O que a crise dos EUA diz sobre o Brasil

Receba notícias todo dia no seu e-mail.

Assine agora. É grátis.

Oito deputados americanos puseram todo o Poder Legislativo de lá de refém dos seus caprichos. Pela primeira vez na história, um presidente da Câmara, o speaker of the House, foi derrubado do cargo. Entender o que aconteceu lá nos ajuda muito a entender o que acontece aqui.

PUBLICIDADE

O desenho é o seguinte. 435 deputados têm direito a voto na Câmara. Ou seja, maioria simples é 218. Deles todos, 221 são republicanos e, 212, democratas. Se os democratas conseguem seis votos dos republicanos, têm maioria simples. Se os republicanos perdem quatro votos, não conseguem aprovar nada. É um espaço no qual não tem muita flexibilidade de manobra.

Neste cenário, oito deputados são radicais. Não é um uso retórico da ideia de “radical de direita”. Eles são mesmo radicais. Não toleram a possibilidade de fazer qualquer tipo de acordo com os democratas. Consideram a ideia uma traição à causa.

Quankdo o speaker Kevin McCarthy fez um acordo para estender o teto de gastos por mais 45 dias para dar tempo de costurar um acordo de cortes no orçamento, um desses deputados, Matt Gaetz da Flórida, disse que o acordo era inadmissível.

O McCarthy já havia tido muita, muita dificuldade de se eleger speaker. Justamente por causa destes oito que o consideram moderado demais. Em condições normais de temperatura e pressão, oito deputados destemperados não têm poder nenhum. Mas em condições normais um partido não tem uma maioria tão tênue perante o outro. Os americanos praticamente deram metade da Câmara para um, metade pro outro. Como os republicanos só têm quatro deputados mais do que a maioria simples, esses oito fazem o que querem. E, para eleger o McCarthy speaker, impuseram uma condição. A de que a qualquer momento um único deputado poderia pedir uma votação para derrubá-lo do cargo.

Ontem, foi o que Matt Gaetz, da Flórida, fez. Irritado com a extensão do teto de gastos concedida por McCarthy no fim de semana, pediu que a Câmara votasse para tirá-lo do cargo. Todos os democratas votaram contra McCarthy. Mais, claro, oito republicanos.

Sem presidente, a Câmara não vota nada. Só pode voltar a trabalhar quando houver um novo presidente. O acordo, neste momento, parece impossível.

Pela primeira vez na história. Mas o que quer dizer isso? Onde está o problema numa democracia que permite a oito deputados federais, oito parlamentares, sequestrarem um Poder inteiro? Existe algum paralelo possível com o Brasil? Vamos conversar?

Pois é, gente. No sábado é a nossa vez. A gente tem um furo de jornalismo, e um tipo raro de furo. Um furo histórico. Em 1935, logo após o fracasso da Intentona, o Partido Comunista do Brasil tomou a decisão de assassinar uma moça. Codinome Elza. Ela era descrita por alguns como namorada de um dos dirigentes, por outros como alguém que trabalhava ali para eles. Cozinhava, passava roupa. Todos, inclusive Luís Carlos Prestes, a chamavam de “a garota”. Mataram Elza porque temiam que ela pudesse ter delatado onde se escondiam. A polícia de Getúlio Vargas estava atrás.

A história da morte de Elza está na origem do anticomunismo no Brasil. E é um dos maiores esqueletos no armário da esquerda brasileira. Mas sabemos muito pouco sobre ela. Ou sabíamos muito pouco. No Meio de Sábado, Sérgio Rodrigues, escritor e um dos grandes jornalistas brasileiros vai contar aquilo que ninguém sabia sobre Elza Fernandes. Vai nos permitir, enfim, botar um ponto final na história da Intentona Comunista e talvez fazer justiça à memória de Elza, a garota.

Os assinantes premium recebem a reportagem do Sérgo e mais duas reportagens em vídeo sobre sua descoberta. Assine. É baratinho.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio. E este? Este é o Ponto de Partida.

É muito fácil a gente olhar pro macro, numa crise política, e assim não compreender o micro. Porque decisões são tomadas no micro. Gostaríamos muito que homens públicos fossem grandiosos, nunca pensassem em si, mas homens públicos, políticos, têm carreiras como qualquer outra pessoa. E não há nada de errado nisso. Na verdade, democracias funcionam melhor quando há políticos experientes no jogo, por isso é natural e responsável que políticos reflitam sobre suas carreiras. Aliás, não é só isso. Queremos, em democracias, que exista o instrumento da premiação de políticos que atendam a seus eleitorados com reeleição. Não queremos? Essa é a lógica.

Pois bem, o que Matt Gaetz quer? O mesmo que qualquer deputado federal em qualquer democracia do planeta. Se reeleger. Nos Estados Unidos, o voto é distrital. No distrito da Flórida onde Gaetz é parlamentar, sua ação não é bem vista. Ele é bastante polêmico onde estão seus eleitores. Vejam, é um distrito bastante conservador, bastante republicano. Ainda assim, isso não quer dizer que a maioria dos eleitores gostem do que ele faz. Mas onde está, então, a lógica de ele decidir em essência sozinho travar a Câmara dos Deputados por sabe-se lá quanto temp?

Bem, há duas questões aí. Gaetz, na verdade, não precisa que todos os eleitores republicanos em seu distrito gostem dele. O que ele precisa são duas coisas. Precisa de dinheiro para fazer campanha e precisa que todos os eleitores que votam nas primárias gostem dele.

