Você sabe o que é o Hamas?

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Foi um pogrom.

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É difícil até lidar com esta palavra. Ela vem do russo, quer dizer destruir. Provocar destruição. Foi adotada pelo iídiche e se internacionalizou. Tem um quê de estranho utilizá-la para um evento de hoje, do noticiário, porque pogroms parecem pertencer à história, ao passado. Não são coisas que aconteçam hoje em dia. E, no entanto, aconteceu. Sábado. Sete de outubro, em 2023.

Um pogrom é um levante, um grupo de pessoas carregadas de ódio étnico se juntam com o objetivo de destruir. De aniquilar. Vale tudo. Matam. Batem. Estupram. Sequestram. Derrubam casas, incendeiam. A palavra pogrom não vem do iídiche à toa, ela é na origem antissemita. Assim como o crime de genocídio foi definido a partir do Holocausto, a ideia de pogrom nasce de ataques contra judeus.

Foram muito comuns na Rússia, na Polônia, na Romênia, na segunda metade do século 19, início do 20. Um dos pogroms mais importantes da história foi na Alemanha, em 1938. A Noite dos Cristais. É o marco da explosão que levaria ao Holocausto. O pogrom típico deixava algumas dezenas de mortos. Os maiores eram na casa das centenas. A intenção não era só matar e destruir. A intenção era também expulsar de onde estavam. Dizer que não são dali. Os últimos pogroms aconteceram pouco depois da Segunda Guerra. Houve um em Aleppo, na Síria. Outro no Marrocos.

Com a fundação de Israel, os pogroms acabaram. Até o sábado passado.

Um pogrom não é uma batalha. Num pogrom, as vítimas estão indefesas. Não têm armas, o que têm é medo. Ontem, na terça-feira, a imprensa inteira tratou com muita cautela as notícias que começaram a vir de Kfar Aza. Porque era inacreditável. Poderia ser mentira de redes sociais, exagero de alguém. Mas não era.

Kfar Aza é um kibbutz, uma fazenda coletiva, o experimento socialista que marcou o nascimento de Israel. Ainda existem alguns kibbutzim, nesse moravam 400 pessoas. Crianças, muitas crianças de colo, mulheres, idosos. Gente, sabe? Famílias. As pessoas não foram só mortas a tiros, não. Mais de cem. Algumas foram mortas com coquetéis molotov. Seus corpos foram ateados em chamas quando ainda estavam vivas. Depois de mortas, várias tiveram seus corpos dilacerados, mutilados. Alguns dos corpos estavam sem as cabeças. O jornal The Guardian confirmou esta informação. Decapitados. Um jornalista do Washington Post que visitou o lugar ainda encontrou copos de leite e canecas de café nas mesas. Ninguém estava preparado. Os homens do Hamas chegaram. E queriam matar. Queriam destruir.

É o tipo da descrição que remete à Rússia dos czares, à Polônia do início do século 20. Foi o maior ataque a uma população judia inocente desde a fundação de Israel. O maior. É o primeiro pogrom desde 1947. Um ato de terror. Um crime de ódio racial.

Já sabemos que entre os mortos estão dois brasileiros. Já sabemos que entre os sequestrados, entre os reféns, há brasileiros. Como pode alguém defender o Hamas?

Não, não, não. Não importa o que você acha de Israel. Não importa. Como pode alguém se dizer humanista e defender um grupo que se move por ódio étnico e destrói vidas deste jeito?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

No sábado, eu e o Leonardo Pimentel, editor executivo do Meio, vamos fazer um levantamento histórico de toda a relação entre judeus e muçulmanos. Durante boa parte da história, foi uma boa relação. Mas há pontos de inflexão chave. Quando nasceu o Sionismo? Por que nasceu? Onde começaram os atritos? Quando o conflito desandou de vez? Entender história ajuda a gente a entender o presente. Assine o Meio e receba esse material muito especial que estamos preparando. Vai estar também todo em nosso site. Vai lá e acompanhe o noticiário durante o dia.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Vamos ser formais aqui. Falar sobre documentos, sobre estatutos, sobre leis. Sobre o que pode ou o que não pode. O Hamas foi fundado em 1988 e seu documento fundador, seu estatuto, é chamado de a Aliança do Hamas. Como um pacto entre os seguidores e Deus. É uma organização religiosa radical, um braço da Irmandade Muçulmana que nasceu no Egito, e que prega a Sharia. É a lei islâmica. Mulheres cobertas, sob controle do homem. Função social: ter filhos. Sua crença é de que todo o território de Israel deve pertencer a homens muçulmanos até o fim dos dias. Nacionalismo palestino, para eles, é uma obrigação religiosa. É uma das poucas áreas em que o Hamas permite às mulheres que tomem suas decisões: elas podem pegar em armas contra Israel sem consultar seus maridos. O estatuto é claro e usa as seguintes palavras “mulheres podem lutar sem autorização assim como escravos também não precisam consultar seus donos”.

É importante entender o que é defender o Hamas. Porque há um estatuto, tudo isso está escrito lá. A maneira como o Hamas compreende o mundo está toda lá, é transparente, não é escondida de ninguém.

O objetivo do Hamas não é buscar um acordo de paz com Israel. O objetivo do Hamas não é poupar de sofrimento os palestinos. O objetivo do Hamas não é poupar a vida de palestinos. O objetivo é o de liberar a Palestina da existência de judeus. Sua crença é de que esta luta, a da expulsão de todos os judeus daquela terra, é em primeiro uma obrigação de todo palestino. Em segundo, uma obrigação de todo árabe. E, em terceiro, de todo muçulmano.

