O Enem é de esquerda?
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Deixa eu ler uma pergunta pra vocês. Caiu no Enem.
“No Cerrado, o conhecimento local está sendo cada vez mais subordinado à lógica do agronegócio. De um lado, o capital impõe os conhecimentos biotecnológicos, como mecanismo de universalização de práticas agrícolas e de novas tecnologias, e de outro, o modelo capitalista subordina homens e mulheres à lógica do mercado. Assim, as águas, as sementes, os minerais, as terras (bens comuns) tornam-se propriedade privada. Além do mais, há outros fatores negativos, como a mecanização pesada, a “pragatização” dos seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de veneno e a violência contra a pessoa”.
O texto foi adaptado de um artigo de dois professores da Universidade Federal e um da Estadual de Goiás. Ele foi publicado na Élisée, a revista de Geografia da UEG. Aí, dado esse trecho adaptado, o Enem pergunta para os alunos: “Os elementos descritos no texto, a respeito territorialização da produção, demonstram que há” e aí mandam cinco opções.
A direita está em polvorosa nas redes. Escandalizada. Marxismo cultural. Dirigismo ideológico.
Entre as respostas possíveis estão. Opção C, desprezo ao assalariado, afetando o engajamento dos sindicatos para com o trabalhador. Ou opção B, descaso aos latifundiários, impactando a plantação de alimentos para a exportação. E a gente sabe que os latifundiários, ainda mais chamando assim, nunca vão ser os mocinhos de uma prova do Enem, né? A resposta correta é opção A, cerco aos camponeses, inviabilizando a manutenção das condições para a vida.
Quer dizer. O capitalismo está aí pra ferrar com a vida dos camponeses.
A direita está certa, sabe? Mas a maior parte das pessoas de direita que estão reclamando nas redes da pergunta estão certas pelo motivo errado. Elas estão dizendo que as ideias contidas no texto da prova são um absurdo. Não são um absurdo. Representam uma opinião. Representam uma leitura. Mas não representam a única leitura, e este é o problema que aparece salpicado em diversas perguntas do Enem.
É partir do princípio de que um determinado ponto de vista é único. Não é. Temos, por baixo, três jeitos de interpretar a realidade. Socialismo, Liberalismo, Conservadorismo. E, desses três jeitos, só uma parte dos socialistas vão achar que o capitalismo está aí pra ferrar com a vida dos camponeses.
Aliás… Quem ainda chama quem vive no campo de camponês?
Uma das dificuldades postas não é uma questão apenas brasileira. Acontece em vários países do Ocidente. Na maioria das escolas de Ciências Humanas há amplo domínio da esquerda. Isso quer dizer que não há diversidade de leituras. Não é uma coisa que aconteça no Direito. Não é uma coisa que aconteça em Economia. Em Economia temos a PUC-Rio, com um corte bastante liberal, como temos a Unicamp, com um corte bastante desenvolvimentista. No conjunto há variedade de pensamento. Há debate. Há formação de especialistas com pontos de vista diversos. Uma das coisas que isso quer dizer é que em ambos os lados quem estuda os assuntos precisa melhorar seus argumentos. Porque eles vão ser testados pelo ponto de vista do outro lado.
Em Sociologia ou em História ou em Antropologia é muito mais raro. Agora, esse é um debate muito delicado, tá? Porque a ideia, aqui, não é sair vigiando professor porque é de esquerda, de centro ou de direita. Patrulha ideológica é a última coisa da qual precisamos. Mas a gente tem um problema coletivo que precisamos encarar. E essas perguntas do Enem, quando tratam como se fossem fatos indiscutíveis premissas essencialmente ideológicas são mostra do problema que temos.
O que faz o aluno que discorda da premissa de que o capitalismo faz mal ao campo? Claro, ele pode ser esperto e responder o que o professor quer ler. Bobo é o professor que acredita nas respostas sinceras. E os espertos fazem isso mesmo, eles se treinam pra passar no concurso, pra entrar na melhor universidade. Não se treinam para entender. Uma das coisas que provas assim do Enem mostram é que o objetivo não é gerar pessoas capazes de pensamento crítico. A mensagem que está sendo passada é outra. É a ideia de que certos pontos de vista são indiscutíveis.
