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Enhanced Games, os jogos do doping

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Cinquenta metros livre em 20 segundos. Cem metros rasos em 9 segundos. Hoje, essas marcas parecem quase impossíveis de serem alcançadas. Os atuais recordes nessas duas modalidades — com números mais modestos — se mantêm desde 2009. O da natação, pertence ao brasileiro César Cielo, que cruzou a piscina em 20s91. Já o da principal prova do atletismo é do jamaicano Usain Bolt, com 9s58. O atleta que quebrar uma dessas marcas pode embolsar nada menos que US$ 1 milhão. É o que promete o movimento Enhanced Games, que, em tradução livre significa algo como jogos aprimorados. Fundada pelo empresário australiano Aron D’Souza. em novembro de 2023, essa iniciativa acredita no “processo médico e científico de elevar a humanidade a seu potencial pleno, através de uma comunidade de atletas comprometidos”. É uma defesa ao fim dos controles e proibições de substâncias capazes de melhorar a performance esportiva, ou seja, um vale tudo para superar recordes.

A polêmica ideia ganhou força no último dia 13, quando o fundo de investimentos 1789 Capital, que tem entre seus sócios Donald Trump Jr., fez um aporte de “muitos milhares de dólares” e relacionou a iniciativa à ideologia Maga (Make America Great Again), defendida por seu pai. “Os Enhanced Games representam o futuro — competição real, liberdade real e recordes reais sendo quebrados. Trata-se de excelência, inovação e domínio americano no cenário mundial — algo que é o objetivo do movimento Maga”, afirmou.

O topo do site oficial dos Enhanced Games destaca o recente investimento do filho do presidente americano com um vídeo de 30 segundos, cujo frame congelado exibe a imagem de Donald Trump. A mensagem é direta: “A mídia afirmou que os Enhanced Games eram impossíveis, mas, nos EUA de Donald Trump, o impossível é o que fazemos de melhor”. E encerra prometendo a realização de “novas olimpíadas, em uma nova era de ouro”. A administração republicana tem defendido uma agenda pouco ortodoxa de saúde, liderada por Robert Kennedy Jr., que já expressou dúvidas sobre a segurança e eficácia de vacinas. Trump Jr., por sua parte, é visto como um conselheiro próximo do pai, mas sem uma posição formal no governo.

Os jogos aprimorados também receberam apoio financeiro do investidor tecnológico Peter Thiel, outra figura com laços estreitos com a Casa Branca, do investidor em criptomoedas Balaji Srinivasan e de Christian Angermayer, um financista alemão que é um dos principais investidores em psicodélicos comerciais.

Super-humanos

O objetivo final é criar um terceiro evento olímpico, que se somaria aos tradicionais jogos de verão e de inverno, mas “desafiando os paradigmas esportivos tradicionais, fundindo o progresso científico com o desempenho atlético de elite”. Apesar de a iniciativa ter sido fundada por um australiano, o “excepcionalismo americano” aparece com força na apresentação do movimento. “Somos os atletas mais rápidos do mundo e temos orgulho de sermos aprimorados, temos orgulho de sermos super-humanos”, afirma o narrador em outro vídeo de 30 segundos sobre o aporte da 1789 Capital. “Esta é a era de ouro EUA, é a hora de criar super-humanos.”

D’Souza diz estar construindo algo revolucionário: esportes sem hipocrisia, em que o melhor pode realmente ser o melhor. Um dos argumentos é o fato de vários atletas terem quebrado recordes e ganhado medalhas olímpicas usando substâncias descobertas apenas anos depois. Para ele, é melhor acabar com a farsa e usar a ciência para alcançaar o máximo do potencial humano. Mas como isso impacta o corpo humano? Ao contrário do que defendem as entidades de controle de dopagem, o movimento diz acreditar que os benefícios da ciência e da tecnologia podem ser utilizados no esporte de forma segura e devem ser celebrados em competições. E destaca que seu dever primordial é proteger a saúde e a qualidade de vida dos seus atletas e que, para isso, desenvolveu um protocolo abrangente de exames médicos. “E estamos contratando os melhores cientistas e médicos para garantir que, quando nossos atletas se tornarem super-humanos, façam-no com segurança.”

