O Hamas já ganhou

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Eu queria descrever uma cena. Não mostrar. O vídeo existe, está nas redes. É brutal demais para ser mostrado. Acho que a gente não deve pegar as pessoas de surpresa, mostrando certas imagens sem que elas esperem encontrá-las. Mas é importante descrever. É a conferência à imprensa dos médicos do hospital que foi atacado, ontem, em Gaza.

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No vídeo, um médico fala num púlpito em meio aos escombros. Ao redor dele há outros médicos, a maioria vestindo jalecos brancos. Um veste a roupa de cirurgia, um verde piscina bem claro. Ao pé do púlpito, um rapaz de camiseta azul marinho, boné da mesma cor, segura um bebê ensaguentado. Inerte. Não dá para saber se é seu pai, mas a cara que ele faz é de desorientação. A mandíbula tensa. Olhar perdido. Posição de pietá. À esquerda dele tem outro cara. Boné preto, camisa vinho, casaco fino. Com uma mão ele apoia por baixo a cabeça de uma menina, a outra ele pousa aqui, na altura do coração dela. Só aparece seu rosto, olhos fechados, o resto está envolvo num lençol branco. Ela também está inerte. Esse homem, ele não olha pra lugar nenhum. Só pra baixo. Fixo. A câmera vai aumentando o close e não é mais só o bebê ou a menina. São vários lençóis envolvendo corpos. Manchas de sangue espalhadas. Um braço para fora aqui, um rosto ali.

Olha, o Hamas já ganhou essa guerra. Esse hospital é o símbolo desta guerra, é a imagem que ficará.

Não existe nenhum relatório oficial ainda, um relatório independente, que ateste quem atacou o hospital. Mas o que os analistas que entendem do assunto estão dizendo é que não parece ter sido Israel. Há alguns elementos que esses analistas procuram. Um deles é uma nuvem de poeira de concreto. Um míssil destrói construções ao ponto de transformar o cimento em pó, mas nas fotos não parece ter muita gente coberta deste pó branco. É o mesmo com carros. Aparecem carros queimados nas fotos mas com sua estrutura intacta. O que chama mais atenção é a ausência de uma cratera profunda. Mísseis como os usados por Israel abrem buracos no chão. Não tem buraco no chão como o de míssil que dê para perceber nas fotos tiradas por drones no dia seguinte. E, gente, o hospital está de pé. Danificado, queimado em alguns trechos, mas de pé.

Por outro lado, houve esse incêndio, o que é compatível com um foguete cheio de combustível que caiu pouco após ser lançado. Os grupos paramilitares em Gaza há anos repetem esse mesmo modus operandi. Mantém sua artilharia, seus lança-mísseis, próximos de hospitais, de escolas, para que pensem duas vezes antes de atacá-los. Muitos destes foguetes são fabricados nos subterrâneos construídos por toda a Faixa de Gaza. Eles têm pouca direção, pouca precisão, e com frequência caem no meio do caminho. Ninguém atirou de propósito para acusar Israel. Os foguetes é que são ruins, mesmo.

Essa é a leitura que os analistas militares estão fazendo. Não é oficial. Mas, convenhamos, mesmo que fosse é inútil. Porque eu já sei o que vocês estão dizendo nas caixas de comentários e de chat. Quando o assunto é Israel e Palestina, as pessoas já escolhem os fatos que desejam acolher baseados em suas preferências. Israel estará sempre errada e palestinos sempre certos. Ou palestinos estarão sempre errados e Israel sempre certa. Não é só no Brasil. É internacionalmente. E, quando se trata de uma operação militar, de uma guerra, a coisa é pior. Porque todo mundo compreende o óbvio. Há um brutal desbalanço de poder bélico. Israel é muito mais capaz de destruição do que o Hamas e a Jihad Islâmica e o Hezbollah juntos.

O que ficará na memória das pessoas é que Israel destruiu este hospital e matou 500 pessoas. Mesmo que o número de mortos seja menor. Mesmo que o hospital não tenha sido completamente destruído. Mesmo que Israel seja inocente nesse ataque particular.

