O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

É o ímã, estúpido!

No dia 22 de abril, uma terça-feira ensolarada de primavera em Washington, Elon Musk dedicou parte de sua agenda a responder a perguntas de investidores preocupados com a queda de 71% nos lucros da Tesla no primeiro trimestre de 2025. Por mais de uma hora, Musk tentou explicar as razões pelas quais as vendas dos seus modernos carros elétricos haviam caído 20% nos três primeiros meses do ano e por que as ações da empresa despencavam quase 40% no acumulado do período.

Musk minimizou os impactos de sua relação umbilical com Donald Trump no desempenho da Tesla. E, como era de se esperar, evitou criticar a agressiva guerra tarifária iniciada pelo presidente americano poucas semanas antes. Ao final, recorreu à velha máxima de que “é o olho do dono que engorda o boi” e prometeu passar mais tempo na sede da empresa em Austin, no Texas, do que na Casa Branca.

Tudo dentro do script, até que um investidor perguntou sobre o andamento do projeto Optimus, a linha de robôs humanoides extremamente avançados desenvolvidos pela Tesla. Musk considera o projeto revolucionário. Sua visão é de que os robôs com dimensões e formas humanas povoarão casas e fábricas num futuro próximo, realizando serviços braçais hoje destinados a pessoas de carne e osso com pouca qualificação.

Foi aí que, pela primeira vez, o CEO da Tesla, homem mais rico do mundo e um dos principais conselheiros do presidente dos Estados Unidos, titubeou.

Musk abandonou o otimismo desmedido e reconheceu que a guerra tarifária de Trump com a China já compromete a cadeia de suprimentos de itens estratégicos para o desenvolvimento de novos produtos de alta tecnologia. Ele admitiu que o embargo nas exportações de terras raras e de seu principal subproduto — os ímãs — prejudica a produção dos novos robôs. “Sem os pequenos e poderosos ímãs que só a China produz e exporta, não é possível fazer com que os braços dos humanoides da Tesla se movimentem com a mesma sutileza e precisão de um braço humano. O Optimus está sendo afetado pela questão dos ímãs com a China… mas esperamos resolver essa questão até o final do ano, e teremos milhares de robôs.”

A preocupação de Musk ganhou pouca atenção em meio à comoção pela morte do papa Francisco no dia anterior. Mas revelou de forma explícita como um dos maiores temores de estrategistas militares e industriais americanos nas últimas décadas estava se transformando em uma dessas profecias autorrealizáveis impossíveis de serem contidas. A China, enfim, estava usando seu monopólio na produção de ímãs superpotentes para atingir a economia americana de forma profunda — com consequências ainda incalculáveis para toda a indústria de alta tecnologia, tanto civil quanto militar. Era um segredo de polichinelo.

Há pelo menos 20 anos, figuras importantes da ciência, da indústria e do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e dos principais países europeus vêm alertando para os riscos de a China controlar a produção e desenvolvimento dos chamados ímãs permanentes. Desenvolvidos há poucas décadas, esses ímãs são vitaminados com alguns dos minerais que integram a categoria do que se convencionou chamar de terras raras. Mais do que qualquer desenvolvimento tecnológico dos últimos 50 anos, são os ímãs permanentes que estão permitindo a acelerada transição energética que o mundo testemunha.

Sem os ímãs que a China deixou de exportar em 4 de abril, quando impôs um embargo temporário em retaliação ao tarifaço de Trump, boa parte das maravilhas tecnológicas desse novo mundo não existiria. Os carros elétricos supervelozes da Tesla só surgiram por conta deles, assim como as turbinas eólicas, que já produzem 20% de toda a energia gerada na União Europeia. Sem ímãs permanentes, superjatos de combate não voam, mísseis de alta precisão não são disparados e nem mesmo aquela régua imantada suspenderia no ar tantas facas em sua cozinha.

Eureka!

Utilizar ímãs para transformar eletricidade em movimento não é algo novo. O primeiro motor elétrico, construído pelo físico e químico britânico Michael Faraday, completou 200 anos em 2021. O carro elétrico, hoje sonho de consumo mundo afora, foi criado antes dos automóveis a combustão, também no século 19. Apesar das muitas inovações, a lógica de funcionamento de um motor elétrico não mudou muito. Basicamente, ele converte a energia elétrica em energia mecânica utilizando um campo magnético. É simples, é barato e é limpo. Mas, até bem pouco tempo, motores elétricos autônomos, que não precisam estar ligados a uma corrente elétrica permanentemente por meio de fios, eram pouco eficazes por duas razões: baterias de pouca duração e capacidade de armazenagem; e motores pouco eficientes que necessitavam de imensas cargas de energia permanente para funcionar.

