O que realmente sabemos sobre Zumbi?

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Não há mito negro mais importante, em nossa história, do que Zumbi dos Palmares. Mas o quanto podemos saber, realmente, sobre um homem que viveu no século 17 em uma comunidade que não deixou registros escritos? Trata-se de uma pergunta incrivelmente profunda. A história de Zumbi é, também, a história de como o Brasil se viu ao longo dos séculos, além da história de criação de um mito moderno.

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Abra um livro didático ou o verbete de uma enciclopédia e a narrativa corrente mais comum sobre Palmares se dará mais ou menos nesta linha: o quilombo surgiu quando um pequeno grupo de escravos fugiu do engenho pernambucano em que estavam confinados no ano de 1597. Daí foi crescendo.

Sua primeira grande líder foi Aqualtune, uma princesa do Congo presa pelos portugueses na Batalha de Ambuíla. Tendo sido obrigada a engravidar, teve um filho com quem fugiu em busca de refúgio em Palmares. O rapaz, chamado Ganga Zumba, cresceu e a sucedeu no comando. Zumbi era seu sobrinho. Ainda menino, Zumbi fora capturado em batalha e dado de presente ao padre Antonio Melo, da pequena cidade de Porto Calvo. Melo se afeiçoou imensamente do rapaz, a quem chamou Francisco e o criou como filho. Achava-o brilhante, ensinou-lhe as letras, latim. Aos 15, Zumbi fugiu de volta para o quilombo. Por três vezes, mesmo já comandante, retornou para visitar o padre.

Em 1678, Ganga Zumba fez um acordo de paz com o governador: os homens que haviam fugido seriam entregues de volta aos portugueses e aqueles que nasceram em Palmares seriam transferidos para outra região. Zumbi revoltou-se contra a decisão e houve um racha. Alguns acompanharam o velho rei, os outros ficaram com Zumbi. Ele governou por 15 anos até que, enfim, Palmares caiu após a batalha final.

O problema desta narrativa, oficialmente aceita, é que ela não fica de pé perante os documentos. A verdade, porém, como muito daquele Brasil setecentista, é fragmentada e difusa. Conhecemos pouco da história de Palmares. O que conhecemos está espalhado entre alguns parcos documentos e as escavações arqueológicas, que só começaram na região em 1992.

Sabemos que o quilombo já existia desde 1612, quando a primeira expedição movida contra ele foi realizada. Em meados da década de 1640, Palmares era composto por nove aldeias: Subupira, Tabocas, Macaco, Andalaquituche, Aqualtene, Dambrabanga, Zumbi, Arotirene e Amaro. As duas primeiras tinham nomes tupis. Amaro, português. A seis restantes eram palavras de origem banto. A capital era Macaco, onde funcionava o conselho e vivia o líder. A aldeia tinha paliçada dupla, duas entradas e extensas plantações. Na avaliação do brasilianista Stuart Schwartz, um dos maiores especialistas em Nordeste deste período, em seu pico Palmares inteiro pode ter tido seis mil moradores. Em 1645, o padre holandês Jan Blaer descreve Macaco: “As casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho”.

Blaer fala também de encontrar alguns ameríndios e a arqueologia o confirma. Em suas escavações, Pedro Paulo Funari, o americano Charles Orser Jr. e o inglês Michel Rowlands descobriram cerâmicas feitas com técnicas tupis, africanas e ibéricas. O que chama mais atenção são as jarras de cerâmica vidrada, uma técnica de origem mourisca sofisticada, que só existia em partes específicas de Palmares. Jarras e vasos comuns eles encontraram por toda parte. O conjunto e sua distribuição não apenas confirmam que Palmares era multiétnico, como mostram que havia uma elite do quilombo que utilizava apetrechos mais elegantes. Não era o ambiente igualitário dos sonhos. Alguns acreditam, inclusive, que houvesse escravos na sociedade que ergueram.

Outra pista importante para compreender Palmares está nas palavras. Ganga Zumba, o nome do líder que antecedeu Zumbi, por exemplo. Parece a transliteração de nganga a nzumbi, um título sacerdotal dos KiMbundu de Angola, um homem capaz de lidar com os espíritos. Nzumbi é tanto espírito ancestral como o espírito que não descansou. É desta mesma palavra que vêm os mortos-vivos do vodu haitiano. Os viajantes daquele tempo escreviam as palavras como as ouviam sem muito cuidado. Não conheciam os detalhes das culturas banto, tampouco compreendiam ao certo a estruturas sociais que viam à frente. Descreviam-nas por seus filtros. Assim, é possível que o homem que lhes foi apresentado como Ganga Zumba não tivesse este nome. É possível que tivesse, isto sim, o cargo de nganga a nzumbi. Seu sucessor, portanto, talvez não se chamasse Zumbi. Era, isto sim, o nganga a nzumbi seguinte.

Houve uma rainha ao lado de Ganga Zumba, há relatos a seu respeito, embora não esteja claro se era sua mulher ou sua mãe. A ideia de que fosse uma princesa presa na Batalha de Ambuíla não fecha com a cronologia. A batalha que os portugueses venceram em Mbwila ocorreu em 1665. Não haveria tempo para que Aqualtune presa aparecesse miraculosamente num engenho de Alagoas ou Pernambuco, tivesse Ganga Zumba por filho, ele ficasse adulto e ainda pudesse ser sucedido por Zumbi dos Palmares antes da expedição que arrasou o quilombo, em 1694. Não cabem essas vidas todas em só 29 anos.

Mais misteriosa é a narrativa oficial do Zumbi raptado bebê e criado pelo padre Melo para tornar-se o maior líder militar negro da história colonial. Até 1980, só havia, contados, oito documentos da época de Zumbi que o citavam. Em 1981, o historiador gaúcho Décio Freitas lançou a terceira edição de seu livro Palmares, que é um marco importante. Trazia como novidade duas cartas inéditas, escritas por este padre. Os documentos que revelavam a infância de Zumbi, segundo Freitas, estariam em Portugal, nos confusos arquivos da condessa de Schönborn. Descendente de um burocrata importante do império português, a condessa teria feito cópias dos documentos para o historiador. Freitas é imensamente respeitado. Mas é, também, o único que viu os originais das cartas. Ninguém mais as encontrou naquele acervo. Só temos as transcrições que aparecem em seu livro. Muitos historiadores duvidam que estas cartas misteriosas, que repentinamente revelaram tanto sobre a formação intelectual de Zumbi dos Palmares, tenham realmente existido.

Parecem invenção.

Mas houve Palmares. O quilombo tinha uma cultura sincrética principalmente de origem banto. Inúmeras expedições portuguesas e holandesas tentaram derrubá-lo sem conseguir. Se já existia em tamanho considerável no ano de 1612, é bem provável que sua origem date de uma ou duas décadas antes. Durou, portanto, um século. Não era uma república isolada: fazia comércio com os portugueses pobres das redondezas. Trocava comida por ferramentas e armas. Estava integrado àquela região entre Alagoas e Pernambuco. E Palmares teve alguns líderes, entre eles uma mulher, o último governou por quinze anos até sua queda. Se Zumbi era seu nome ou título, pouco importa. Ele existiu. E resistiu. Mesmo que de forma sincrética, ergueu de fato um ambiente africano no meio do Nordeste.

É muito difícil dar nitidez, trazer fatos que tracem um perfil mínimo de Zumbi dos Palmares. Mas, por tudo que seu quilombo representou, não há ícone melhor para representar o braço negro da civilização brasileira.

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