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A lição da Alemanha

A gente já está há tantos anos discutindo sobre como salvar democracias que às vezes a conversa cansa um pouco. Só que algo muito interessante está acontecendo na Alemanha. E, veja, na real existem três maneiras de olhar para a decisão que o Departamento de Proteção da Constituição tomou de considerar a AfD, o partido que levou 21% dos votos na eleição de fevereiro agora, de classificá-lo como extrema direita.

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A primeira maneira é como a direita populista está tratando por aí. Uma violação da liberdade de expressão, olha só, que absurdo e paralapapá. A segunda é como muita gente de esquerda encara. Tem de tornar ilegal, tem de proibir, estão mais que certos e tudo o mais. Aí tem uma terceira maneira: entender o que os alemães fizeram porque, lá, ele não acham nada disso óbvio, nada disso simples, e estão caminhando com muita cautela.

Então vamos começar pela decisão. No dia 30 de janeiro, o Bundestag, o Parlamento alemão, mandou que se formasse um painel de especialistas na Constituição para que avaliassem se cabe abrir um processo para banimento do AfD.

Este partido, o Alternativa para a Alemanha, se tornou o terceiro maior do país após a eleição de fevereiro. Eles consideram, por exemplo, que pessoas que vêm de terras muçulmanas não devem ter o mesmo status de cidadania de alemães que tenham nascido no país.

A decisão dos deputados é bastante simples. Que um conjunto de juristas avalie se há elementos, no discurso do AfD, que justifiquem a abertura de um processo para banimento. Não é um processo que cabe ao parlamento, o que o Congresso faria é abrir uma ação e levá-la à Corte Constitucional Federal, que é equivalente ao nosso Supremo.

Em 20 de março a Corte local de Stuttgart rejeitou um pedido do AfD para que o serviço estadual de inteligência retirasse o partido da lista de organizações de extrema direita. Quer dizer, a polícia investigativa local definiu o AfD assim. Como extremista. Isto quer dizer que eles mantém a agremiação em vigilância permanente. O partido pediu para a Justiça retirá-lo da lista. Os juízes negaram. Aí, uma semana depois, em, 27 de março, um processo similar foi decidido pela Corte Constitucional. De novo: a principal do país. O AfD havia requerido acesso ao financiamento público para sua fundação. O Supremo alemão disse que não, pois a suspeita de que a organização seja extremista é válida e, enquanto não ficar claro que na verdade é um partido democrático como qualquer outro, não terá dinheiro público.

Aí, sexta-feira passada, o Escritório Federal de Proteção à Constituição tornou público um relatório de mais de mil páginas. Após uma investigação de três anos, tirou o AfD da lista de organizações suspeitas de serem extremistas e o passou para a lista de organizações extremistas. Quer dizer, subiu um degrau. O resultado desta decisão é que as organizações policiais nacionais passam a ter pleno poder de investigação. Não precisam de assinatura de juiz algum para investigar, botar escutas, quebrar sigilos.

Isto não é um banimento. É apenas uma classificação oficial. Na Alemanha, o AfD é considerado uma agremiação de extrema direita. Os parlamentares que foram eleitos seguem eleitos, seus líderes continuam podendo falar o que quiserem, o partido é legal. Mas está no centro da lupa oficial. Está na mira. E, sim, isso abre o debate sobre bani-lo por completo. O que cada estado começa a discutir, agora, é se todo financiamento público de campanha deve ser suspenso. Se, também, funcionários públicos afiliados ao AfD devem ser demitidos.

É neste ponto em que estamos. O secretário de Estado americano, Marco Rubio, logo tuitou. Disse que este poder de investigação total mostra que a Alemanha é uma tirania disfarçada. Que deixou de ser uma democracia. Elon Musk afirmou que o AfD é um partido centrista. E o ministério do Exterior alemão respondeu ao secretário americano. “Nós aprendemos com nossa história que o extremismo de direita precisa ser interrompido.”