Não são. Muito pelo contrário.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Essa é uma conversa importante de termos, sabe? A conversa sobre o espaço das ideologias no mundo digital. A edição deste Sábado do Meio foi um pouco diferente. Ao invés do que fazemos habitualmente, que é publicar uma reportagem ou uma entrevista, publicamos um artigo meu. Uma análise de como a esquerda foi transformada pelas redes sociais. A gente passou os últimos anos discutindo o que mudou na direita, até porque das redes nasceu uma direita profundamente antidemocrática. Que buscava eliminar a esquerda. A nova esquerda não tem como projeto implodir o regime democrático, mas tem em alguns momentos traços autoritários. O título do artigo é Israel não tem como ganhar e, em boa parte dele, o que tento fazer é compreender como a esquerda se transformou no debate das redes. Os assinantes premium do Meio já podem ler o texto. E você? Já assina? Ora, assine. É baratinho.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
O John Rawls, um dos grandes filósofos da política do século 20, descrevia o jogo numa democracia da seguinte forma. O que o regime democrático entende, o que a democracia liberal entende, é que o resultado natural de se dar liberdade de pensamento é que na sociedade vão surgir muitas doutrinas políticas. Ou seja, muitos jeitos diferentes de compreender como a sociedade se organiza. Não tem jeito. Deu liberdade, vai acontecer. Põe muita gente diferente pensando, chegaremos a conclusões diferentes. Não vamos todos nos entender.
Então como é que faz? Bem, no raciocínio do Rawls, se liberdade de pensamento vai levar necessariamente ao surgimento de uma pluralidade de ideologias, é necessário que duais coisas ocorram simultaneamente.
Uma das coisas que tem de acontecer é que a democracia crie um espaço harmônico para que as ideologias razoáveis convivam. Em inglês ele usa a palavra reasonable. Tem um monte de ideias misturadas nessa palavra aí. Coerentes. Lógicas. Equilibradas. Sensatas. Quer dizer, aquela ideologia precisa ter uma base racional, precisa ter uma coerência interna, ser plausível. Não quer dizer que todos precisem concordar com aquele conjunto de ideias. Mas quer dizer que tem de ser possível defender com argumentos racionais aquele conjunto de ideias num debate.
E aí entra a segunda condição do Rawls. As pessoas que defendem aquela ideologia precisam topar as premissas do regime democrático. Tipo o quê? Tipo reconhecer que haverá outras ideologias disputando espaço. Aceitar que estas outras ideologias são legítimas, compreender que ninguém é dono da verdade.
Todos precisamos estar no palco, defendendo nossos pontos de vista constantemente. Esta é a essência, é a natureza de todas as ideologias democráticas. Por que Jair Bolsonaro representa um movimento antidemocrático? Fácil de responder. Ele trabalhava sempre com a ideia de extermínio da esquerda.
O que é o Enem? É um concurso público. Ele define quem terá direito de ir para as melhores universidades. Se é um concurso público, precisa ser democrático. Ser democrático quer dizer que você não parte da premissa de que uma ideologia está correta e a outra não. Este Enem, esta pergunta, claramente parte da ideia de que o capitalismo é um monstro de sete cabeças.
Outras pessoas, vejam só, acreditam que o capitalismo, suas práticas agrícolas e suas tecnologias enriqueceram uma quantidade imensa de pessoas no Sul, no Centro-Oeste e no Nordeste brasileiros nas últimas décadas. As regiões do Nordeste que cresceram foram porque entraram na moderna indústria agrícola da Nova República. A tecnologia que permitiu este salto, em grande parte, foi desenvolvida pela Embrapa. Ou seja, financiada por uma pólítica de Estado brasileira mantida por partidos de direita e de esquerda. Por quê? Porque funciona. E bom sublinhar, aqui.
Esse “enriquecer” nada tem a ver com ficar milionário, embora alguns tenham ficado milionários. Quer dizer que gente de classe média ficou rica, gente pobre foi alçada à classe média. Nas últimas três décadas, o agro se tornou talvez o principal motor de crescimento do Brasil. É uma das principais fontes de crescimento do PIB, uma das razões de sucesso do país na década estupenda que tivemos no início do século. Uma década à qual, diga-se, o PT deve sua imensa popularidade. E, olha, lá dentro do Planalto a maioria das pessoas não vai discordar disso.
Claro, todo mundo tem o direito de discordar porque tem muita nuance possível nessa conversa. O problema não é qual raciocínio está certo e qual está errado. O problema é que um concurso público não pode partir da premissa de que a visão de uma ideologia está certa e as outras estão erradas.
Ainda mais se o objetivo deste concurso público é medir a capacidade de estudantes pensarem criticamente. Quer dizer: sua capacidade de chegarem às próprias conclusões.