Porque o pior é que tudo isto é um detalhe no cenário total, porque tendo sido Israel, tendo sido a Jihad Islâmica, Gaza está com um hospital a menos enquanto pessoas estão morrendo às centenas todos os dias. Pessoas que estão sendo mortas por Israel. A água está cortada, a internet está cortada, a eletricidade está cortada, as saídas de Gaza estão bloqueadas, o Egito não permite a entrada de suprimentos de emergência pois teme que abertas as portas ninguém consiga mais controlá-las e termine se criando, na Península do Sinai, um gigantesco campo de refugiados para um milhão de pessoas. Uma tragédia humanitária está se instalando. O que está acontecendo em Gaza é um pesadelo.

O Hamas queria contar uma história ao mundo. Chamou Israel para desempenhar um papel nessa história. E Israel foi. O Hamas já ganhou.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Olha, a gente não tirou o olho do resto do mundo. Este fim de semana, os argentinos vão às urnas. Ainda não está claro se haverá ou não segundo turno, mas Israel tem seu Bolsonaro e é possível que os argentinos escolham ter o seu próprio. Javier Milei. Vai ser a primeira vez na história, se acontecer, que um país terá um libertário por presidente. Alguém completamente avesso à existência de um Estado. E isso no país com o Estado mais presente na sociedade de toda América do Sul. Como esse bicho se encaixa? A jornalista Sylvia Colombo está em Buenos Aires preparando um material profundo, para nossa edição de Sábado. Todos os assinantes premium recebem. Assine.

E este aqui, este? Este é o Ponto de Partida.

A morte brutal de uma pessoa dói mais do que a morte brutal de outra pessoa? Para quem perde, não. Para quem perde é igual. É a mesma tristeza terrível. O Hamas lançou um pogrom. Uma matança, uma carnificina cruel de mais de mil pessoas. De jovens, velhos, de crianças. De bebês. Gente que viveu o pânico e morreu. A maneira de responder a um pogrom é promover uma crise humanitária num dos lugares mais pobres do mundo? Não pode ser. O governo de Israel, o governo de Bibi Netanyahu, diz que seu objetivo é limpar o Hamas do mapa. Não vai acontecer. O que o terrorismo quer é despertar reações irracionais. É tirar de centro uma sociedade. A reação do governo israelense é a vitória do Hamas.

Existe uma lógica em por que o governo israelense atua desta forma. Não é uma lógica na qual acreditam todos os políticos israelenses, mas é uma na qual Netanyahu acredita. O jeito de fazer guerra, no Oriente Médio, é na brutalidade. O exército iraquiano é brutal. A guerra na Síria está sendo brutal. Os grupos paramilitares são brutais. A guerra Irã x Iraque foi brutal e, mesmo em tempo de paz, a Guarda Republicana do Irã é brutal na maneira como lida com a população civil. A guerra no Iêmen é brutal. Mata-se, mata-se com crueldade, tortura é cotidiana, impor terror à população civil é a praxe. O Hamas é brutal na maneira como trata os palestinos.

Há um grupo, no pensamento militar israelense, que defende que esta é a linguagem da região e, portanto, um exército só é respeitado se age desta forma. Com brutalidade. A ideia é de que se não impuser terror à população civil palestina, não haverá segurança para Israel. Se não mostrar que é tão capaz de promover destruição e morte quanto qualquer outro, não será respeitado. E isso abre as portas para acontecer de novo.

Mas então o que distingue uma democracia de uma ditadura? Se um país ignora as Convenções de Genebra e parte para inflingir a maior quantidade de sofrimento a um povo, o que consegue? Ódio e morte.

Não é que isso seja incompatível com os objetivos do governo Netanyahu. Seu projeto tem sido o de ampliar o número de assentamentos israelenses na Cisjordânia. A Cisjordânia é território do futuro país independente Palestina. Cada novo assentamento é mais uma dificuldade para construir no futuro um acordo de paz que leve à existência dos dois países. Neste sentido, e apenas neste sentido, Hamas e governo Netanyahu têm o mesmo objetivo. Implodir a possibilidade de negociar paz. Impedir o caminho que leve à existência dos dois países. O Hamas fez um ataque sangrento para dinamitar a construção de laços entre Israel e Arábia Saudita, o plano que estava em curso. Com a reação de Israel, conseguiu.