É fundamental, num sistema político, a gente entender quais são os incentivos dos atores. O que cada ator precisa pessoalmente. Porque se a gente entende isso fica mais fácil compreender o que é desfuncional. E a gente vai chegar no Brasil.
Os americanos têm um sistema de primárias. Você quer ser candidato a deputado federal pelo seu partido? Não é o chefe do partido que decide se você pode se lançar candidato ou não. É quem ganha a eleição primária que sai candidato. Valde desde eleição de deputado até a eleição de presidente. Em cada estado a regra pras primárias é diferente mas, em geral, quem pode votar nas primárias são os afiliados do partido no seu distrito. A maioria dos afiliados nunca vota. Quem vota? Aqueles eleitores mais dedicados à política, aqueles mais fissurados no Twitter, nos jornais, nos blogs do partido, nos perfis de redes sociais. E, olha, em geral quem é hiperligado em política tem também opiniões fortes que tendem a intransigentes em política. São os mais radicais.

Depois que foi escolhido como o candidato a deputado do Partido Republicano, num distrito em que a maioria dos eleitores são conservadores, Gaetz tem a eleição bastante garantida. Afinal, o pessoal não vai votar no candidato democrata.
E aí entra o segundo ponto, que é o financiamento de campanha. Ao convocar a votação para derrubar o speaker da House, Gaetz virou foco da imprena nacionalmente. O trumpista que não faz negócios com o governo Biden. O que ele faz com esta atenção? Arrecada fundos de campanha.

É o mesmo processo que Jair Bolsonaro toca aqui. A cada decisão da Justiça contra, ele manda um “o sistema perseguindo o capitão”, derramam pelos Zaps da vida o número de PIX, e mais alguns milhões entram em sua conta bancária. Ao paralizar sozinho, com o voto de mais sete, a Câmara dos Deputados, Matt Gaetz está fazendo uma quantidade abissal de dinheiro.
Ou seja, as regras do jogo incentivam a irresponsabilidade. Mas as regras do jogo não foram sempre assim? Bem, foram. Foram sim. Então o que mudou para o caos completo se instaurar?

Donald Trump mudou o jogo. O problema é o seguinte. Existia uma listinha de itens que um político republicano devia cumprir. Tem de falar isso, tem de falar aquilo, tem de prometer não sei o quê. Ronald Reagan construiu esse modelo de republicano ideal. Corta gastos com política social, aumenta gastos com as forças armadas. Sai cortando tributação de empresas e pessoas ricas. Por quê? O raciocínio é de que, menos tributadas, empresas grandes e pessoas ricas contratam mais e isso anima a economia. Tudo quanto é político do partido empregava alguma variante deste raciocínio.

Aí, de repente, chega o Trump e fala “nada disso”. Os Estados Unidos não têm de ficar se metendo em conflitos externos, dane-se o mundo, presidente americano tem de se preocupar com americanos. Faz um discurso abertamente contra gente rica, contra e elite. Vejam: é só discurso, tá? Ele continua dando os cortes de impostos, só que agora emprega um discurso que nada tem a ver com a prática. Hipocrisia pura. Põe toda a carga em temas morais. Aborto, uso de banheiros por pessoas trans, as escolas estão transformando seus filhos em gays. Toda a carga nessas coisas. Nunca ninguém tinha feito isso. Muda por completo o discurso padrão do candidato republicano. Seria só um maluco. Mas o que acontece? Ele ganha as primárias, se torna candidato a presidente e se elege presidente. Ele perde, sim, a reeleição. Mas perde por muito pouco.

O fato é que este caminho que Trump escolheu deu certo e, assim, ele reinventou a maneira como candidatos de direita se portam. Porque embora não agrade à maioria dos eleitores, agrada muito uma base que fica mobilizadíssima. Uma base que enche de dinheiro para campanhas eleitorais e vota apaixonada nas primárias. Depois que esta fórmula deu certo uma vez, é muito difícil mudar.

É por isso que, pela primeira vez, um presidente da Câmara foi apeado do cargo. É por isso que oito parlamentares se sentem confortáveis em paralisar por completo um dos três poderes. Eles só têm a ganhar. Dane-se o país.

Oito deputados não conseguiriam, no sistema brasileiro, tornar a Câmara refém. O pluripartidarismo evita isso. E nenhum deputado é premiado por se recusar a negociar com o governo. Aqui, na verdade, o problema é outro mas se explica da mesma forma. Aqui, a Câmara consegue deixar o governo refém. Faz isso porque os incentivos são outros. Para se reeleger, um deputado precisa mostrar que leva muito dinheiro para sua cidade, para sua região. Por quê? Porque prefeituras e estados dependem de repasses do governo federal. Brasília controla o caixa do Estado brasileiro, aí vira briga de faca por quem consegue arrancar unzinho. O que garante a reeleição de deputado, no Brasil, é conseguir verbas. Eles só pensam nisso. E, com o orçamento secreto, descobriram nos anos Bolsonaro que podem tirar muito mais dinheiro da Esplanada se travam a agenda de um presidente.

Continuam fazendo isso. Olha pro que faz um deputado se eleger e você entenderá como funciona o Poder Legislativo em qualquer país. A lição que Trump deu, nos Estados Unidos, Bolsonaro aprendeu aqui no Brasil. Descobrimos que aqui também dá certo. A extrema direita não está fraca. Seu eleitorado ainda está acordado. Esperando. Ali na esquina.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.