Esta é a ideia chave que a gente precisa encarar. Para pensar democracias, precisamos pensar em como democracias se organizam. Uma pista: história importa. História importa muito. E, não, nem todas as democracias se formam iguais.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Eu realmente acho divertido quando, às vezes no mesmo vídeo, vem um “ele é comunista” e um “ele é bolsonarista”. Não é à toa que somos atacados pelos dois lados. A gente não joga em cima do muro. O Meio preza pela liberdade. Liberdade para discordar. Para ouvir direita e esquerda. Para pensar diferente mesmo que as pessoas tenham congelado na polarização. O Meio é lugar de conversa. É onde você se informa sobre política, economia, cultura, tecnologia e atualidades ouvindo diferentes pontos de vista de gente que trabalha com fatos, com números, com análises qualificadas. Temos streaming com filmes que não repetem o que está por aí e te fazem saber mais e pensar diferente. Nossa Edição de Sábado mergulha em debates atuais para você saber como opinar sem replicar discurso. O Meio Político é um conteúdo especial semanal para entender o cenário em Brasília e o que está rolando no cenário político. Quem assina o Meio Premium ainda tem acesso aos nossos cursos, com grandes nomes explicando política, história, inteligência artificial e muito mais. Vem conhecer o Meio Premium. Caso você não goste, o que eu duvido, o cancelamento é zero burocracia. Leia. Assista e compreenda o que é essencial para sair das bolhas.

E este? Este é o Ponto de Partida.

O problema de muito da maneira como conversamos sobre democracia é que as pessoas tratam valores como se fossem absolutos. Valores não são absolutos. Valores estão diretamente ligados ao que a história nos ensina.

O que a história ensinou aos americanos? Havia uma extrema direita viva, nos Estados Unidos, nos anos 1920 e 30. Houve um extenso debate. Ela não tomou o poder nacional. A extrema direita seguiu viva na forma do racismo — o forte debate público, os protestos, a Justiça, derrubaram as leis racistas. Em cada momento destes, a ideia de que um espaço aberto para que todos falem é capaz de melhorar a democracia se fortaleceu, se firmou. Se comprovou. E, desde os anos 50 do século passado, decisões consecutivas da Suprema Corte ampliaram e ampliaram a tolerância com a expressão de ideias.

Muita gente acha que a Primeira Emenda da Constituição americana é, por natureza, a lei que garante mais liberdade de expressão no mundo. Não é. Não era interpretada assim no século 19, nem em boa parte do século 20. Esta é uma leitura pós-Segunda Guerra. Como a Suprema Corte é que define o que a Constituição quer dizer, essa interpretação se tornou assim, mais e mais ampla, porque a história do país levou a esta compreensão.

Mas e na Alemanha? Bem, os alemães também tiveram uma extrema direita viva nos anos 1920 e 30. Ela chegou ao poder pelo voto, botou fogo no Parlamento, deu um golpe de Estado, criou o Terceiro Reich, invadiu um país, dois, e quando entrou na França o planeta todo foi tragado pela Segunda Guerra onde morreram 80 milhões de pessoas.

Então, quando eles foram escrever uma Constituição, incluíram o que chamam de cláusulas da democracia militante. Estes artigos não vieram do nada. Vieram do trabalho de juristas que se exilaram no período nazista e ficaram estudando sobre como erguer um documento constitucional para uma Alemanha futura em que algo como o nazismo não pudesse renascer. E, veja, a Constituição é 100% alemã. Mas, nos anos 40 do século passado, os americanos dominavam metade do país, interferiam nas decisões, e aprovaram cada um destes artigos. Washington, a Washington daquele tempo, considerava que os alemães precisavam mesmo ter um monte de salvaguardas para impedir o crescimento, por apoio popular, de uma nova extrema direita.

Por quê? Porque já aconteceu antes. Marco Rubio sabe disso. Elon Musk talvez esteja tão saturado de quetamina que anda em delírio constante. Não é o caso de Rubio. Ele sabe exatamente por que a lei alemã é assim.

O problema da AfD é, essencialmente, um: ao tratar pessoas de um grupo étnico ou cultural como diferente das outras, viola a premissa essencial da democracia militante alemã. E, ainda assim, a Alemanha está agindo com muita cautela, com investigação, com tempo. Compreende que o AfD é popular, que um grupo cada vez maior de jovens se sente representado por sua voz e por sua mensagem. Estas pessoas, seus ressentimentos, suas ideias, precisam ser compreendidos. Mas, na Alemanha, tem limite. As pessoas não são banidas. Seus títulos de eleitor não são cassados. Só que o partido, se não se moderar minimamente, pode, sim, ser extinguido. Não é amanhã, não é depois. Mas o processo está em marcha.

E nós, no Brasil? O que nós aprendemos com a nossa história. Uma pista: general que tenta golpe e não é punido tenta, sempre, uma segunda vez. E tenta uma terceira. A gente não pode abrir este flanco. Quem planejou um golpe militar e tinha estrelas no uniforme precisa encarar a Justiça. Ser punido. Este é o nosso fardo histórico. Nós não somos como os americanos. Aqui, a democracia acaba de vez em quando.

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