Todos contra a jornalista

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Se você lê um jornalista e sempre concorda com o que escreve ou fala, essa jornalista, esse jornalista, não está fazendo seu trabalho.

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O que uma parcela dos políticos governistas fizeram essa semana, e isso inclui gente que respeito muito, cruzou a linha feio. São pessoas que trabalharam para colocar a segurança pessoal da jornalista Andreza Matais, do Estado de S. Paulo, em risco. Porque ninguém tem o direito de se iludir. Quando se puxa uma onda de cancelamento desta virulência contra uma pessoa, nas redes sociais, esta pessoa é posta em risco. Tem um alvo nas costas dela. Um dia está andando na rua, alguém com desequilíbrio reconhece e a coisa pode ser feia. Ou então alguém distribui foto dos filhos nas redes, endereço, número de telefone — e aí vem uma onda de Zaps com ameaça. Todos nós jornalistas vivemos um pouco disso nos anos Dilma, vivemos a coisa intensamente nos anos Bolsonaro. Muito intensamente. Tem gente presa, hoje, por ameaças reais a jornalistas. Tem gente que precisou sair do país um tempo. Não aconteceu nada de pior aqui, como em outros países. Mas não se enganem. A turba dá medo.

Não pode ficar normal. Está ficando normal.

Não é só no Brasil. O ritual do debate público se deturpou gravemente e de duas maneiras. Uma é que virou esporte de contato. Uma discussão foge muito rapidamente do mérito e vira jogo pra levantar as torcidas de um lado e do outro em dois segundos. O objetivo nunca mais é analisar o argumento, desmentir a notícia, logo vira um cultivar e repetir slogans, mobilizar a massa pelas redes. A outra maneira em que a coisa se deturpou foi no próprio coração do jornalismo.

Olha, jornalista com lado sempre teve. Mas, no tempo das redes sociais, jornalista ter lado virou a expectativa. A coisa não só se exacerbou como uma quantidade grande do público começou a cultivar a certeza de que jornalistas sempre estão do lado de algum grupo político. Cada vez mais gente tenta ler as coisas, ou assistir algo, para encaixar aquela pessoa em algum time. Olha, muitas vezes jornalistas não estão no lado de ninguém na disputa.

Deixa eu fazer uma observação, aqui. Uma nota de transparência. Fui editor-chefe da parte digital do Estadão, isso foi no tempo em que Lula era presidente antes da Dilma. Sou colunista do jornal, mas não frequento a redação. Lá, escrevo principalmente sobre tecnologia. Às vezes leio coisas com as quais concordo, às vezes com as quais discordo. Como qualquer leitor. E ainda bem que existe o Estadão para contar ao mundo que coisas como o Orçamento Secreto existiram no governo Bolsonaro. Descoberta, aliás, do time da Andrea. E eu estaria falando rigorosamente a mesma coisa se fosse sobre uma jornalista, ou um jornalista, da Folha de S. Paulo, do Valor Econômico, jornais com os quais tive mínimo contato profissional durante a carreira. Porque este debate não tem rigorosamente nada a ver com a linha editorial de um veículo ou de outro. Tem a ver com jornalismo. Tem a ver com democracia.

Tem a ver com uma coisa que é preciso que os presidentes de partido compreendam. Que os ministros de Estado compreendam. Que os políticos todos compreendam. Quando vocês atacam pessoalmente alguém dentro de uma redação, esse ataque tem grandes chances de se tornar uma onda de ódio político nas redes sociais. Quando o ataque se torna uma campanha de ódio contra uma única pessoa, esta pessoa está em perigo real. Perigo físico.

Numa República em que políticos criam o hábito de atacar jornalistas na física, não na jurídica, e assim criam risco real a pessoas, todos os jornalistas estão de alguma forma ameaçados. Porque pode acontecer a qualquer um, a qualquer hora, se publicarem algo que desagrade quem está no poder. Só de haver este risco, algum repórter, em algum lugar, pode se intimidar. Nesse momento começamos a perder a liberdade de imprensa.

