Aquele abraço do Moro em Dino

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Uma série de fotografias mexeu com as redes, hoje de tarde. Foi o abraço caloroso que o senador Sérgio Moro deu no ministro da Justiça, Flávio Dino. Dino, claro, estava ali para ser sabatinado junto com Paulo Gonet. Gonet foi indicado pelo presidente Lula para assumir a procuradoria-geral da República e, Dino, para se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal.
Olha, podem ser adversários políticos mas o abraço e o sorriso são uma boa notícia. Quaisquer gestos de civilidade deste tipo são boa notícia. Quanto mais o Brasil assistir a cenas de adversários políticos conversando de forma amistosa, melhor.

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Quando este vídeo for ao ar, Dino e Gonet ainda não terão sido aprovados. Tudo indica que é o que vai acontecer — se não for, aí é uma derrota tão surpreendente pro governo que vai ter Ponto de Partida extra. Só que não está no roteiro. Absolutamente nada sugere que a coisa caminhe para um lado distinto do esperado. Dino deve tomar assento no colegiado do Supremo logo no início do ano.

Mas tem uma felicidade outra neste encontro. Porque os dois são personagens fundamentais para compreendermos o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Dino vai ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal mais poderoso que o Brasil jamais teve. Um Supremo que tem papel na organização política. Numa edição recente do Meio Político, o cientista político Christian Lynch ensaiou um nome para esse novo arranjo. É o judiciarismo de coalizão.

Antes a governança se dava num modelo que chamávamos de presidencialismo de coalizão. O presidente não conseguia se eleger nunca com maioria no Congresso. Por isso, precisava organizar uma coalizão de governança, arregimentando partidos e políticos, como se faz num parlamentarismo. Hoje, continua funcionando assim, mas não basta. O Congresso tem se queixado muito de que não é mais deste jeito. Mas, sem levar em conta as decisões no STF, não dá mais para construir um governo estável.

O novo arranjo de governança da República brasileira ainda não está sedimentado. Mas a indicação de Flávio Dino é mostra de que Lula entende que o STF, antes de tudo, é um dos locais nos quais é preciso contar com aliados políticos confiáveis. Já havia sido este seu critério na escolha de Cristiano Zanin, Dino vai pelo mesmo caminho e com aposta dobrada. Não é mulher, mas é pardo, e nada disso importou como critério. Lula passou ao largo das questões de representatividade da sociedade. Porque, a seus olhos, o Supremo é lugar onde precisa também criar sua coalizão.
O Congresso quer impor limites. Cortar aqui nas decisões monocráticas, estabelecer ali mandatos que não sejam vitalícios e isto não é sinal de que o Supremo vai perder algo. É sinal, na verdade, de que o Congresso também vê a Corte como parte do jogo. Ou seja, a gente já tem um cheiro da organização política que sai do Brasil após a profunda crise democrática que tomou os últimos dez anos. As regras ainda não foram estabelecidas. Mas o jeitão a gente já conhece.

Bem-vindos ao Brasil do judiciarismo de coalizão.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
O Brasil não encontrou ainda sua estabilidade. A gente está em ano que não é eleitoral, então fica fácil esquecer. Mas a briga pela democracia não acabou. E é por isso que haver imprensa é importante. Mas imprensa existe quando quem consome imprensa investe nisso. Neste conhecimento, neste debate. Assine o Meio. É muito importante. E, se você já assina, deixa eu te falar. Dá para dar uma assinatura de presente neste Natal. Dê o Meio de presente. Pra gente, vale muito. Obrigado.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Como é que chegamos aqui? Algum dia a história da Lava Jato vai ter de ser melhor contada, mas aquele não era um sistema único, uma máquina com peças distintas que operava com o mesmo objetivo comum.
A Lava Jato de Curitiba era um motor de três peças, com de um lado a força-tarefa dos procuradores federais e, do outro, o juiz Sérgio Moro. Tinham o apoio à distância de uma das turmas do Tribunal Federal Regional da quarta região, em Porto Alegre. Pôs todo seu foco nos governos de Lula e Dilma. Nos governos do PT. Enquanto protegia por exemplo tucanos, ia com todas as armas contra petistas. Ali o alvo era ideológico.

No Rio de Janeiro, a Lava Jato foi uma operação bastante mais específica e local, com particular atenção para os governos estaduais tocados pelo então PMDB, com no centro o governador Sérgio Cabral Filho.

Em Brasília, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ambicionou reconstruir todo o sistema político brasileiro. O foco dele era corrupção, mas sua visão evidentemente ia além, Era desmontar a elite política do país. O alvo dele não era o PT ou o MDB, era tudo.

E havia o STF. Os ministros do Supremo haviam ganho apenas uns anos antes um novo tipo de notoriedade com o julgamento do Mensalão. Após o Mensalão houve 2013, e 2013 mostrou que havia uma profunda insatisfação da sociedade com a condução das políticas públicas. A mistura daquela celebridade ganha com um certo anseio de atender à demanda popular por mudanças moveu o Supremo e o Supremo decidiu condenar. E condenar. E condenar.

