A rachadinha do Janones

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Você entende por que rachadinha é corrupção? É seria a pergunta. Essa é uma questão importante porque rachadinhas são, possivelmente, a forma mais comum de corrupção praticada nos parlamentos brasileiros. Em cada Câmara Municipal, Assembleia Legislativa ou mesmo no Congresso, se bobear não tem um único parlamento neste país onde alguém não pratique a rachadinha. É tão generalizada que, para muitos parlamentares, honestamente não chega a ser corrupção.

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Isso eu ouvi muito nos tempos de movimento estudantil e, depois, como jornalista iniciante. No século passado, dentro da esquerda, rachadinha era algo de que se falava abertamente, sem filtros. Sim: mesmo para jornalistas. Vereadores e deputados estaduais do PT, do PCdoB, do PDT, explicavam que era o fundo do gabinete. Todo assessor se comprometia a deixar 10% do seu salário, o percentual podia variar, que ficava com alguém responsável pela tesouraria. Muita gente vista como muito séria, muito boa, tinha seu Queiroz. O argumento que usavam para dizer que o troço era limpo é que aquilo era verba pra luta política. Para atividades do mandato, para a campanha de reeleição.

Dentro da esquerda, isso vem de muito antes. Membros do Partido Comunista, no tempo em que a União Soviética existia e o mundo era dividido em dois, sempre tiveram o compromisso de dar um percentual de seu salário para o Partido. Mas aqui é Brasil, né? Lá pelos anos 50, 60, uns davam, outros atrasavam e iam postergando, tinha gente que mentia sobre quanto ganhava. De vez em quando algum dirigente sumia com um montante. O Brasil zoneia até comunismo.

De certa forma, a esquerda usava este discurso, dos tempos lá do comunismo, para justificar suas rachadinhas já no Brasil da Nova República. E, olha, é bom separar o discurso das coisas como de fato eram. Havia gabinetes em que o vereador realmente não tinha grana. Era tudo contado. Mas havia aqueles que faziam com esse dinheiro do reparte o que queriam, sem pudor, e não paravam nas rachadinhas.

Em essência, a diferença entre rachadinha de esquerda e rachadinha de direita é nenhuma. Porque também na direita tem quem junte dinheiro para as atividades do mandato, para fazer política. E, também na direita, há quem ponha dinheiro no bolso. As pessoas tem um pouco a ilusão de que seu lado é mais honesto do que o outro. Não tem rigorosamente nenhum indício de que isso seja verdade.

Eleitores muito convictos de direita acham que há algo moralmente corrupto no ser de esquerda. A visão é de que a esquerda quer tomar o que as pessoas suam para conquistar, quer interferir em como as famílias tomam suas decisões. A esquerda quer que seus valores pra sociedade se imponham no espaço individual. Os convictos de esquerda também vêem corrupção moral no outro lado — seja na forma de egoísmo, de preconceitos, de uma insensibilidade geral com as dores do povo. A direita quer que seus valores individuais se imponham no espaço social. O jogo de percepção é esse.

Ambos estão errados nas suas leituras. Com frequência eleitores muito convictos de esquerda não conseguem perceber que o povo, quem precisa lutar mais para sobreviver, vota mais na direita. E não é por alienação política, como sugere a teoria marxista. É por convicção de valores. Eleitores de direita, os tão convictos que não conseguem compreender a esquerda, não enxergam que existe essencialmente um princípio de solidariedade que move a esquerda. Ao menos, aqueles que são honestamente de esquerda. Curioso, não é? Porque é um valor tão marxista quanto cristão.

E nada disso tudo muda um fato essencial. Rachadinha é crime. Não importa se o objetivo é fazer política ou se é botar no bolso. É apropriação indevida de dinheiro público. É corrupção e é corrupção grave. A gente, no Brasil, tende a querer passar a mão nos nossos e criticar os outros. Só que tem de ter limite. Porque é crime. Você entende por quê? Vem comigo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Um deputado federal tem direito a designar de 5 a 25 assessores com salários que vão de mil e quatrocentos a dezessete mil reais, mais ou menos. A verba que cada gabinete tem à disposição é de 118 mil reais por mês. Alguns assessores ficam no estado, atendendo eleitores ali na região de onde o parlamentar vem, outros ficam em Brasília. A pessoa eleita distribui essa verba nos salários e escolhe as pessoas com quem deseja trabalhar.

A rachadinha o que é? Você chama o assessor e diz para ele: olha, vou te contratar por dezessete mil, mas o salário de verdade é doze. Tem de me dar cinco todo mês.

