A esquerda que nasceu na internet.

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Ciro Gomes reapareceu esses dias, e reapareceu criticando Lula e fazendo troça da ministra Anielle Franco. Anielle tinha dito que a expressão buraco negro era racista. O Ciro está certo, claro. Buracos Negros, os fenômenos que ocorrem no Cosmos, têm entre suas características o fato de que sugam toda a luz. Na ausência de luz fica tudo escuro, é impossível ver. Mas tem um outro aspecto que é possivelmente mais importante nesse debate. A frustração do Ciro com os movimentos identitários não é nova. É antiga, já. E ele não está sozinho. Muita gente na esquerda se irrita com esses movimentos.

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Sabe, a internet, nos últimos dez anos, transformou profundamente a direita. A gente passou os últimos quatro, cinco anos falando a este respeito. Mas um movimento que era residual, claramente minoritário, se tornou majoritário muito rápido. Radicalizou no extremo da direita para a consolidação de uma ideologia reacionária, violenta, nacionalista, autoritária e antidemocrática. Aquilo que aqui no Brasil chamamos de bolsonarismo, ou de olavismo, quis o controle do poder, quis subverter o equilíbrio dos Três Poderes. Quis um golpe de Estado. Não é diferente na maioria dos países.

A coisa sobre a qual a gente falou muito pouco é sobre como as redes transformaram a esquerda. Porque também a esquerda mudou muito, e profundamente, nestes últimos dez anos. Hoje temos debates que não tínhamos antes. Mas a esquerda não mudou igual à direita. Claro que sempre tem os malucos do Partido da Causa Operária e, se eles se tornassem majoritários, teríamos algo tipo o bolsonarismo na esquerda. Teríamos o domínio da extrema-esquerda. Isso não aconteceu.
A esquerda dominante que nasceu das redes sociais não prega golpes de Estado. Aliás, ela também não chegou ao poder, como ocorreu com o bolsonarismo ou o trumpismo. O presidente Lula se irrita com esses movimentos igualzinho o Ciro, só manifesta menos. Essa nova esquerda está representada no governo, mas não é o jeito dominante de pensar dentro do governo.
E, até porque ela não ameaça democracias, é muito menos estudada na academia. Tem menos sentido de urgência. Aliás, não é só por isso. Este movimento de esquerda não é golpista, mas é autoritário. É particularmente autoritário. É um movimento que intimida. A toda hora ouvimos de professores, dentro de universidades, de palestrantes, que são acossados por militantes, impedidos de falar. Têm suas cabeças pedidas. Então, para um professor das humanidades, é preciso coragem particular para estudar esse movimento. Porque haverá ataques, ataques à reputação. Não vai ser fácil estudar. Essa nova ideologia, ela não é dominante no governo, mas é dominante nos espaços de debate onde há vozes de esquerda. É dominante na academia, na imprensa e nas redes sociais.

Na edição de sábado do Meio, falei um tanto sobre esse assunto, mas não era o motivo principal do artigo. Esse episódio da Anielle, a crítica do Ciro, essas coisas estão acontecendo com mais frequência. As bobagens do identitarismo, porque do identitarismo sai muita bobagem, elas estão aos poucos sendo mais expostas.
Agora este mês, saiu nos Estados Unidos um livro analisando o identitarismo. É particularmente formidável. Vai fundo. Se chama The Identity Trap, A Armadilha Identitária, foi escrito pelo cientista político alemão Yascha Mounk.

Dia desses li numa das redes que, se você chama a coisa de Identitarismo já é mostra de que não entende o conceito. Tudo certo, negar um rótulo é uma estratégia. Entre os americanos, uma das maneiras de se referir a este movimento é “woke culture”. A expressão vem originalmente da ideia de acordar. Woke. Você acorda no momento em que percebe como a realidade de fato se estrutura. Mas a coisa foi invertida. Lá, quem não gosta dos identitários é que usa o termo woke de forma irônica.
Não importa porque o movimento rejeita rótulos. É uma estratégia política porque, quando você rejeita rótulos, de certa forma o que você está dizendo é que não representa uma maneira de pensar. Não representa uma ideologia. Representa, isto sim, a única maneira possível de compreender como a sociedade se organiza. Quem não vê que é assim que as coisas são é porque não compreendeu, por má fé ou porque não se tocou ainda. Nenhum outro jeito é válido, nenhuma outra forma é possível. Tudo deve ser visto por aquela lente.
Bem, só que é uma ideologia. Uma das ideologias que compõem a esquerda. O Mounk propõe que a chamemos de Síntese Identitária. É um jeito de olhar para a sociedade partindo das identidades que cada pessoa. A gente tem ouvido muito certas palavras, certas expressões, não é? Colonialismo. Estrutural. Apropriação cultural. Cancelamento.
Esta ideologia não deseja a ruptura do regime democrático. Ela parte do reconhecimento de dívidas históricas, de injustiças, que concretamente existem na sociedade. Só que, a partir daí, não tolera dissenso. Quer controlar todos os discursos. Quer determinar quem tem direito de falar o que e quando e com que palavras. Vamos conversar?
Aliás, tenho um convite para vocês. Amanhã, quinta-feira dia 9 de novembro, é a aula inaugural do meu curso sobre Israel e Palestina. É um curso de história. De sobre como estes dois movimentos nacionais nasceram, do final do século 19 para cá. Em geral, essas aulas inaugurais são para os assinantes premium. A de amanhã vai ser diferente. Vai ser aberta para todo mundo. E assine o Meio. Mesmo. Sua assinatura é o que deixa a gente de pé.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A gente pode fazer uam síntese desta ideologia da seguinte forma. Cada pessoa tem sua identidade. Toda opressão que existe na sociedade é estrutural e diretamente ligada a esta identidade. Por isso, você está ou de um lado, ou do outro. Ou pertence a uma identidade que oprime, ou pertence a uma identidade oprimida. Questionar as dores da vivência desta identidade não pode ser feito jamais. Então quem tem uma identidade que é oprimida pela estrutura social é o único com direito de se manifestar sobre esta opressão. O papel de quem tem uma identidade que é beneficiada pela opressão é calar a boca e escutar. E pedir desculpas.

