Israel, Palestina. Que desperdício

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Vamos tomar um fôlego aqui. Às vezes é importante ser direto. Cinco Pontos.

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Primeiro. Imagina que seu filho adolescente, que sua filha, estão em um festival de música, numa festa bem grande. Numa rave. Você não gosta do seu governo, você discorda do seu governo. Todos nós, brasileiros, podemos falar com clareza isso, não é? Que sabemos o que é ter um governo que nos causa horror. Um grupo que odeia seu governo, que faz parte de um povo que é vítima de seu governo, de repente aparece pesadamente armado no festival em que estão sua filha, seu filho. Abre fogo. Mata cem, mata duzentos, mata mais. Aí leva sequestrados a gente ainda não sabe quantos.

Foi isto que aconteceu em Israel na manhã de sábado, dia 7 de outubro. É indefensável. É a própria definição de terrorismo. São jovens em sua maioria progressistas, que provavelmente concordariam em muito com os valores de boa parte da gente de esquerda nas redes sociais aqui do Brasil. Possivelmente havia árabes-israelenses na rave. É o tipo de ambiente em que se celebra esta aproximação. Os que sobreviveram, os que não foram sequestrados, viveram uma experiência de puro terror. O pior da experiência humana. Os que foram sequestrados? A gente não tem nem começar a responder a esta pergunta. E há os mortos.

Segundo. Mais de setecentos israelenses mortos. Proporcionalmente, se fosse nos Estados Unidos, lançando mão da conta do cientista político Ian Bremmer, seriam 21 mil americanos mortos num ataque terrorista. Em 11 de Setembro de 2001, não morreram três mil pessoas. Este fim de semana aconteceu o 11 de Setembro israelense. Foi o ataque mais duro a Israel em 50 anos. Aliás, um ataque na madrugada seguinte ao cinquentenário do início da Guerra do Yom Kippur. Nada, nada disto, é acidente. Foi tudo calculado.

Na resposta, as perdas palestinas serão muito maiores.

E isto nos leva ao terceiro ponto. O Hamas sabe o que fez. Ao planejar este ataque, o Hamas também sabia que a resposta de Israel só poderia ser uma. A invasão de Gaza por terra e ar, ataques militares duros, mísseis de um dos exércitos mais bem equipados do mundo contra um movimento que no máximo usa tática de guerrilha. Morrerão muito mais palestinos do que israelenses ao final deste conflito. Muito mais. O Hamas sabia que esta resposta seria inevitável. Portanto, estas mortes palestinas são parte da estratégia do Hamas. Ele provocou uma situação que, sabe, não tem como vencer militarmente. Sabe que morrerão centenas, talvez milhares de palestinos. Para o Hamas, não importa. Dano colateral. Por quê? O Hamas não é um grupo que busca um acordo de paz. O Fatah, sim, que governa a Cisjordânia, busca um acordo de paz. O Hamas, que governa Gaza, não. O Hamas espera a aniquilação de Israel. Quanto mais longe estiver um acordo de paz, melhor para os seus objetivos. Israel estava para estabelecer relações diplomáticas com a Arábia Saudita. Com a guerra que virá, com a morte de tantos palestinos que virão, os sauditas vão dar para trás. Para o Hamas isto é uma vitória.

Não importa por qual dos dois lados você tem simpatia. Só não dá para fingir uma coisa. O Hamas sabia que a consequência de seu ataque seria que, ao final, muito mais palestinos do que israelenses morreriam. A matança fazia parte de seus planos. A matança de palestinos ajuda com seu objetivo. Os palestinos de Gaza, que terminarão vítimas deste conflito, não foram consultados. O Hamas faz o que quer, não consulta a população. A população simplesmente tenta sobreviver. Se a gente não entende que, para grupos islâmicos radicais, a morte dos seus é usada como arma de guerra e tudo bem, a gente não entende como estes conflitos funcionam.

Quarto. Israel mantem Gaza isolada por uma cerca cujo perímetro é constantemente patrulhado pelo Exército, drones sobrevoam o tempo todo, há sensoress de movimento, câmeras monitoradas por gente e por inteligência artificial. O Shin Bet é uma das polícias federais mais capazes na área de inteligência do mundo. O Mossad é uma das cinco mais importantes agências de espionagem do mundo. Israel foi pega completamente de surpresa. Demorou horas para começar a entender o escopo do ataque, mais horas para sequer começar a reagir. Como pode? O Hamas planejou. Os homens que invadiram Israel vinham treinando há meses, mas não sabiam para o que estavam treinando. Boa parte da liderança política do Hamas não tinha ideia de que este ataque estava sendo planejado. Parece cada vez mais claro que a Guarda Revolucionária iraniana ajudou no planejamento. Ao Irã não interessa o acordo Arábia Saudita Israel, pois isto isolaria ainda mais seu país no Oriente Médio. Quem trabalhou neste ataque terrorista calculou tudo, calculou tudo com muita eficiência e não pode ser acusado de qualquer tipo de ingenuidade. Fez o que fez para que acontecesse exatamente o que acontecerá. Ampliação do conflito. Quem trabalhou entendia exatamente o que que queria e como fazer.