A partir de fevereiro desse ano que vai entrar, um deputado federal receberá um salário de 44 mil reais. O valor aumenta todo ano, em fevereiro de 2025 vai para 46. Isso é lei, que eles próprios aprovam. É uma maravilha, né? Não precisa nem se preocupar com inflação, só vai aumentando. Mas isto é lei. É legal. Ou seja, o que a lei determina é que um deputado ganhe todo mês este valor. A lei também determina que ele tem acesso a uma verba de 118 mil reais para a contratação de assessores. A lei não é flexível. Esta verba não se destina a outros usos. Não pode usar para financiar campanha, não pode usar para pagar lanche em reunião com eleitores. É para pagar salário de gente que ajuda no trabalho do gabinete. Existem outras verbas para outros usos, mas não é o caso aqui.

Então sempre que um parlamentar pega cem reais que seja deste dinheiro, isso é apropriação indébita. Tem nome, é peculato. Quando o funcionário público ou se apropria de dinheiro e bens de que tem a posse em razão do cargo, ou desvia em proveito próprio ou de terceiro.
Tudo indica, e as evidências estão se acumulando, que o deputado André Janones cometeu crime de peculato. Na gravação que o jornalista Paulo Cappelli publicou no Metrópoles, ele fala que não acha que é corrupção, que é uma questão de repor seu patrimônio gasto em campanha eleitoral. O problema é que ele não tem de achar ou deixar de achar. É corrupção, sim. Em se comprovando que ele fez o desvio, é crime.
O Partido Liberal, do ex-presidente Jair Bolsonaro, vai pedir a cassação de Janones. Podia aproveitar e pedir a cassação de Carlos Bolsonaro, na Câmara Municipal do Rio, e Flávio Bolsonaro, no Senado Federal. O que temos sobre a rachadinha de Janones é uma gravação dele falando que queria fazer. O que temos dos filhos Zero Um e Zero Três é muito mais do que isso. Corrupção igualzinha.

Quem já acompanhava política lembra daquele tempo, no século passado, quando o PT tinha a luta contra a corrupção como uma das suas bandeiras mais importantes. Isso foi aos píncaros durante o governo Fernando Collor. Durante o governo Fernando Henrique, era denúncia toda semana, a maioria nunca comprovada. Bastava acusar e ver o que colava. Claro, desde o Mensalão a coisa mudou. Agora falar de corrupção é moralismo.

Pois bem, inacreditavelmente a bandeira de Jair Bolsonaro foi a mesma bandeira anti-corrupção. Inacreditável mesmo, né? Vindo de uma família que compra mais de uma centena de imóveis pagando um bom naco em dinheiro vivo, que cobra rachadinha até de vendedora de açaí,
O fato é que, após o desastre da Lava Jato, o desastre ainda maior que foi a ida de Sérgio Moro pra política e a lenta tentativa de golpe de Estado que foi o último governo, a ideia de combater corrupção foi suspensa. O Brasil ganhou outras prioridades, como ter um governo que se responsabiliza por combater desmatamento da Amazônia, manter as pessoas sem fome e, se uma pandemia vier, providenciar vacina assim que possível. Se nesse meio tempo não tentar entrar em guerra com os outros dois poderes e respeitar o processo eleitoral, preenche a cartela do bingo. Quando a gente não tem nem o básico garantido, o básico vira produto de luxo.

O problema das rachadinhas não é se são crime ou não, se é corrupção ou não. O problema das rachadinhas é que é o tipo mais trivial de desvio de dinheiro público, o mais à mão. E, de longe, o que menos faz dinheiro. Tem muitas outras formas de desviar que desviam muito mais. A vitória de Lula, na última eleição, não foi uma vitória só dele. No alívio pela derrota do golpista, veio também a vitória do Centrão. Porque ao PT não interessa mais tocar no assunto corrupção, todo mundo tem pânico da coisa. E o Centrão tem poder como nunca, o pior do Centrão tem poder como nunca. O resultado é este aí.

Como a gente lida com o PL pedindo a cassação de André Janones? Se André Janones for cassado, a pedido do PL, como a gente processa isso? Janones precisa ser investigado. Deve ser investigado. Rachadinha é crime. Corrupção é crime. Não deveríamos tolerar corrupção na política. É absurda a ideia de criarmos uma tolerância a corrupção. Mas, por isso mesmo, é absurda a ideia de que ele sofra uma punição enquanto os filhos do ex-presidente posam de bons moços.

O Brasil, tudo indica, não está preparado para esta conversa. A gente ainda está traumatizado, a democracia está ferida, e temos investigações ainda muito graves para tocar. Investigações que envolvem generais, que envolvem tentativa de ruptura institucional, que envolvem centenas de milhares de brasileiros mortos por negligência. Até lá, o que impera é hipocrisia. Uma hora a gente vai precisar voltar a falar de corrupção a sério. Um país direito não pode considerar desvio de dinheiro público normal. Claro que acontece. Acontece até na Suécia. Mas normal, não é. Quando descoberto precisa ser punido. Exemplarmente. Não importa de que lado venha.

E, olha, não é por moralismo. É porque a gente não chama esse regime de Estado Democrático de Direito à toa. É um Estado baseado em leis. Leis quebradas levam a sanções pela natureza essencial do regime em que todos somos iguais, ora, perante a lei.

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