Não há liberdade de imprensa plena numa República em que políticos incitam massas contra seres humanos que escrevem notícias ou análises políticas.

E aí volto ao início, porque o próprio jornalismo está se deturpando de forma grave. Se você acompanha consistentemente um jornalista, uma jornalista, e sempre concorda com o que a pessoa escreve ou fala, o que você está consumindo não é jornalismo. Pode parecer, não é. Vamos conversar sobre isso?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A notícia mais importante desta semana foi a demissão e a recontratação de Sam Altman para o comando da OpenAI, a empresa de inteligência artificial mais relevante do mundo. Se vocês acham que redes sociais tiveram impacto profundo nas democracias, vocês não viram nada ainda. As próximas eleições vão ser punk. Eu estou trabalhando na edição do Sábado do Meio para explicar o que aconteceu, quem ganhou e como isso vai impactar todo o mundo, mesmo quem não está prestando atenção. Todos os assinantes do Meio vão receber. Você já assina? É hora.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A internet provocou três transformações simultâneas no jornalismo. A primeira é que criou um ambiente de muita insegurança econômica. Aconteceu em inúmeras indústrias, não só na imprensa, mas o resultado é que jornalistas ganham menos do que ganhavam e também se tornaram menos do que eram. Tem muito menos gente nas redações. Isso acontece porque o negócio tradicional do jornalismo diminuiu com a ascenção do digital. As empresas grandes fazem muito menos dinheiro do que faziam.

A segunda transformação foi uma explosão de novos veículos. De cara, pelos olhos da democracia, é ótimo. São mais vozes, mais olhares editoriais. Mas o problema do dinheiro não foi embora. Tem mais veículos e menos dinheiro no mercado. Então cada novo veículo teve de descobrir como se sustentar. Como criar uma audiência. E não foram só novos veículos. Jornalistas, individualmente, começaram a descobrir algo novo com as redes — eles próprios, elas mesmas, tinham como construir suas próprias audiências. Não através de um jornal, de uma rádio, uma TV ou mesmo site ou podcast. Pelo X, pelo Insta, YouTube. E construir uma audiência para si, profissionalmente, é um trunfo. No mínimo você se torna mais empregável. Todo veículo sabe que, quando contrata alguém que já tem seu próprio público digital, traz junto também uma audiência. Não é todo mundo no jornalismo que tem a paciência, e o couro no lugar de pele, a disposição, para construir um público nas redes. Mas, para quem constrói, os benefícios são grandes.

E aí vem a terceira transformação. Para quem está disposto a trabalhar diligentemente e apanhar de vez em quando, sim, redes sociais constróem audiências. O problema é que os algoritmos das redes sociais estão regulados para agregar grupos de pessoas no entorno de identidades. São pessoas que pensam mais ou menos parecido, tem gostos similares. Por que esta lógica? Porque se você junta todo mundo que gosta de Flamengo num mesmo grupo, você pode vender pra essas pessoas camisas do Flamengo. Então você manda as mesmas coisas pra todo mundo. As mesmas publicidades, mas também as mesmas postagens. Fica todo mundo daquela trupe recebendo as mesmas coisas. Se junta todas as grávidas, todos os roqueiros, todo mundo que gosta de gatos, oportunidades comerciais se abrem. Mas quando esta lógica, que é uma lógica de sustento do negócio das redes, uma lógica de publicidade, uma lógica de congelar pessoas em um grupo no entorno de identidades comuns, quando essa lógica se aplica ao jornalismo e à política, aí cria um problema imenso.

