“É uma ferida aberta na nossa história”, diz coautor de livro sobre caso Marielle

Em seu último discurso antes de ser assassinada, em março de 2018, Marielle Franco, quinta vereadora mais votada do Rio nas eleições de 2016, disse que não admitiria ser interrompida por ninguém. Os esforços para que seu legado subsista ganharam uma contribuição com o livro Quem Matou Marielle? – Os bastidores do caso que abalou o Brasil e o mundo relevados pelo delegado que comandou a investigação (Matrix – 2022), escrito pelo delegado Giniton Lages, responsável pelo primeiro ano de investigações, e pelo cientista político Carlos Ramos. Já se passaram quatro anos desde que a vereadora do PSOL e seu motorista, Anderson Gomes, foram alvejados por 13 tiros à queima roupa. O caso segue com o mandante do crime desconhecido.

Ao todo, cinco delegados passaram pela investigação. O primeiro deles foi Lages, que se surpreendeu ao ser afastado do caso. O último a chegar, Alexandre Herdy, assumiu há dois meses. E uma nova janela se abriu para as investigações quando a polícia e o Ministério Público apontaram que um dos possíveis mandantes é Rogério de Andrade, um dos principais nomes do jogo do bicho carioca. Dois suspeitos de terem cometido o crime estão presos, mas ainda não foram julgados. “Mergulhamos no primeiro ano da história. O livro foi escrito para honrar a democracia e a memória de Marielle”, diz Ramos, que também é filósofo e jornalista e conversou com o Meio sobre a produção da obra.

Ramos foi a escuta atenta de seu amigo delegado, que decidiu compartilhar suas memórias a partir de um ângulo privilegiado do caso. O livro traz uma narrativa apartidária, didática, que detalha protocolos da investigação, incluindo inovações como a que resultou no Google contribuindo com a quebra de sigilo de operadoras de celular, levantando o histórico de navegação dos suspeitos. Acompanhe trechos da entrevista.

Como sua história se encontrou com a de seu coautor, o delegado Giniton Lages?
Temos uma relação pessoal. Durante o caso Marielle, eu acompanhei como amigo a angústia dele. Depois de um tempo, ele foi afastado do caso e tinha vontade de contar essa história. Eu, pessoalmente, tinha muito interesse no assunto, não conhecia a trajetória da Marielle. Foram dois anos nesse trabalho.

Como foi a produção do livro?
Giniton tinha a história de um ponto de vista inédito e único de quem estava dentro do caso, no furacão. E eu tinha interesse como pesquisador. Juntamos as memórias dele com a minha pesquisa. Eu pesquisava e fazia perguntas pontuais, já que a memória muitas vezes é seletiva. O meu trabalho era de ouvi-lo, passamos semanas gravando entrevistas e eu ia montando um cronograma pelos fatos. Fizemos entrevistas e contatos com outros policiais e pessoas da equipe. Visitamos locais que tinham importância para a história.

Quais foram suas descobertas nesse processo?
Nós quisemos trazer consistência para o livro e isso vem com contexto e evidências. É impossível pensar no caso Marielle sem entender o contexto político e cultural daquele momento. Minha primeira descoberta foi a própria Marielle, eu não a conhecia. Era uma pessoa ética e com propósito. A segunda foi descobrir o Rio de Janeiro. E, mais do que isso, a proposta é discutir o Brasil — o crime acontece no Brasil e a dificuldade de desvendá-lo é porque estamos no Brasil. As pessoas acreditam que um crime de grande repercussão vai ser investigado de forma diferenciada, e isso não acontece. Ele é olhado com os mesmos recursos humanos, materiais e dificuldades de lidar com essas instituições. Continua sendo investigado na mesma realidade.

E qual era esse contexto?
Começa pela intervenção [federal na segurança pública do Estado]. Era um contexto muito atípico, porque foi a primeira intervenção na história depois da Constituição. Houve operações temporárias de garantia da ordem, mas uma intervenção tirando poderes do governador e passando ao presidente da República era o único. Tudo indica que isso foi feito sem o planejamento adequado. O [então governador] Pezão viaja para Brasília num final de tarde e fica até 23h com o [então presidente Michel] Temer para resolver. No dia seguinte, anunciam a intervenção. Era um momento sensível do ponto de vista eleitoral, o presidente ensaiava uma possibilidade de reeleição. Será que a segurança pública foi tratada realmente em termos técnicos? Ou ela foi vista como um momento oportuno pelo governo federal? Esse é um ponto.