Isso começou a mudar na década de 1960, quando cientistas iniciaram estudos na tentativa de ampliar as capacidades magnéticas a partir de ligas que continham terras raras. Mas foi só em 1984 que tudo mudou definitivamente, quando cientistas americanos e japoneses desenvolveram os mais poderosos ímãs conhecidos até hoje: os ímãs à base de neodímio, uma terra rara isolada pelos cientistas há exatos 100 anos. Logo se percebeu que os ímãs de neodímio tinham características de incrível potencial industrial. Eles eram ao menos 10 vezes mais potentes que os ímãs tradicionais, podiam ser extremamente menores, suportavam altas temperaturas e sua capacidade magnética se mantinha intacta por muito mais tempo.

Paralelamente, cientistas japoneses buscavam tecnologias que pudessem substituir as ineficientes, caras e enormes baterias à base de chumbo-ácido. Em 1985, surgiu o primeiro protótipo das baterias de íon-lítio, que hoje abastecem praticamente qualquer equipamento elétrico autônomo, desde os carros da Tesla de Elon Musk até a simples escova de dentes residencial — ambos equipados com motores à base de ímãs de neodímio. A união dos novos motores elétricos — menores, mais potentes e mais resistentes — a uma bateria com maior capacidade de armazenamento, menor volume e facilmente recarregável estabeleceu as bases para o início da transição energética que vivemos agora, ainda que naquele momento o Ocidente estivesse mais preocupado com as recentes crises no fornecimento de petróleo do que com o aquecimento global.

No novo mundo da transição energética e da alta tecnologia, os ímãs se tornaram o que foram os pistões na primeira revolução industrial. Sem eles, nada se move num mundo que luta em desespero para que a eletricidade substitua os combustíveis fósseis como fonte primária de energia. Hoje, cerca de 40% de toda a produção de terras raras no planeta é usada na fabricação desses ímãs. Ou seja, de cada 100 kg de terras raras extraídas mundo afora, 40 kg são usados para criar ligas específicas que transformam pequenos pedaços de metal em equipamentos com uma capacidade magnética incrivelmente mais potente do que os ímãs tradicionais à base de ferrite fabricados até os anos 80. Eles são tão importantes que 90% do valor agregado a partir da extração das terras raras está concentrado na produção dos ímãs permanentes, como são chamados tecnicamente esses pequenos, mas poderosos, itens magnéticos. E quem manda nesse jogo é a China, responsável por mais de 90% da produção dos ímãs permanentes. Mas nem sempre foi assim.

Até meados da década de 1990, os Estados Unidos e a Europa, em especial a França, eram os monopolistas na mineração, no processamento e no refino de terras raras no mundo. Nesse mesmo período, apenas Estados Unidos e Japão — utilizando insumos americanos — tinham tecnologia suficiente para o desenvolvimento de ímãs permanentes de terras raras e seus subprodutos. Eram tempos de transição, em que o cenário geopolítico parecia distensionado após o colapso soviético, a emergência dos Estados Unidos como potência hegemônica e um acelerado processo de consolidação das políticas neoliberais que previam um mundo cada vez mais globalizado. Era também um momento de crescentes pressões ambientais e do fortalecimento de políticas de mitigação dos impactos que as indústrias pesadas causavam ao meio ambiente e às populações em seu entorno.

Os Estados Unidos foram os primeiros a explorar e utilizar as terras raras de maneira efetiva. Em 1950, em meio à corrida nuclear da Guerra Fria, pesquisadores americanos acreditavam estar próximos de encontrar urânio em uma antiga mina de ouro localizada a menos de 100 km de onde hoje é a cidade de Las Vegas. Apesar de a Mina de Mountain Pass emitir estranhos sinais radioativos, não havia urânio ali, mas sim uma imensa concentração de boa parte dos minerais que compõem o conjunto dessas terras que se imaginavam raras. Naquele momento, o principal valor comercial estava no európio, um mineral fundamental para a produção de uma das grandes maravilhas tecnológicas dos anos 1960: a televisão em cores. Entre 1965 e 1995, a mina de Mountain Pass era a maior fornecedora de terras raras do mundo. Parte do que era minerado era refinado e separado nos Estados Unidos e outra parte enviada para a França, a segunda potência na cadeia industrial das terras raras até a década de 1990.