E, por fim, quinto ponto. É preciso explicar como ocorreu o colapso da inteligência israelense. Segundo o que a Associated Press apurou, o Egito havia informado Israel de que algo grande estava sendo planejado em Gaza. Se for verdade, foram ignorados. Aos partidos extremistas que fazem parte do governo Benjamin Netanyahu, tampouco interessa a paz. Por conta disso, sua política é de promover mais e mais assentamentos judaicos na Cisjordânia. De novo, não em Gaza, governada pelo Hamas. Nas Cisjordânia, governada pelo Fatah. São duas áreas diferentes, sem comunicação por terra. Duas regiões distintas de terras palestinas. Mais assentamentos judaicos no território da Cisjordânia enfraquece o Fatah e fortalece o Hamas. São os dois principais grupos com ambições políticas na Palestina. O objetivo é que quando ali na frente, quem sabe um dia, for feito um acordo de paz, haverá cada vez menos território para erguer o país Palestina. É a lógica do grileiro na Amazônia. Vai ocupando terreno, vai ocupando, até que não dá mais pra voltar atrás. Mas isto quer dizer também que o Shin Bet, que o Mossad, precisam trabalhar mais e mais pela segurança dos colonos que vivem nestes assentamentos. Ganham trabalho que, num governo diferente, não teriam. Tiram o olho de onde não deviam ter tirado. A gente não sabe, ainda, por que houve o colapso total de uma das maiores inteligências do mundo. Às vezes acontece. Aconteceu no Onze de Setembro. Lá foi por causa de burocracias diferentes, agências diferentes, cada uma com um pedaço da informação, nenhuma batendo o que tinha com a outra. E em Israel? O responsável em última instância é um só. O chefe de um governo que divide profundamente a sociedade israelense. Benjamin Netanyahu. Mas por que aconteceu? Como aconteceu?

Gente, isso tudo posto, sabe qual o maior problema de discutir o conflito Israel x Palestina? Está todo mundo armado. Todo mundo já sabe o que precisa dizer a respeito. É todo um vocabuláro — se você domina o vocabuláro, já pode abrir o Twitter, não importa o que tenha acontecido, e sair metralhando com o teclado. Estado de Apartheid, se você é de esquerda, é uma palavra que pode usar muito e vai causar impacto. Antissemitismo disfarçado, se você é de direita, não deixa por menos. Vai usar militantes ou terroristas?

É uma conversa que não vai pra frente. É uma tribo se chocando contra a outra, cada qual com a sua verdade, ninguém avançando um centímetro. Vamos tentar ir mais fundo?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A gente passou o fim de semana atualizando o site do Meio com as últimas notícias de Israel. Acompanhe por lá. Estamos fazendo uma curadoria do que há de mais profundo na imprensa. Na quarta-feira vou publicar uma análise, este é para os assinantes premium, sobre estes momentos chaves de ruptura. Os momentos em que a paz pareceu possível e alguém consegue implodir tudo neste conflito eterno. E, na nossa edição especial de sábado, vamos voltar bem atrás, desde a antiguidade até a criação de Israel. Esta é uma briga muito antiga e, olha, houve o tempo em que judeus e árabes eram aliados. Assina. A gente ajuda você a entender o que está acontecendo.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Tive um professor de negociações internacionais. Americano. O trabalho dele fora da universidade era chegar num país em guerra civil, ou em dois países que tinham um conflito, sentar à mesa com os dois grupos envolvidos e negociar. Lentamente. Questão por questão. Ir aos poucos desarmando até o ponto em que a ideia de um acordo de paz se torna imaginável para os dois grupos. É um criar confiança até que imaginar a possibilidade de um acordo seja possível. Porque este é o primeiro passo. Imaginar que um dia possa haver paz. Em geral, no início das conversas, só imaginar um acordo já é intolerável porque o outro lado é muito, muito mau sempre. Quando é possível imaginar a possibilidade de um acordo, aí as necociações podem começar a existir.

Um dia perguntei a ele o que faria se estivesse numa negociação entre Israel e Palestina. “Eu não estaria.” Essa foi a resposta. É o conflito mais difícil do mundo. Não porque o problema seja impossível. Mas porque tem gente demais interessada. Tem gente demais envolvida. Tem gente demais que toma um lado ou toma o outro lado, não é israelense, não é palestino, mas ainda assim se mete, e faz campanha, e arrecada dinheiro, e faz discurso e nessa reforça os lados mais radicais e fragiliza os mais moderados do conflito.

São ONGs, são partidos políticos, são grupos militantes, são mesmo estados nacionais. Agora mesmo. Israel está negociando restabelecimento de relações diplomáticas com a Arábia Saudita. O Irã injeta grana no Hamas. O Hamas não faz nada sem a bênção iraniana. Pronto. O Hamas faz um grande ataque, Israel evidentemente responde porque é isso, né? Israel vai responder. Qualquer governo no mundo responderia. Aí os sauditas têm de estar do lado dos palestinos. Bum. Implode a negociação.