Israel foi vítima do pior ataque antissemita desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E, no entanto, pouco mais de uma semana depois, o mundo está discutindo a mantança em Gaza. Não tem como deixar de repetir. É exatamente o que o Hamas queria. O mundo não está errado. Está em curso uma matança em Gaza.

Nesta hora, o governo israelense trai o objetivo da existência de Israel. Israel nasceu para que existisse o mundo um local onde judeus possam estar seguros. Porque muita gente por aí pode não acreditar que história ensine algo, mas nos últimos dois milênios ela diz a mesma coisa: não é seguro ser judeu no mundo.

O que as famílias dos homens, mulheres e crianças feitas reféns pelo Hamas sentem neste momento? O governo demonstrou zero preocupação com essas tragédias pessoais. Tudo o que fez até agora só aumenta a possibilidade de que o pior aconteça. A obrigação de protegê-las? O governo lavou as mãos.

Estrelas de David foram pixadas nas paredes de edifícios onde vivem judeus em Berlim. Em 2023. Vocês prestam atenção nas coisas que vêm sendo escritas pelo Twitter. Dia desses teve um comentário durante uma live aqui da gente, do Meio. “Judeu fazendo judeuzice.”

Talvez vocês não saibam, mas em todo o mundo Ocidental, na Europa, nos Estados Unidos, aqui no Brasil, em São Paulo, no Rio de Janeiro, famílias judias estão tendo de lidar com muitas questões difíceis. Se mandam crianças para as escolas. Como lidam com as coisas que seus filhos estão ouvindo. Todas as escolas judaicas estão mandando mensagens de preocupação com segurança para os pais.

A gente vive um tempo onde dá pra falar de toda sorte de preconceito menos sobre antissemitismo. Antissemitismo é o preconceito que as pessoas que se preocupam com preconceito, as pessoas de esquerda, acham que nunca existe. Que é sempre exagero. Como alguém escreveu dia desses na rede, hoje em dia, tudo é nazismo, menos matar judeus.

O mundo não está mais seguro para judeus. E o governo Benjamin Netanyahu, ao não colocar a paz como meta principal, provou que esta é exatamente a forma de tornar o mundo mais inseguro para judeus. Quanto pior é a vida para palestinos, pior será a vida para judeus. Os dois povos têm seus destinos atados há milênios. Só haverá paz para um quando houver paz para o outro.

Mas esta não é uma conversa possível pois ninguém com voz parece interessado nesta conversa.

Tem um poema do William Yeats, The Second Coming, que vem tamborilando faz uns meses na minha cabeça. “Tudo se parte”, ele diz. “E o centro não sustenta.” Encontrei uma tradução do professor Paulo Vizioli que é fluida, simples. Essa é a ideia central do estado do mundo que o Yeats descrevia. O poema é de 1919. A Primeira Guerra tinha acabado de acabar, a Revolução de Outubro tinha acontecido, a pandemia da gripe espanhola estava engolindo o mundo. Tudo estava se partindo e, quando tudo se desmonta, o Centro não é capaz de sustentar a estrutura das coisas. Aí o Yeats continua.

Tudo se parte, o centro não sustenta.
Mera anarquia avança sobre o mundo,
Marés sujas de sangue em toda parte
Os ritos da inocência sufocados.

Os melhores sem suas convicções,
Os piores com as mais fortes paixões.

Tudo se parte porque o Centro não sustenta? Ou o Centro não é capaz mais de ficar de pé porque tudo se partiu? Tem uma ambiguidade no poema. O Centro é o lugar da moderação, o lugar em que um lado não rejeita o outro. Há um Centro à direita, um Centro à esquerda. O que eles têm em comum é que são capazes de conversar, de buscar soluções. Não reagem de bate pronto perante suas paixões, suas posições. Não. Antes, ouvem. Ouvem-se uns aos outros. O que procuram não é ressaltar suas diferenças. Procuram os pontos de encontro. Negociam. É isso que perdemos. Não é só em Israel e Palestina, Israel e Palestina é só aquele canto do mundo em que a política parece sempre ser muito mais exacerbada. Mas em toda parte perdemos a capacidade de nos encontrarmos no Centro. Precisamos negar a existência do Centro. “Os melhores sem suas convicções, os piores com as mais fortes paixões.”

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