As promessas de acompanhamento médico para garantir a saúde e segurança dos atletas não convencem quem lida no dia a dia com a medicina do esporte. O endocrinologista Clayton Macedo, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, explica que não existe acompanhamento, supervisão ou controle capaz de evitar os efeitos colaterais de esteroides anabolizantes. E o dano a longo prazo é o mais importante. “Há um trabalho científico que acompanhou um grupo por 11 anos e mostra uma taxa de mortalidade três vezes maior entre os que usavam esteroides anabolizantes, com risco de cardiomiopatias 8,9 vezes maior. Além de problemas no coração, há risco de derrame, tumores no fígado, hepatite aguda ou crônica, além de impactos no sistema reprodutor. Também foram registradas alterações neuropsiquiátricas, com aumento da agressividade e ansiedade, além de risco de crimes violentos nove vezes maior”, detalha.

Os Enhanced Games ainda não anunciaram a cidade-sede ou data da competição, que poderia ocorrer já neste ano. Os jogos incluiriam eventos de atletismo, natação e “força”, embora apenas um atleta, o nadador James Magnussen, membro aposentado da equipe olímpica australiana, tenha abertamente se disposto a participar. Ex-bicampeão mundial nos 100 metros livre e medalhista de prata na Olimpíada de Londres, em 2012, o australiano diz que já há atletas seguindo os protocolos dos Enhanced Games nos EUA e que, mesmo aos 40 anos, conseguem atingir o pico de sua performance atlética. A ideia dele é ver o que acontece com sua performance após o uso dessas substâncias. O dinheiro, é claro, também é um dos motivadores. O movimento promete pagar US$ 1 milhão pela quebra do recorde de Cielo, além de pagar todos os atletas que participarem. Segundo os Enhanced Games, 59% dos atletas olímpicos americanos ganham menos de US$ 25 mil por ano.

O movimento conta inclusive com um documento denominado Primeira Declaração Sobre o Aprimoramento Humano, que tem dez artigos. Um deles destaca o dever de respeitar a legislação nacional. E é aí que parece ficar mais evidente que os EUA serão o palco para a “olimpíada do doping”. “Os indivíduos são obrigados a respeitar a lei do país em que vivem, trabalham, treinam ou competem. Os organizadores da competição devem igualmente respeitar a legislação nacional e não devem ultrapassar os soberania das nações na aplicação da lei.”

Risco à saúde e proibição

No Brasil, destaca Macedo, o Conselho Federal de Medicina proíbe a prescrição de hormônios para fins estéticos e de desempenho esportivo. “Aqui, estariam infringindo a legislação médica. Não sei como seria. Do ponto de vista médico, essa iniciativa fere todos os preceitos da ética”, diz. O endocrinologista também lembra que um dos princípios do esporte é ser seguro, não prejudicar o indivíduo. E ser justo. “O vale tudo me preocupa, pois na alta performance o limite já é ultrapassado. Parece que vão tratar o atleta como algo descartável, uma corrida das indústrias que trabalham com essas substâncias sem valorizar o talento. Não consigo enxergar nenhum tipo de propósito.” Ao Financial Times, D’Souza disse que os jogos seriam parcialmente financiados por publicidade de grupos farmacêuticos e de biotecnologia.

A Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) também mostrou preocupação com os Enhanced Games, destacando que o Programa Mundial Antidopagem foi concebido não apenas para garantir competições justas, mas também para proteger a saúde dos atletas e assegurar que não sejam explorados, intimidados ou pressionados por treinadores, governos ou empresas que buscam resultados a qualquer custo. “O uso de substâncias dopantes contraria os princípios fundamentais do esporte, que são baseados na equidade, na ética e na proteção à saúde dos competidores”, diz em nota.

ABCD ressalta ainda sua preocupação de que competições que normalizam a dopagem impactem negativamente o esporte, incentivando o uso indiscriminado de substâncias que colocam em risco não apenas os atletas, mas também jovens e futuras gerações que se inspiram no esporte. “Os valores do esporte e a integridade devem ser preservados em qualquer competição, garantindo que o esporte continue sendo uma manifestação de superação humana baseado no esforço legítimo e na dedicação.”

A Agência Mundial Antodoping (Wada, na sigla em inglês) vem acompanhando o desenrolar dos Enhanced Games, considerando-os um conceito perigoso e irresponsável. “A saúde e o bem-estar dos atletas são a prioridade número um da Wada. É evidente que este evento colocaria em risco ambos, ao promover a utilização de substâncias e métodos potencialmente nocivos. Como temos visto ao longo da história, as drogas que melhoram o desempenho têm causado um terrível impacto físico e mental em muitos atletas. Alguns morreram”, diz. E desde março de 2024, vem orientando as organizações antidopagem em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois desse evento, a fim de proteger a integridade do esporte legítimo.

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