Um trecho literal do estatuto ajuda a compreender o tom. Vou ler aqui.

“Por muito tempo, os inimigos se planejaram com habilidade e precisão. Levaram em consideração as causas que afetam os eventos. Se esforçaram para acumular substancial riqueza material, que dedicaram à realização de seu plano. Com seu dinheiro, assumiram o controle dos meios de comunicação mundiais, agências de notícias, imprensa, editoras, emissoras e outros.

Com seu dinheiro, provocaram revoluções em várias partes do mundo com o propósito de atender aos seus interesses e colher os frutos. Estiveram por trás da Revolução Francesa, da revolução Comunista e da maioria das revoluções das quais ouvimos falar.

Com seu dinheiro, formaram sociedades secretas, como Maçons, Rotary, Lions e outros clubes em diferentes partes do mundo com o propósito de sabotar sociedades e alcançar interesses sionistas. Com seu dinheiro, conseguiram controlar países imperialistas e instigá-los a colonizar muitos países para que pudessem explorar seus recursos e espalhar corrupção.”

É uma teoria conspiratória típica. Antissemita no talo, que remete aos Protocolos dos Sábios do Sião. Remete à leitura que os nazistas faziam do mundo. Os judeus controlam todo o mundo secretamente e manipulam a tudo para conseguir seus objetivos. Seu maior objetivo é controlar a terra santa. Mas o texto é importante, também, para mostrar quais são os males trazidos ao mundo por esta influência que o Hamas considera judaica. Ou seja, a liberal-democracia, fruto do Iluminismo, que é o que vem de herança da Revolução Francesa. Mas, vejam só, também o comunismo. Também o socialismo. O Hamas é irmão do olavismo.

O que faz alguém de esquerda, em sã consciência, defender este bando de assassinos reacionários?

O que o Hamas não é é um grupo que busca a paz. Não é um grupo que busca uma vida melhor para os palestinos. O Hamas entende o jogo político como um de longo prazo. Não importa quanto sofram agora, não importa quantos morram, o importante é que um acordo de paz com Israel nunca seja alcançado. Jamais. É melhor que nunca nasça um Estado da Palestina, porque se houver a solução de dois países e a Palestina passar a existir, aí Israel sobrevive. O que o Hamas quer é que lentamente Israel se desgaste, se desgaste, até o ponto no qual deixará de existir.

Alguns se sentem tentados a lançar mão dum argumento de resistência. Toda resistência é legítima para um povo oprimido. Gaza é uma ditadura. Quem vive em Gaza não tem muitas escolhas que não obedecer o Hamas. Mas, mesmo assim, existem leis de guerra e, se é para tratar a relação de Hamas com Israel como uma guerra, essas leis precisam ser seguidas. Entrar numa festa e matar quem dá pra matar, sequestrar quem pode. Numa fazenda comunitária e queimar pessoas, cortar seus corpos como num açougue, estupros, isso tudo é crime. É barbárie.

Se é guerra, é crime de guerra. Em qualquer circunstância, é intolerável. É violação crassa de direitos humanos. Perseguição de um grupo étnico, estupros, desaparecimentow forçados, extermínio. O que o Hamas fez no sábado é crime contra a humanidade de acordo com o Estatuto de Roma.

O objetivo dos pogroms iniciais era causar terror num nível tal que as aldeias judaicas, as sztetlech, fossem abandonadas. Se alguém aqui já assistiu ao filme O Violinista no Telhado lembrará de como termina. Acontece um pogrom, é um pânico, e nos dias seguintes as pessoas vão lentamente percebendo que jamais serão seguras. Quem sobrevive pega a carroça, junta as coisas, e naquele fim de século 19 vai tomando cada um seu rumo. Para a América, uns, para a Europa ocidental, outros. Para Eretz Israel uns terceiros.

Esta é a história do povo judeu na Europa por dois mil anos. Ser expulso de onde está e ir pra outro canto. Aqui e ali há momentos de secularização. Mas aí sempre tem uma inquisição, uma caça às bruxas, o jeito de sobreviver é ser errante. Israel não nasce por causa do Holocausto. Israel nasce porque se não existisse Israel, nada teria mudado. E de certa forma nada mudou.

Só existe uma solução possível que é cumprir a ordem da ONU e formar os dois países. O caminho é conhecido, faltam detalhes. Jerusalém Oriental, que é o lado muçulmano e o lado cristão, ficam sob controle da Palestina, Jerusalém Ocidental com Israel. A quase totalidade da Cisjordânia e Gaza inteira vão pra Palestina. É preciso ter uma faixa que ligue os dois territórios. O Monte do Templo terá cogestão. Palestinos abrem mão do direito de retorno. O resto é mais meio metro aqui, mais meio quilômetro ali. Desenhar a fronteira.

Palestinos terão seu país, suas eleições, seus políticos. Sua mesquita sagrada. Metade da Cidade Santa. Israel terá seu país, sua terra com que se preocupar, a única maneira que foi possível descobrir para fazer de ser judeu algo seguro.

Não existe outra saída. Mas aí é preciso saber em quem apostar e em quem não apostar. A quem reforçar. E, claro, perceber quem não tem compromisso com a paz. O Hamas não tem compromisso com a paz.

Você pode defender o Hamas. O que não pode é defender o Hamas e se identificar como humanista, como progressista, como antirracista. Não são coisas compatíveis.

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