A seita de Milei, Trump e Bolsonaro

Receba notícias todo dia no seu e-mail.

Assine agora. É grátis.

A gente sabe que as palavras têm um peso, um significado — e que isso importa. Nós, jornalistas, que as usamos como ferramenta de trabalho, devemos ser ainda mais cuidadosos com elas.

PUBLICIDADE

Por isso, não é com pouca reflexão que eu vou usar o termo “seita” pra falar do que representam Javier Milei, na Argentina; Jair Bolsonaro, no Brasil; e Donald Trump, nos Estados Unidos.

Ao ver que os argentinos optaram, por supreendente larga margem, fazer uma aposta tão alta num cara como Milei eu não consegui evitar o pensamento: “Nossa, essa gente está hipnotizada? Seduzida? Iludida? Como aceitou fechar com um candidato que não só não esconde suas ideias radicais como as propaga de forma histriônica? Como topou eleger um sujeito que se vangloria de confabular com seus cachorros, esses, por sua vez, clonados de um original, com quem o novo presidente se comunica por meio de médiuns? Isso só pode ser coisa de culto mesmo”.

E, ainda por cima, eu vinha assistindo à sequência daquela série da Netflix, “Como se tornar um tirano”, que se chama “Como se tornar um líder de seita”, e andava assombrada com as semelhanças na fórmula. Pois zapeando nas redes sociais, primeiro eu vi uma foto de Bolsonaro, seu filho Eduardo e Milei sorridentes numa videoconferência. Percebi que a sensação de que os apoiadores de Milei vivem um transe era muito parecida com a que tive quando via os acampados em porta de quartel.

Depois, ainda li a notícia de que Trump e um de seus assessores, Stephen Miller, vêm falando abertamente dos planos para, caso Trump se eleja no ano que vem, montar enormes campos de concentração para migrantes enquanto eles aguardam seu processo de expulsão dos EUA. Assim, como se fosse algo absolutamente aceitável. Como eu acredito que Trump tenha muita chance de vencer as eleições de 2024, me bateu a mesma percepção.

Mas, novamente, a cautela com conceitos e palavras é premissa básica de quem quer fazer um jornalismo que preste. E lá fui eu dar uma olhada no que pesquisadores, acadêmicos e analistas têm a dizer sobre essa comparação de políticos com líderes de cultos e seitas.

Há diversos pontos em comum e algumas diferenças. A começar pela proporção: não é razoável acreditar que metade de um país, seja Brasil, Argentina ou EUA, faça parte de um culto fanático, qualquer que seja ele. Mas, acima de tudo, há muitos sinais de alerta que estudiosos do tema vêm emitindo sobre os mecanismos usados por esses líderes políticos que se travestem de gurus de seitas políticas e o imenso perigo da normalização deles.

Cá entre nós, a gente sentiu parte disso na pele e escapou por muito pouco e apenas temporariamente desse risco. A eleição de Milei no último domingo e, mais ainda, a de 2024 dos EUA tende a revelar o quanto a mentalidade de seita pode contaminar de forma muito mais ampla a política de um país e formar ondas pelo mundo.

Ninguém aqui acha que os mais de 58 milhões de brasileiros que deram seu voto a Bolsonaro no segundo turno pensavam como os milhares que acamparam pedindo intervenção militar nos meses seguintes ou invadiram os prédios dos Três Poderes em 8 de Janeiro, certo?

Da mesma forma, os 15 milhões de argentinos que escolheram Milei não são todos radicais maníacos como seu candidato. Nos EUA, em que o sistema de votação é ainda mais peculiar, é indireto, essa associação fica ainda mais problemática.

Isso não quer dizer que os três mencionados não recorram a essa estratégia como arma política. Vamos a algumas das características dos líderes de cultos, independentemente se eles são religiosos, de autoajuda, sexuais, de pirâmides financeiras. O líder é extremamente carismático.

Isso é algo que não se constrói facilmente. Quando é inato, melhor. Mas também é possível moldar uma persona com algumas técnicas básicas de persuasão e convencimento. Charles Manson, o líder de culto assassino americano, era fascinado pelo manual “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, que dava os caminhos para isso.

