A guerra pode engolir o Brasil

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A questão é a seguinte. Essa província de Essequibo, que o governo Nicolas Maduro quer anexar, como o exército venezuelano poderia chegar lá? Um caminho é pelo mar. Pelo Oceano Atlântico, a frota sai ali perto de Trinidade Tobago e invade por cima. O problema é que é um pedação de terra. Pouco habitado, mas um pedaço enorme, 160 mil quilômetros quadrados. É tipo anexar o estado do Rio de Janeiro, o Paraná e levar Sergipe de troco. E a maior parte das pessoas não mora no norte. A marinha venezuelana chega lá e faz o quê? Bombardeia árvores? A fronteira territorial da Venezuela com a Guiana é ou de mata fechada ou terras muito, muito altas. Tipo o monte Roraima, na tríplice fronteira. Quase três mil metros de altura. Aquilo é tudo uma cadeia de montanhas altas. Os tanques não vão. Marchando os soldados vão ralar muito. Então, bem, tem a possibilidade de ir de avião. Os venezuelanos enchem seus MIGs de gasolina, vão lá e, sei lá. Fazem o quê? Bombardeiam Marakanata, população 170 habitantes? Uma cidade maior, de repente. Lethem, por exemplo. Tem até aeroporto. Quase dois mil habitantes. Em todo esse pedação de terra vivem 128 mil habitantes. É menos do que moram em Copacabana.

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Então a invasão tem de ser por terra. E ser por terra quer dizer entrando no Brasil, na região da reserva indígena de Raposa Terra do Sol.
O problema é o seguinte: se a Venezulea invade o Brasil com forças armadas sem permissão, isto é um ato de guerra. E o Brasil não vai dar permissão para que um país vizinho seja invadido.
Então a gente tem duas maneiras de lidar com essa história. Uma é pensar assim: Maduro não vai ser louco. Ele não vai fazer uma coisa dessas. Seria totalmente despropositado. A outra maneira é observar o que ele fez até agora. Porque, vejam, primeiro foi um plebiscito. Aí 95% dos venezuelanos que votaram disseram, sim, Essequibo é nosso. Aí ele mandou imprimir dezenas de milhares de mapas da Venezuela incluindo dois terços do território da Guiana e distribuiu para as escolas. Vai ficar por isso mesmo? Fazer a bravata, mobilizar o país, e depois dizer, sabe o que é, pensando bem, mudei de ideia?

Em termos práticos a coisa funciona da seguinte forma. As Forças Armadas Nacionais Bolivarianas têm 123 mil homens na ativa. A Guiana tem três mil homens. Não tem guerra. Se a Venezuela quiser é só ir lá pegar. Tem de passar pelo Brasil, mas é só ir pegar. A não ser, claro, que alguém saia em defesa da Guiana. Quem? O Brasil? Os Estados Unidos?
Se um conflito acontece, o Brasil não tem escolha que não reforçar nossas próprias Forças Armadas. Claro. O jogo mudou. Tem uma guerra na fronteira. Chama os generais, reforça o equipamento, faz soldado marchar pela rua. Aumenta a verba.

A gente quer aumentar a verba das Forças Armadas brasileiras depois do governo Bolsonaro? Tipo, queremos mesmo? E a gente tem de se perguntar a respeito de tiranias. Em 1982, o tenente-general Leopoldo Galtieri via a ditadura argentina em decadência, impopular. O que decidiu fazer? Uma demonstração de poder que ao mesmo tempo poderia juntar toda a população argentina num propósito único, nacionalista, patriótico. Invadir aqueles pedregulhos no fundo do Atlântico chamados Ilhas Malvinas. Na esperança, talvez, de que o governo britânico de Margaret Thatcher não fosse revidar.

Muita gente achou justificável que Vladimir Putin invadisse a Ucrânia para anexar território que considerava russo, apenas dois anos atrás. Muita gente hesita em chamar Nicolas Maduro pelo que é. Um ditador.
Pois bem, a leitura errada pode estar em rumo de colisão com o Brasil.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Em 1814, o Império Britânico adquiriu da Holanda o território que batizou Guiana Inglesa. O tratado de compra estabelecia uma fronteira ao Leste, mas não a Oeste. Os britânicos então encomendaram ao naturalista Robert Schomburgk uma avaliação das fronteiras e ele estabeleceu uma linha que separava o que era inglês do que era espanhol. A independência da Venezuela aconteceu só depois, em 1821. Os venezuelanos logo questionaram a fronteira, argumentando que seu território deveria ir até o rio Essequibo. Isso é dois terços do território da Guiana. Os ingleses, por sua vez, começaram a dizer que o território ia ainda mais além dentro da Venezuela. Conflito aberto.