O que a investigação revelou da operação das milícias?
Na medida em que vão se checando as linhas de investigação, mesmo que essas linhas acabem não levando à solução do caso, elas vão demonstrando o problema complexo de segurança no Rio. Minha preocupação é tratar milícia como se fosse um fenômeno único, e não é. Não existe uma categoria que possa ser classificada como milícia, são muitas situações diferentes tratadas do mesmo jeito. Há grupos militares que andam armados, dominam determinados territórios e exploram as atividades econômicas, mantendo um certo controle por meio da violência. Só que esses grupos são muito variados. Há aqueles liderados por ex-agentes ou agentes de segurança pública; tem outros que são liderados por civis; uns combatem o tráfico nos seus territórios; outros estão envolvidos com o tráfico. Então, a primeira coisa é não simplificar uma situação complexa. O caso desse grupo é muito complexo e tem ramificações em outras áreas. O livro mostra que existe uma rede de relações, e que essa rede perpassa o tecido social no Rio de Janeiro.

Com o que se sabe hoje, é possível responder à pergunta-título do livro?
Nós mergulhamos no primeiro ano da investigação. Muita coisa aconteceu três anos depois. Então, 75% do caso eu desconheço. O livro coloca essas dúvidas e acaba quando os suspeitos são presos e Giniton é afastado do caso. O caso foi precursor em várias técnicas de investigação. Quando o Giniton participou em 2011 da investigação da morte da juíza Patrícia Acioli, a tecnologia era de ligações telefônicas.

Dos bastidores da investigação, houve algo que ficou escondido do público que valha destacar?
O caso só foi resolvido pela disposição do delegado e da equipe. Tinha tudo para não ser: um cenário complexo, um crime planejado em detalhes, o esforço de não deixar rastros. Os bastidores acabam revelando essa vontade. Por exemplo, a tentativa deles de conseguir as imagens de câmeras [de segurança da rua], que falavam ser impossível por conta do contrato [suspenso, que acabou desligando as câmeras]. Mas a equipe insistiu. No caso do Google, eles não se negam mais a oferecer os dados, isso foi uma contribuição da investigação da Marielle. Hoje é possível quebrar o sigilo, fazer esse acordo para obter o histórico de navegação de internet.

Você ficou com medo de fazer o livro?
A gente sempre tem medo, claro! Seria irresponsável não ter. Mas essa preocupação acaba guiando o livro num caminho positivo. Decidimos desde cedo que não faríamos julgamento de valores. Queríamos contar o que aconteceu, mas com um certo distanciamento. O caso Marielle é uma ferida aberta na história do Brasil, na democracia e que não pode ser esquecido. Precisa ser resolvido. Para isso, entendemos que a melhor maneira era contar os fatos sem politizá-los, para que as pessoas reconhecessem a grandiosidade da Marielle e não só o que aconteceu depois.

Mas escolher contar essa história é um ato político.
Todo ato é político. A polarização acaba tirando a oportunidade de o país seguir caminhos consistentes. Nossa preocupação era fazer um trabalho que tivesse conteúdo aprofundado, que as pessoas tivessem acesso a elementos para entender os fatos. A ideia é tentar trazer lucidez e mostrar que não adianta ficar nessa guerra vazia se não conseguimos enfrentar problemas como esse. A morte da Marielle é um problema, por tudo que envolveu, pela violência, por tudo que ela representava, pelo que aconteceu depois. Tudo isso precisa ser revisto. O objetivo do livro é pensar o Brasil a partir dessa ferida aberta da nossa história.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: O jogo duplo de Pacheco
Edição de Sábado: A política da vingança
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk
Edição de Sábado: Eu, tu, eles
Edição de Sábado: Condenados a repetir

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)