Uma democracia funciona melhor quando estamos expostos à diversidade de ideias. Mas, nas redes, estamos noutro lugar. Estamos num lugar em que o algoritmo já separou todo mundo em times de acordo com suas identidades políticas. Ela cria um incentivo à uniformização destas identidades. Então, aos poucos, vamos sendo todos moldados. Repetimos as mesmas frases de efeito, os mesmos argumentos. Replicamos os mesmos memes, um após o outro. As redes não gostam de ideias novas, elas querem o conforto do conhecido. Elas não gostam de independência, gostam de conformidade. Elas querem aquela imagem igual, aquele vídeo igual, aquela frase feita que toca nos signos que despertem o reconhecimento imediato de todo mundo com uma mesma identidade. E assim, divididos em times dos iguais entre si e o mais diferente possível dos outros, atuamos em bando. Todos. É ótimo pra comprar camisa do Flamengo, eu mesmo estou pensando em aproveitar a Black Friday. Mas com esse estímulo à divisão da sociedade em tribos, adivinha o que aconteceu com política? Todo mundo tem de ter um lado e precisa odiar o outro. Dúvidas não são permitidas a ninguém. Qualquer ameaça a escapar da conformidade encontra resistência imediata do bando.

Esse troço é tão louco, gente, que até os comunistas, não aqueles dos pesadelos da extrema direita, os comunistas de verdade, encontram conforto nas redes sociais. Todo mundo gritando contra o capitalismo embalado no conforto da rede do tio Zuck. Ou do tio Xi Jinpin, não tem diferença. Todo mundo capturado pela mesma lógica comercial. E sem perceber.

Para políticos que queiram usar desta mobilização, é uma arma poderosa. Porque as redes resolveram a parte difícil: elas já agruparam as pessoas no entorno de identidades comuns e homogêneas. O problema é o seguinte: só existe uma maneira de surfar nessas multidões que as redes agregam. Você precisa, simultaneamente, explorar os símbolos que unem todo mundo e incitar o ódio ao inimigo comum. Quem é o inimigo comum? Todo mundo que não se dobra à uniformidade de identidade do grupo. Para todo político autoritário é fácil. Para outros é mais difícil. Mas a tentação está lá. É só soltar os cães.

A mesma tentação existe para jornalistas, tá? E muitos não resistem a ela. Tornam-se porta-vozes de grupos. Vão, todo dia, repetir as mensagens que aquele grupo, com aquela identidade, quer ouvir. É uma delícia. É uma droga, uma droga poderosa. Te faz se sentir querido, traz sucesso, traz até dinheiro para quem sabe jogar o jogo bem. Mas e se às vezes você concorda, às vezes discorda? E se você descobre algo que não interessa a um grupo político que seja descoberto? Aí você tem de tomar uma decisão. Vai surfar a popularidade das redes ou vai romper a conformidade do bando?

No vocabulário das redes sociais, jornalismo independente é o jornalismo que reafirma o que a gente pensa. Jornalismo vendido é o jornalismo do outro time. Pra jornalismo de verdade, que é aquele jornalismo que às vezes publica coisas com as quais você concorda, e às vezes coisas das quais discorda, para esse não tem nome. Será independente às vezes, vendido noutras, e vamos tocando.

Redes sociais são muito difíceis pra democracia. Democracia é esse mecanismo que a gente construiu para não nos matarmos por discordar. São cinco milênios de história humana e só nos últimos cem anos que a gente começou mesmo a tentar dar forma a este sistema de um jeito que pudesse representar toda a sociedade. Não está pronto, nem de longe funciona como devia em lugar algum do mundo. E o desafio de hoje é resistir à máquina de comunicação que hackeou nossos cérebros para nos colocar todos em caixinhas que nos põem em guerra uns contra os outros. Que incita as diferenças e trabalha para apagar as convergências. Que nos empurra pro mundo pré-democracia.

Jornalismo precisa ser criticado. Negue a notícia. Ataque o argumento. Mostre o que é falso, chama para o debate. Mas não ponha as pessoas em perigo porque discordam, porque publicaram algo de que não se gostou. A gente precisa reinventar a maneira como a democracia funciona e, nesta democracia, em qualquer democracia, imprensa erra, imprensa publica o que quem tem poder não gosta, imprensa concorda e discorda, mas imprensa precisa ter liberdade pra fazer tudo isso sem que jornalistas sejam expostos a perigo. Imprensa é o canário no fundo da mina de qualquer democracia. Quando imprensa começa a ter medo é porque se perdeu a democracia.

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