É imposto que a luta de cada um oprimido contra o que o oprime deve ser a luta de todos os outros. Qualquer recusa a reconhecer a identidade de alguém, ou de abraçar sua luta, precisa ser imediatamente condenada por todos. Coletivamente. E como, no fim, tudo nasce do discurso, de como se narra uma história, todo discurso precisa ser vigiado para desvios já que todo desvio é opressão e opressores devem ser rechaçados imediatamente. Calados. Humilhados. Aí entra a ideia de apropriação cultural. Entra a ideia de vocabulário aprovado e vocabulário rechaçado. São os pronomes neutros, por exemplo, ou todas as expressões envolvendo palavras como preto ou negro.

O Rio de Janeiro foi a primeira cidade da América do Sul a ter luz elétrica, e isso era só na estação ferroviária, na Central do Brasil. A Companhia Light, que instalou luz elétrica não nas casas, inicialmente, mas nas ruas, é de 1905. Luz elétrica é mais ou menos isso aí pelo mundo, final do século 19, início do século 20. Durante quase toda a existência humana, a noite foi assustadora. Não somos uma espécie que enxergue no escuro. Tochas, lampiões, não iluminam muito longe. Muitas das expressões que usam o negro em distinção ao claro com conotação negativa vêm daí. Do medo do escuro que é atávico a todos nós, humanos. Não é apenas um medo infantil. Qualquer um que já passeou pelo campo com uma lanterna fraca sabe que, num mundo sem luz elétrica por toda parte, a noite é terrivelmente assustadora. Todos sentimos. Mas esta é uma discussão que se tornou impossível.

O Rio de Janeiro que ganhou luz em 1879 era uma cidade na qual quase metade das pessoas eram escravizadas. E ser escravizado não era apenas uma condição na qual você se submetia a trabalho forçado. A mulher ou o homem que você amava podia ser tirada da sua companhia a qualquer momento por um contrato de compra e venda. Com seus filhos, o mesmo. Estupro era todo dia. Seu corpo não lhe pertencia de muitas formas diferentes. Tortura. Tortura recorrente. Tortura a toda hora. Quando a escravatura foi abolida, não houve qualquer política pública para integrar na sociedade essas pessoas destroçadas que saíram do processo. E isso criou desequilíbrios profundos que vemos ainda hoje no Brasil. Não só no Brasil.
As duas ideias, a de que a conotação da palavra “negro” como negativa muitas vezes não tem nada a ver com racismo e de que existe uma desigualdade profunda na sociedade brasileira que vem da escravatura não são incompatíveis.

Só que este debate, que é um debate banal, está impossível de se ter. E, a partir daí, há debates que não têm nada de banais. Se todo racismo necessariamente é estrutural, então não pode haver racismo de negros contra brancos. Se todo machismo é estrutural, uma situação particular em que um homem sofra uma injustiça de uma mulher não pode ser debatida. Aos poucos vamos criando um ambiente em que debates não podem ser tidos. Em que pessoas de direita não podem falar em universidades.

A estrema-direita está errada quando diz que isto é marxismo cultural. Karl Marx compreendia poder como diretamente ligado a classe. O poder é manifestado pela alta burguesia para controlar o proletariado. O identitarismo não tem nada de marxista. O identitarismo vai buscar no francês Michel Foucault a ideia de que o poder é muito mais difuso, exercido por todos nós nas palavras que usamos e nas histórias que contamos. Quando classificamos alguém disso ou daquilo, estamos congelando aquela pessoa num determinado papel. Para o Foucault, isso é poder.

A diferença, evidentemente, é que Foucault queria se libertar dum mundo de classificações e histórias enquanto o movimento identitarista quer trancar todos em identidades únicas e rígidas. E, nesse sentido, no fim é uma visão que traz muita informação, muitos conceitos, mas deságua num mundo dividido em heróis e vilões. Não quer dizer que não exista racismo estrutural, porque existe. Não quer dizer que não exista machismo estrutural — existe. Mas estas explicações da sociedade convivem com muitas outras. Não exercemos um papel só, único, ao longo da vida. E precisamos soltar o debate público dessas amarras. Sabe, existem muitas outras maneiras de ser de esquerda como há muitos jeitos de não ser racista ou machista ou homofóbico. O mundo é mais complicado do que isso. Todos somos heróis e vilões, injustos e justos, estamos certos ou errados, certo estava o Riobaldo. Viver, viver é muito perigoso.

A gente só vai restabelecer a democracia de fato quando voltarmos a ter ampla liberdade de debater, de questionar, de conversar. Até lá, vai parecer que só existem dois lugares para se estar. Ou você é identitarista, ou é bolsonarista. E um jeito de agir nas redes fica atiçando o outro jeito. Se alimentam mesmo que não percebam. A gente pode mais do que isso.

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