Fim da barreira tecnológica?
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Guilherme Meira, ou “Guil”, como é conhecido em seu canal com pouco mais de mil inscritos no YouTube, é um brasileiro, morador da Espanha, com vídeos em inglês sobre seu trabalho de desenvolvedor no code, ou seja, alguém que cria aplicativos, automações e sistemas sem precisar programar usando linguagens como o JavaScript ou Python. Guil vem publicando criações de aplicativos e desenvolvimento a partir do uso da inteligência artificial. Mas em um de seus vídeos, ele decidiu testar um desafio do desenvolvedor Greg Isenberg de criar um clone funcional do serviço de assinatura eletrônica DocuSign, usando apenas IA.
Em cerca de 35 minutos de gravação e poucas horas de trabalho ele usou o Lovable, chatbot de desenvolvimento de software; o ChatGPT e seu próprio ScopesFlow, ferramenta que gera um escopo estruturado a partir de uma descrição em linguagem natural, para gerar uma versão quase completa do aplicativo. O protótipo tinha autenticação, upload de documentos, painel do usuário e até uma interface com estética similar à da Apple. O experimento viralizou e, dias depois, a Spryngtime estava em funcionamento.
Logo em seguida, o novo site recebeu uma notificação extrajudicial do DocuSign, que exigia que o projeto fosse retirado do ar “imediatamente”. Mas, até agora, a Spryngtime segue funcionando.
Velocidade e facilidade
“Este episódio é a prova mais clara de que estamos vivenciando uma deflação brutal no custo e no tempo de desenvolvimento da camada de aplicação, validando o princípio de que a velocidade de execução é o principal preditor de sucesso para novas iniciativas”, aponta André Lichtenstein, fundador da Ainvest Capital, gestora que investe em startups e empresas de tecnologia. Ele lembra que o que antes exigia semanas de trabalho de equipes inteiras, hoje é feito em poucas horas com um único prompt. Lichtenstein ainda lista quatro consequências imediatas: o custo marginal de tentar tende a zero; o tempo de prototipagem e desenvolvimento é radicalmente reduzido; a fase inicial de concepção e prototipagem virou a commodity; e o gargalo do desenvolvimento não é mais a construção do código, mas sim a definição do escopo e o refinamento do prompt. “Estamos saindo de uma era de escassez de código para uma era de abundância”, completa.
Esse encurtamento brutal do ciclo de desenvolvimento e o surgimento de milhares de aplicativos criados com Lovable coloca em xeque o modelo das empresas de software vendidas como serviço (Software as a Service) que atingiram valuation acima de US$ 1 bilhão, chamadas de “unicórnios SaaS”. Para Kevin Gervasoni, contribuidor do TC Investimentos, um agente de IA custa cerca de US$ 1.000 por mês, ou US$ 1,89 por hora, contra um salário médio de US$ 36 mil por ano, ou US$ 17 a hora nos EUA, o que significa que a IA já é “cerca de 90% mais barata e eficiente que um funcionário para replicar certas tarefas – e esse custo tende a cair ainda mais”.
Mas copiar o produto não significa copiar o negócio. André Lichtenstein sintetiza que “é fácil clonar a casca, mas extremamente difícil e caro clonar o motor jurídico e a infraestrutura de confiança que se constrói ao longo de anos”. Para ele, a interface é a parte trivial. O valor do DocuSign, por exemplo, está na “criptografia certificada”, “cadeia de custódia”, “auditoria para tribunais” e conformidade com leis. Gervasoni concorda. “O maior desafio do negócio é obter validade jurídica nos países em que atua”, afirma. Nesse sentido, o resultado pode ser um paradoxo, em que o desenvolvimento da inteligência artificial pode desmontar a barreira tecnológica, mas reforçar a barreira regulatória.
Quais categorias estão mais ameaçadas?
Entre as categorias de software mais em risco, Kevin Gervasoni diz que a vulnerabilidade é máxima onde a lógica é repetitiva e previsível. Então, CRMs (sistemas de gestão de relacionamento com clientes), ferramentas de produtividade, aplicativos de backoffice (sistemas internos de suporte operacional), além de SaaS muito nichados, como sistemas para clínicas pequenas, academias ou oficinas se enquadrariam, pois todos esses produtos seguem uma mesma estrutura básica de tabelas com dados, regras previsíveis e telas padrão para o usuário, o que facilita sua reprodução por IA.
A possível explosão de novos softwares criados por pessoas sem formação técnica também pode mudar o mercado. Lichtenstein prevê “explosão e verticalização extrema”, com milhares de microapps ocupando a cauda longa. Neste caso, cauda longa significa um mercado em que, além dos grandes produtos dominantes, existe uma quantidade enorme de produtos nichados, cada um com pouca demanda individual, mas que, somados, representam um volume significativo. Mas ele alerta que “pessoas não técnicas conseguirão criar (com prompts), mas travarão na hora de escalar, integrar sistemas legados ou corrigir bugs estruturais, já que a programação confere o controle necessário sobre as ferramentas”, e isso deve gerar um oceano de “sistemas zumbis”, protótipos que funcionam até a primeira atualização quebrar tudo. Outro problema é a escala do uso. Um protótipo pode funcionar bem dentro de um universo restrito de testadores, mas, uma vez que a ferramenta é disseminada para um número maior de usuários, a chance de falhas cresce exponencialmente.
Inovação ou replicação acelerada?
Um aspecto que une filosofia e economia é se estamos, de fato, avançando para algo novo ou apenas multiplicando versões mais rápidas do que já existe? Lichtenstein argumenta que estamos na “copy phase”, ou seja, a capacidade de desenvolvimento está sendo usada para refazer o passado de forma mais barata. “O próprio exemplo do clone de DocuSign, motivado por um desafio para copiar algo que já existe, prova o ponto”. Para o especialista, a inovação virá quando a IA trabalhar de forma ativa, visando pesquisar, criticar, revisar e compor soluções inéditas. Já Gervasoni vê espaço para transformação profunda e cita o exemplo do Google. “Uma ferramenta que tinha um monopólio enorme está sendo disruptada por um chatbot”. E acredita que, como na bolha da internet, os grandes produtos surgirão depois. “Acredito que estamos vivendo uma bolha de IA: muito investimento em infraestrutura e poucos produtos realmente incríveis, como os próprios chatbots”, diz.
A democratização do desenvolvimento traz também riscos regulatórios, porque aumenta os riscos de phishing, softwares inseguros e interfaces clonadas para enganar usuários. André Lichtenstein defende que os governos adotem novas certificações, trilhas claras de responsabilidade e avisos explícitos de que determinado software foi gerado por IA e não possui validação regulatória. Já Kevin entende que historicamente, “nenhum governo é capaz de impedir a tecnologia” e os Estados serão forçados a se adaptar, como ainda se adaptam à internet.

