Milei, Bolsonaro e Trump são carismáticos, cada um a sua maneira. Os três têm alguma dose de excentricidade, parte natural, parte cuidadosamente calculada para atender seu público alvo. Em comum, a trinca oferece um linguajar bastante simples, às vezes chulo, pra projetar a imagem de “gente como a gente”. O que os difere dos mortais não são os modos — essa coisa blasé e arrogante da esquerda, eca. O que os distingue é o fato de eles serem os escolhidos, os únicos capazes de salvar os cidadãos de bem.

No caso da Argentina, Milei se apresentou como o messias da economia, porque detectou claramente que era ali a dor de uma geração desesperada por soluções fáceis e radicais que encerre tanta crise. Aqui, foi nos valores, e eu já contei na coluna como Bolsonaro detectou lá em 2010 como havia um público sedento por moralização da política, somado ao crescimento exponencial da religiosidade evangélica mais radicalizada. Trump mescla alguns caminhos, mas usa, além de sua imagem de bilionário bem sucedido que seduz demais os americanos, o nacionalismo mal-disfarçado de xenofobia e supremacismo branco para seduzir. E se apresenta como o único capaz de proteger o país das ameaças externas e internas.

Nisso, já implementam a segunda característica dos gurus de seita: a de oferecer milagres depois de identificar um público vulnerável e com medo. Na política atual, não é difícil encontrar esse eleitorado. Ele está naqueles segmentos mais tradicionais acuados com medo das mudanças rápidas demais das últimas décadas, seja no mercado de trabalho, seja nas relações sociais. Na linguagem da extrema direita, isso tudo foi traduzido no “comunismo”, na ameaça à família, na falácia da ideologia de gênero. Milei, que começou sua trajetória se apresentando mais como anarco-capitalista ou libertário, incorporou parte desse vocabulário e dessas ideias, porque viu nelas uma adesão fácil de parte conservadora da Argentina.

Bom, outra ferramenta de líderes de cultos é a do isolamento de seus seguidores. Aqui, aparece uma ambiguidade com a política que alguns pesquisadores apontam para sugerir que não se deve fazer essa comparação sem ressalvas. Enquanto numa seita, existe a prática de levar seus membros para longe da sociedade e apresentar um sistema de crenças completamente paralelo, dissociado da realidade, na política a ideia é justamente a da adesão, da difusão de ideias.

Acontece que quem testemunha o ecossistema de informações que trumpismo e bolsonarismo construíram enxerga muitas similaridades com a forma como as seitas difundem seu ideário.

Uma pesquisa de agosto, agora, nos Estados Unidos mostrou que, daqueles que pretendem votar no Partido Republicano em 2024, 71% acreditam que Trump lhes diz a verdade — isso é mais do que família e amigos, que foram 63%, do que a mídia conservadora, que ficou em 56% e até do que seus líderes religiosos, com 42%. Na prática, o que isso faz é isolar essas pessoas de uma parte do mundo, a dos fatos. E faz com que seus líderes políticos se tornem inquestionáveis, inimputáveis. Sejam donos de sua própria verdade. Esse sentimento de pertencer, de ser parte de um clube exclusivíssimo com acesso ao que ninguém mais quer que você saiba, de entender o mundo como poucos entendem, é muito sedutor.

Novamente, essa mentalidade de seita não engloba todos que votam ou votarão em Milei, Trump e no sucessor de Bolsonaro, pois inelegível. Só que os contamina — até por esse sentimento de pertencimento que eu mencionei. Mas não necessariamente.

É aqui que a gente precisa ficar muito, muito atento a esse fenômeno.

