davam bom cinema em filmes voltados para grandes audiências. Mas Todos os Homens do Presidente também inaugurou um subgênero do jornalismo literário, aquele voltado para a cobertura política. Um, aliás, no qual nas décadas seguintes Bob Woodward se tornaria dos maiores expoentes.

Acompanhar política é um exercício de cidadania, quanto mais pessoas compreendem o jogo da política, mais forte é uma democracia. Aos poucos, mais e mais livros começaram a contar, nos EUA, a respeito do momento da política. Trouxeram os leitores para o centro do Salão Oval, na Casa Branca, puseram-nos sentados ao sofá perante presidentes e seus secretários tomando decisões difíceis, graves — mesmo cometendo crimes. Todos os anos, hoje, inúmeros livros são publicados desta forma. O primeiro rascunho da história sai com narrativas ricas. Este modelo já funciona no Brasil.

O livro definidor do subgênero foi publicado no mesmo ano de Todos os Homens do PresidenteThe Power Broker, algo como O Articulador do Poder, de Robert Caro. É a biografia de Robert Moses, um político corrupto nova-iorquino que dominou de tal forma a arte do exercício de poder na cidade que deslanchou uma revolução de especulação imobiliária, com inúmeros arranha-céus erguidos, que deterioraram em definitivo a paisagem urbana. Caro é um escritor refinado com a mesma obsessão por detalhes de Gay Talese, capaz de costurar histórias umas com as outras até encontrar padrões que revelam como as coisas funcionam. De um livro agradável de ler, uma história envolvente, sai também um tratado sobre o pior da política.

David McCullough publicou seu primeiro livro em 1968 e, o segundo, em 1972. Ele foi o primeiro a mostrar que era possível praticar aquela mesma forma jornalismo olhando para o passado, mesmo sem a possibilidade de entrevistar testemunhas. Nos diários pessoais, nas cartas arquivadas, naquilo que foi publicado pela imprensa, nos livros de memórias, por toda parte há material rico que possibilita a reconstrução de um momento. O que prende o leitor a uma história é a identificação, a empatia, a capacidade de simpatizar com pessoas vivendo momentos difíceis. Pode ser uma mágoa de amor, a perda de um filho — pode ser o processo da tomada de uma decisão impossível.

Caro foi buscar a história recente, escreveu sobre Moses com o velho burocrata ainda vivo e ativo. McCullough foi para o passado. Mas, de certa forma, tornaram-se um o espelho do outro quando se especializaram em biografias de presidentes que tanto humanizavam suas personagens quanto auxiliavam na compreensão do jogo político. Aos 86, Caro ainda está por entregar o quinto e último volume de sua extensa e meticulosa biografia de Lyndon Johnson. McCullough morreu aos 89 quando trabalhava em um livro novo.

Uma diferença crucial os separa. Caro escreve sobre homens de quem não gosta, sente repulsa por eles. McCullough se apaixonava por suas personagens. Seu John Adams, o terceiro presidente americano, é um homem profundamente dedicado à mulher Abigail como McCullough foi à sua mulher, Rosalee. Tinham, o escritor e ela, uma relação de afeto mas também de parceria profissional. Ela era sua maior crítica, sua primeira leitora. Como Adams e Abigail, envolvidos num tipo de relacionamento igualitário e intelectual raro para o século 18. É no encontro destes paralelos que o escritor cria a identificação e é capaz de trazer à luz uma pessoa morta há tanto. Ambos, Caro e McCullough, meticulosos na pesquisa, capazes de colocar seus leitores no centro dos acontecimentos. Capazes de nos fazer reviver um tempo, conhecer pessoas como se fossem íntimas. McCullough criticado, às vezes, por perdoar com demasiada facilidade as falhas daqueles sobre quem escrevia. Demasiado humanos. Caro por ser excessivamente crítico, por às vezes não deixar passar nem os bons resultados daquilo construído com métodos falhos. Talvez um excesso de moralismo.

Para escrever, ao longo da vida David McCullough criou uma série de ritos. Um era mergulhar nos cenários. Conhecer as casas, as ruas, os locais que descreveria. Descobrir o que ainda estava de pé, mesmo com os séculos passados. Treinar o olho — era um pintor hábil. Depois, em seu escritório, se cercava de mapas, fotos, pinturas, material iconográfico que o ajudasse a estar nos lugares sobre os quais escrevia. Gostava de escrever um primeiro rascunho a mão, para propositalmente tornar lento o processo de escrita. É um hábito de quase todos — Talese, Caro, os escritores mais virtuosos de sua geração escreviam um rascunho a mão e, só depois, datilografavam. Talese foi o único que passou para um computador, ainda assim um modelo antigo, em essência usado feito máquina de escrever.

“Com alguma frequência, enquanto batia à minha máquina na pequena cabana no fundo de casa em que costumo trabalhar, eu pensava em David”, contou Caro ao repórter da AP. “David também escrevia em uma velha máquina de escrever, numa pequena cabana exatamente como a minha, e isso me aproximava dele. Eu perdi um amigo. O mundo perdeu um grande homem das letras.”

Sua geração contava histórias encantando. Num tempo em que o jornalismo mais profundo encontrou na TV uma rival disputando atenção, eles perceberam que havia um jeito de seduzir este novo público. No tempo do TikTok, o desafio que eles encontraram está novamente apresentado.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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