O que tinha a ver com o drama de palestinos e israelenses? Nada. Tinha a ver com o Irã tentando isolar Israel no Oriente Médio. Tinha a ver com o Irã tentando não ficar isolado ele próprio, vendo os países árabes se aproximarem de Tel Aviv. Tinha a ver com um monte de coisa, mas nada a ver com as pessoas que moram ali naquela faixa estreita de terra, sem nenhum petróleo, à beira do Mediterrâneo.

Política tribalizou. Todo mundo precisa vestir sua opinião, para dizer a que grupo pertence, o tempo todo. Virou uma maneira de manifestarmos uma percepção externa de que tipo de pessoa somos. Quais nossos valores. E, neste jogo, as redes sociais se tornaram uma ferramenta de constante pose. Abra o Twitter. Ou X, não importa. O assunto é Israel e Palestina? Não importa o que aconteceu. As palavras chaves, os raciocínios que devem ser exprimidos, todo mundo já os conhece. E quanto mais puras as pessoas se mostram em suas convicções, quanto mais radicais, mais pontos acumulam no jogo das redes. Porque isto aqui é um videogame, né? Estamos todos acumulando pontos de virtude. De quem é mais nobre. Todo mundo galgando degraus na escala hierarquica de suas tribos. Repetindo as coisas que devem ser repetidas. Quem usa as palavras mais fortes, quem conhece mais frases já previamente acordadas e aceitas, ganha mais pontos entre os seus. Política na internet é a arte de resistir a se aproximar do outro lado. Reforça radicais, sufoca moderados.

Um dos discursos típicos, na esquerda, é de que este é um conflito colonial. Jura? O povo judeu representa imperialistas invadindo uma terra que não lhes pertence? Alguém aqui já leu o Velho Testamento? Tipo: Moisés faz abrir o Mar Vermelho e leva seu povo à Terra Prometida?

Tem o discurso contrário, também. O de que os palestinos é que são invasores do tempo em que os muçulmanos tomoaram Jerusalém. Mas, caramba, e ninguém aqui já leu o Novo Testamento? Aquela sempre foi uma terra de muitos povos. E povos em conflito. Com dificuldades de encontrar um jeito de se entenderem. É pouco chão e uma riqueza de culturas e identidades distintas num nível imenso. Jerusalém é a terceira cidade mais sagrada do Islã, a segunda cidade mais sagrada do catolicismo e a primeira cidade mais sagrada do judaísmo. É lá que ficaram os dois templos, é ali que Jesus morreu, é onde Maomé ascendeu aos céus para falar com Deus.

Quem acha que dá pra dividir na base de a que povo pertence a Terra Santa não entendeu alguma coisa a respeito dos últimos três mil anos de história.

L’shanah Haba’ah b’Yerushalayim.

Ano que vem nos encontramos em Jerusalém. Por dois mil anos, judeus na diáspora terminaram assim sua prece de Pessach. Cultivando a esperança de que um dia, quem sabe em breve, pudessem se encontrar de novo em sua terra. Não é por saudades da terra que nunca viram. Se o foco é combate a preconceito, é combate a injustiças, não dá pra nem começar essa conversa sem reconhecer o fato de que o povo que há mais séculos não é desejado por perto no Ocidente é o povo judeu. Séculos, não. Milênios. E a coisa foi num crescendo tão grande que desaguou nos Pogroms seguidos do Holocausto. Você ia querer continuar na Europa? Pois é. Ano que vem a gente se encontra em Jerusalém.

Quem decidiu as fronteiras foram os europeus? Foram. Europeus decidiram as fronteiras de dois terços da África, todo o Oriente Médio e toda a Ásia Central. A gente não vai fugir da história. Mas os palestinos também precisam do seu país. Lhes é de direito. O acordo costurado na ONU era criar os dois países. Mas aí os países árabes acharam que conseguiam invadir, expulsar os judeus que estavam chegando e os que já moravam lá faz séculos, e tomar pra si. Perderam a guerra e a Palestina não nasceu. Israel abocanhou tudo.

Estamos desde então neste giro eterno. Uma vez entrevistei o Bill Clinton. Ele não era mais presidente e a conversa foi essencialmente sobre Estados Unidos e Brasil. Mas aí a entrevista acabou, microfones desligados, enfiei uma última pergunta. Sobre o acordo de paz. “What a waste”, ele respondeu. Na lata. Que desperdício. “A gente estava tão perto.” Ele não desenvolveu muito a resposta. Ali, naquele momento, quando um dos mais importantes generais israelenses e o mais importante líder palestino se propuseram a sentar e conversar, ali a ideia de que a paz seria possível, que um país Palestina poderia nascer, ali foi possível imaginar a paz. Que não aconteceu.

Que desperdício.

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