Em primeiro lugar, porque existe uma coisa na opinião pública que pesquisadores chamam de termostática. Simplificando muito o conceito, é algo como uma reação contrária ao status quo. Então, se um governo de esquerda, eleito democraticamente sob a demanda de aumento de gastos públicos, por exemplo, vai lá e aumenta os gastos, depois de um tempo é natural, e cientificamente comprovado, que a mesma opinião pública que queria mais investimentos do governo vai começar a pedir por redução desses gastos.  Isso não quer dizer que ela tenha mudado ideologicamente. É o mero efeito de ajustar expectativas — ou, eventualmente, de culpar quem está no governo por tudo que vai mal no país, sem medir o que de fato é culpa das políticas públicas.

O que acontece quando no polo oposto está o radicalismo, sem qualquer meio termo, está uma seita política? A massa, ainda que não coadune com todo o sistema de crenças, vai lá e vota no radical, no guru de soluções fáceis, desde que ele faça – ou prometa fazer – o oposto do que vinha sendo feito.

É importante ter esse conceito em mente, porque ele é universal e, num mundo polarizado demais, seu efeito é que, a cada quatro ou oito anos, o radicalismo seja a escolha, às vezes não por fracasso de um governo, mas simplesmente por essa mudança da opinião pública. Louco isso, né?

Então, quem vota num radical sem estar totalmente comprometido ou engajado com a causa nem sempre enxerga nesse voto, um ato individual, algo tão radical ou relevante assim. Acaba sendo apenas uma medida pontual, um eventual dedo do meio ao que vinha sendo feito. Inconsequente.

Daí é que vem o segundo alerta. Quando se normaliza em alguma medida o radicalismo, quando chega a hora de ele governar, ninguém fica tão assustado assim. Pegando o exemplo de Trump e os campos de concentração. Uma parte dos americanos simplesmente acha que sim, a saída é prender e expulsar os migrantes. Mas quando ele fez aquela abominação de separar crianças de seus pais sua popularidade caiu. Então, por que agora ele ainda aparece na frente das pesquisas e se sente confortável a divulgar esse tipo de ideia? Aparentemente, parte dos americanos está disposta a votar nele desde que ele faça diferente de Joe Biden. Isso basta e oculta a crueldade da proposta.

O perigo, e uma eventual trágica vitória de Trump vai comprovar isso, é que ele dificilmente vai voltar apenas para fazer diferente de Biden. Seu ideário é o de ruptura democrática, de radicalização religiosa e contra os direitos humanos. O desmonte do estado democrático de direito nos EUA vai ser algo palpável e de difícil reversão.

É muito trabalhoso desfanatizar um seguidor de seita. Na política, também. Tem gente que aposta no caminho do diálogo com aqueles que não se radicalizaram por completo, mas há um certo consenso de que eles devem perceber por si o perigo, ou o tiro sai pela culatra. Há, porém, algumas medidas institucionais que precisam ser incentivadas, exigidas até.

A gente está vendo Trump com chance de se eleger porque os EUA permitem que um condenado seja presidente. Mas, mais do que isso, porque o Partido Republicano escolheu a saída eleitoral fácil e dizimou a direita moderada do país. Acolheu e nutriu o trumpismo. O Partido Democrata também tem sua responsabilidade no afastamento da massa trabalhadora do país, algo que está tentando reverter, sem muito sucesso ainda. Acima disso tudo, há um poder econômico nos EUA abraçado com o trumpismo em nome de coisas muito pouco nobres, que quase nada têm a ver com ideologia.

Aqui, a Justiça tornou Bolsonaro inelegível, mas nem de perto puniu seus crimes – os mais vistosos e graves, a meu ver, os da pandemia. Também não puniu quem a ele deu sustentação, os militares, e financiamento, os empresários. Sem fazer isso, o bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, se legitima e normaliza. E fica como alternativa concreta à reação termostática ao governo Lula, seja em 2026 ou 2030. Lula sabe disso, tanto que botou Fernando Haddad, o fiador da parte do governo que pode vencer a opinião pública, ao seu lado na live.

Se o radicalismo político tem cara de seita, cheira como seita, anda como seita, é papel de todo o resto não deixar que ele seja naturalizado como alternativa política. Mas Milei, e talvez Trump, nos mostram que não aprendemos essa lição.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.