Mas é importante entender que havia projetos diferentes. No Sul a turma queria enquadrar o PT, queria tirar no tapetão a esquerda do jogo. No Rio de Janeiro, o juiz Marcelo Bretas, entre fotos de musculação no espelho da academia pro Instagram e a prisão continuada de ex-governadores peemedebistas, parecia querer aparecer. Em essência isso. Fama e glória. Janot era um Nero querendo incendiar Roma para começar tudo do zero.

O Supremo via crimes reais, crimes que aconteceram e de um tipo que raramente foram julgados no Brasil. Sabe, um dos problemas mais graves que temos na democracia brasileira é também um dos mais básicos. Aqui, no nosso país, a Constituição garante direitos iguais a todos. Mas, na rua, não é assim que funciona. Quem tem seus direitos constitucionais garantidos são aqueles capazes de pagar advogados. Quanto melhores os advogados, maior a certeza de que a Justiça será garantista. Em essência, no mundo real, isto quer quer dizer que quem tem dinheiro ou tem poder encontra um Poder Judiciário generoso. Quem é pobre vai em cana às vezes sem sequer ter audiência de custódia.

Na Lava Jato o Supremo viu uma janela para resolver isso. Sentia a pressão das ruas por responsabilização. Gostava de ter o papel de herói. Visto de dentro do Palácio do STF, lá por 2015, 2016, o capítulo do livro da história que parecia estar sendo rascunhado sugeria que a corte botaria a República nos trilhos. Só que, para isso, precisaria fazer algumas mudanças na maneira como se compreendia a Constituição. Uma delas, talvez a principal, era que com condenação em segunda instância o réu já deve ser preso.

Acontece que, quando as peças se encaixam, o Supremo não tinha de fato o controle do jogo. O que o Procurador Geral da República queria fazer era incendiar Roma. O Rio não tinha dimensão nacional. Curitiba queria a esquerda fora do jogo. E parte da sociedade escolheu, abertamente, votar contra a essência da República. Um dos livros recentes do cientista político alemão Yascha Mounk se chama O Povo Contra a Democracia. Pois é. A gente viveu isso e intensamente.

Não era o que o Supremo queria. Não era nem o que Rodrigo Janot queria. Quem ganhou essa batalha interna da Lava Jato, de certa forma, foi Sérgio Moro. Mas, principalmente, quem ganhou foi quem achava que o problema estava na Constituição. A Constituição brasileira se baseia em dois princípios essenciais que são um problema para o bolsonarismo.

O primeiro é o de que, sim, somos todos iguais perante a lei. Que temos direitos inalienáveis e que, se há desigualdades profundas na sociedade, a missão que cada governo recebe da Constituição é a de reduzi-las. É de garantir o acesso a direitos. O segundo problema desta Constituição é de que ela é democrática. Isso quer dizer que todas as correntes políticas têm direito a fazer parte deste jogo. Inclui a esquerda.

Bem, veio Bolsonaro. Ele tentou armar um golpe por onde deu. Tentou de todas as formas até o cúmulo do 8 de janeiro. O Supremo improvisou muito. Anulou o processo contra Lula e o deixou não só livre como apto a disputar a eleição. Como a procuradoria-geral da República havia sido capturada pelas forças antidemocráticas, armou um inquérito de ofício que fica de pé porque, no fim das contas, o Supremo é que define o que fica constitucionalmente de pé. E este inquérito permtiu que a democracia brasileira lutasse contra quem desejava derrubá-la.

Improvisos novos que impediram que as piores consequências aos improvisos antigos ocorressem. A lição é que não tem atalho. Essa não é uma lição que a gente assimilou. Mas o ponto é que uma decisão monocrática, uma coisa intempestiva de vamos mudar a leitura da Constituição agora, e desmudar ali na frente, nada disso resolve a desigualdade na sociedade e não resolve o fisiologismo na política. O Poder Judiciário não tem o poder de resolver a República. Mas, agora, o Poder Judiciário ganhou um assento no jogo de poder.

É um Judiciário muito poderoso. Mais poderoso do que jamais foi. Arranjos de governabilidade são aquilo que a história nos entrega. São fruto da dinâmica do jogo como ele é jogado. Nada disso foi planejado por ninguém — cada jogador pôs suas peças no tabuleiro, movimentou, os acontecimentos se deram. A missão de todo mundo, agora, é recolocar a democracia nos trilhos. E isso inclui o fato de que este Judiciário poderoso precisa voltar a seguir os ritos essenciais de Justiça. Vai ter um procurador-geral novo. Um que, tudo indica, será funcional. Será normal.
Sergio Moro e Flávio Dino se abraçando, sorrindo. Você viu, né? Talvez seja mostra de que um novo equilíbrio comece a ser alcançado.

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