Ônus e bônus

Apesar do nome, as terras raras não são tão raras assim. Estão espalhadas em grandes quantidades mundo afora, no Brasil inclusive, que detém 16% das reservas mundiais. O problema não é exatamente encontrar esses minerais. O maior desafio é tirá-los da crosta terrestre e separá-los de outros minerais. Numa comparação bastante simplista, as terras raras são como o sal utilizado na fabricação do pão francês. É simples adicionar poucos gramas de sal à farinha, ao fermento e à água para fabricar um pãozinho. O sal é abundante e barato, está em todos os pães. O problema é conseguir isolar o sal novamente depois que o pão saiu do forno. Não é um processo simples. Com as terras raras acontece o mesmo. O neodímio, o európio e os outros 15 minerais que compõem esse conjunto de metais estão espalhados em pequenas quantidades em vastas áreas. Uma estimativa grosseira dá conta de que para se conseguir 5 kg de terras raras, por exemplo, é preciso arrancar do solo ao menos uma tonelada de material mineral. Ou seja, é necessário explorar áreas imensas, destruir muita natureza para conseguir extraí-los da terra. E esse é o menor dos problemas.

O processo de refino e separação dos metais chamados de terras raras em geral envolve processos químicos extremamente poluentes. Quase sempre esses minerais estão juntos quando encontrados e, depois de separados do resto do material mineral, precisam ainda ser isolados um a um. Para isso, são necessários novos processos químicos, mais água, mais poluição. Por isso, quando as legislações ambientais passaram a se tornar cada vez mais robustas nos países ocidentais nos anos 1990 e 2000, minerar, refinar e separar as terras raras começou a ficar caro demais. Processos movidos por moradores que tiveram suas comunidades destruídas pela poluição ganharam as cortes e afetaram as empresas.

Em 1988, Mountain Pass parou de refinar e separar as terras raras. Em 2002, em meio a um vazamento de componentes químicos, fechou de vez. Na mesma época, a Solvay encerrou as operações de processamento de terras raras em sua unidade de La Rochelle, no Norte da França, até então uma das maiores plantas industriais na separação e refino dos minerais que abasteciam a indústria de eletroeletrônicos, de defesa e as embrionárias startups que já apostavam que o futuro estava na transição energética.

Europeus e americanos já haviam iniciado a transição econômica em busca de mão de obra barata na China. Agora, os produtos de consumo mais básicos estavam sendo fabricados pelo gigantesco excedente de trabalhadores que a China colocava à disposição de um Ocidente cada vez mais avesso à organização trabalhista, que seguia a demandar uma divisão mais justa dos lucros industriais entre o capital e o trabalho. Com a transferência da produção industrial para o outro lado do mundo, as margens cresciam não só pela redução no custo da mão de obra. Era possível, também, ganhar em escala. O processo de desindustrialização ocidental começou antes que as demandas ambientais ganhassem o centro do debate público. Mas logo os países ricos começaram também a terceirizar o passivo ambiental de uma nova revolução econômica.

Legislações cada vez mais restritivas nos Estados Unidos e na União Europeia passaram a ser aplicadas a fim de que os países ricos conseguissem fazer a transição para uma economia de baixo carbono sem precisar lidar com suas consequências. Carros elétricos, energia solar, turbinas eólicas, drones, motos sem fumaça, alta tecnologia, sacolas recicláveis. No novo mundo da transição energética tão urgente, a produção industrial de alta tecnologia parecia absolutamente distante dos cenários de terra arrasada tão comumente associados às revoluções industriais que marcaram os séculos 19 e 20. Ao menos na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, as cicatrizes deixadas pela mineração estavam desaparecendo.

Na China, elas só faziam crescer. Rapidamente, o governo chinês optou por ocupar o vácuo na produção estratégica das terras raras a (custos ambientais altíssimos). Minas, fábricas, complexos industriais foram espalhados por todo o país para alimentar a demanda mundial crescente, em especial, pelos ímãs superpotentes. Baotou, a capital da Mongólia Interior, se transformou no maior centro de produção de terras raras do mundo. Junto com as indústrias e minas, vieram imensos lagos tóxicos com os rejeitos químicos após o processo de separação dos elementos. O número de casos de câncer disparou, a agricultura desapareceu, os animais morreram.