Na época, a briga não era por petróleo. Era por ouro. O que os venezuelanos fizeram foi pedir ajuda aos Estados Unidos e, em 1895, o Congresso americano baixou uma resolução exigindo que os ingleses se submetessem uma arbitragem independente. Com medo de uma declaração de guerra, eles toparam.

É importante contar essa história. A Venezuela pediu aos americanos que arbitrassem o conflito. Os americanos ameaçaram entrar em guerra com os ingleses se eles não topassem a arbitragem. Aí uma comissão foi formada, os documentos foram estudados, e no fim o grupo independente decidiu que a linha de Scholomburk deveria ser respeitada. Nem os ingleses ganhavam mais terra, nem os venezuelanos. Foi em 1899. Tem mais de um século. É justo?

Gente, toda fronteira é artificial. Toda fronteira é fruto de uma história, de uma briga, de uma tomada de terra na marra por um ou por outro. O Brasil fez diversas arbitragens, ganhou umas, perdeu outras. A natureza do nosso país é de que a gente não entra em disputa territorial. Governos de direita e de esquerda, autoritários e democráticos entram e saem, a gente não insufla esses desejos, consideramos nossas fronteiras consolidadas. E tem mais. Partimos do princípio de que as fronteiras de nossos vizinhos também estão consolidadas. A Venezuela não é assim. Lá, o Essequibo é assunto desde o jardim de infância.

No ano que vem, Nicolas Maduro vai enfrentar uma eleição. O governo bolivariano força a barra nas eleições, muda as regras, prende opositores, cerceia imprensa, dificulta a vida de eleitores, faz voto de cabresto, frauda urna, tudo isso faz pelo menos quinze anos. Ainda assim, Maduro tem razões para acreditar que corre o risco de perder para a chapa liderada por Maria Corina Machado. Ela é simpática e, principalmente, ela não é Maduro. Teoricamente, ela está proibida de concorrer por cargos públicos. Mas o problema é o seguinte: foram realizadas eleições primárias para escolher o candidato da oposição. 2,5 milhões de pessoas foram às urnas votar. E quase 95% dos eleitores escolheram Maria Corina.

É muita gente pruma eleição que serve pra escolher candidato e não tem voto obrigatório. O que Maduro esperava, no domingo, era fazer uma demonstração de força. Mostrar que ele também tinha capacidade de mobilizar uma quantidade muito grande de eleitores. Foram 2,2 milhões de pessoas votar. Menos do que Maria Corina levou. E o resultado, esse de que 93% dos venezuelanos são favoráveis a anexar um pedação da Guiana? Bem, não quer dizer nada. É o que todo mundo no país acha. Maria Corina também diz que o Essequibo é venezuelano.

A Venezuela estava melhorando. O governo americano retirou sanções, permitindo que Caracas voltasse ao mercado internacional, vendendo petróleo. Tudo em troca de eleições livres no ano que vem.

O jeito otimista de olhar para a coisa é simples. Maduro está fazendo teatro. O problema é que às vezes esse tipo de teatro encurrala o ator e ele não vê saída que não agir. Seu governo não tem muitos amigos no mundo. Tem os russos, tem os chineses. Tem o Brasil. E é bom que o Brasil, neste momento, seja um país com interlocução. Com capacidade de ir lá, ouvir e ser ouvido.
Os americanos, Washington, não tem qualquer apetite para entrar num conflito armado no continente americano. Isso não traz popularidade para Joe Biden, que enfrenta uma eleição no ano que vem. Uma eleição difícil.

Este é um momento muito delicado do tempo em que vivemos. Quando cada ditador se vê no direito de fazer uma guerra de anexação, as possibilidades de aumento de conflitos no mundo se ampliam. Este já era o medo após a invasão da Ucrânia. Putin dizia que seu objetivo era evitar influência europeia e intimidar o avanço da OTAN. Conseguiu ampliar a OTAN e botar a Ucrânia na boca de se tornar país membro da UE. Como estava evidente que aconteceria. Se os chineses avançam na direção de Taiwan, o mundo vai passar por um sufoco sem tamanho. Perigo de guerra grande.

E estamos, aqui, nós, com nossa versão reduzida deste mesmo conflito. Com o risco de o Brasil ter de reforçar seu Exército num momento em que reforçar o Exército é uma ideia terrível. Com risco de sermos jogados no meio de uma guerra de fato. É bom, muito bom, termos diálogo aberto com Caracas porque isso nos ajuda a impedir que o pior aconteça.

Mas uma lição fica. Quando um país invade o outro pra tomar território, não dá pra apoiar. Quando um ditador se instaura, não importa se a cor da camisa é vermelha ou azul. Ditador é ditador, ditador é perigoso, ditador vizinho a gente pode até tratar com a cortesia dos diplomatas, mas segue sendo ditador. Ditador longe é ruim, ditador perto é pior porque contagia.

Eles mudam os slogans mas são todos iguais.

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