Mas a decisão chinesa de assumir os passivos ambientais na produção de terras raras teve recompensas importantes. Na primeira década dos anos 2000, a China já se tornara a monopolista na produção dos minerais. Sem insumos, as empresas americanas que dominavam a sensível tecnologia na produção de ímãs permanentes se viram obrigadas a transferir as operações — e junto sua tecnologia — para a China. Em 2010, os chineses já estavam depositando suas próprias patentes de novos ímãs permanentes, ainda mais potentes e mais avançados que os produzidos nos Estados Unidos e na França poucos anos antes.

Hoje, o domínio chinês é absoluto. Tanto na mineração quanto no refino e separação das terras raras quanto na produção industrial estratégica de basicamente tudo relacionado à economia de baixo carbono profundamente dependente desses minerais.

As armas da guerra

Desde a vitória de Donald Trump em novembro do ano passado, diversas indústrias mundo afora ampliaram suas compras de ímãs e outros produtos derivados de terras raras, temendo que um confronto entre Estados Unidos e China pudesse comprometer a cadeia de suprimentos. Na última semana, o jornal inglês Financial Times estimou que os principais fabricantes de carros elétricos da Europa e dos Estados Unidos tinham estoques de ímãs que podem durar entre três e seis meses antes que o ritmo de produção possa ser comprometido. Os carros elétricos são apenas a parte mais visível dos incríveis problemas que o embargo chinês já causa em toda a indústria ligada à transição energética, como as turbinas eólicas, que têm dependência vital dos ímãs permanentes para funcionar. Ou mesmo de uma parte importante de toda a indústria de defesa ocidental, que também usa os ímãs em larga escala para produção do que tem de mais avançado em seu armamento.

Há mais de uma década existe uma preocupação genuína nos países ocidentais de que a China, inevitavelmente, usaria tamanha vantagem a seu favor em tempos de crise, como agora. A decisão do governo chinês em impor um embargo na exportação das terras raras e, em especial, dos ímãs permanentes, não surpreendeu quem acompanha esse assunto tão denso, nada sexy, mas fundamental para um mundo em transformação. O debate acontece desde que a China passou a ser dominante, mas nunca ganhou atenção genuína dos governos ocidentais, ora envolvidos em guerras contra inimigos pouco estratégicos, ora pressionados demais por uma opinião pública avessa a qualquer retrocesso nas legislações ambientais.

Ainda assim, nesses últimos anos, diferentes países ocidentais estão revendo a estratégia de lidar com os passivos ambientais ligados à exploração, refino e separação das terras raras. Nos Estados Unidos, com apoio do Departamento de Defesa, a mina de Mountain Pass foi reaberta em 2019. A produção ainda é pequena e, por questões ambientais, todo o processo extremamente poluidor de separar os minerais ainda é feito fora do país. Lentamente e também com apoio financeiro do governo americano, diversas indústrias ligadas à produção de ímãs permanentes estão sendo instaladas no país.

Quatro dias depois de a China anunciar o embargo de exportações de terras raras e ímãs permanentes, a França anunciou que vai reativar a fábrica de La Rochelle, antiga líder europeia no processamento dos minerais. A Solvay está à frente da empreitada e vai concentrar sua produção em ímãs permanentes. A companhia acredita que conseguirá atender até 30% da demanda europeia por ímãs de neodímio até 2030. A França, no entanto, segue os americanos e, nesse momento, não pretende investir no processamento das terras raras. Ou seja, o passivo ambiental da transição energética seguirá nos países periféricos, ao que parece.

Em tempo: Ao completar 100 dias de governo nessa semana, Donald Trump pareceu bem menos confiante na sua tentativa de fazer a China dobrar-se à sua guerra tarifária. Bem ao seu estilo fanfarrão, disse que os chineses haviam buscado iniciar negociações com os Estados Unidos para rever as tarifas. Foi prontamente desmentido por Beijing.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Já é assinante premium? Clique aqui.

Este é um conteúdo Premium do Meio.

Escolha um dos nossos planos para ter acesso!

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual

*Acesso a todos os cursos publicados até o semestre anterior a data de aquisição do plano. Não inclui cursos em andamento.

Quer saber mais sobre os benefícios da assinatura Premium? Clique aqui.