O ano em que a democracia viveu

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O ano está se aproximando de acabar. Temos mais duas semanas e pronto. Há um ano, exatamente um ano, o Brasil lidava com o silêncio de Jair Bolsonaro que não reconhecia sua derrota eleitoral. Vez por outra saíam do Palácio do Alvorada ou o general Augusto Heleno, ou o general Braga Netto, para dizerem para os aloprados ainda acampados à beira dos quartéis Brasil afora “aguenta aí”, “algo va acontecer”.

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A gente não sabia o que era. No dia 30 de dezembro, quando já era de tardinha, Bolsonaro embarcou para a Flórida no avião presidencial. E lá ficou uns tantos meses. Aí, no dia 1º, Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse como presidente da República para seu terceiro mandato. Agora que completa seu nono ano como presidente, já é o segundo na história da República em longevidade. Só Getúlio Vargas, que foi presidente por 17 anos e meio, o bate. Com uma diferença muito relevante. Lula foi eleito pelo voto popular para cada um dos mandatos de quatro anos que exerceu e exerce. Getúlio governou sem jamais ter sido eleito por 15 dos seus anos de mando.

Esta não é uma diferença irrelevante.

Hoje nós sabemos que, a partir de novembro do ano passado, enquanto Bolsonaro se recusava a reconhecer a derrota eleitoral, enquanto estava mudo no Palácio do Planalto, muitas reuniões aconteceram. Reuniões que envolveram, mais de uma vez, os comandantes das três Forças Armadas. Os comandantes foram instados a dar um golpe de Estado em favor de Bolsonaro. E, dos três, um deles, o almirante Almir Garnier, disse que topava. Nada aconteceu, até porque não tinha como acontecer nada sem o Exército.

Mas um golpe de Estado foi preparado. Havia, como em todo golpe de Estado, um arcabouço legal, aquilo que passamos a chamar de minuta do golpe. Seria o ato institucional, descoberto dentro da casa do ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, que fechava o TSE, prendia ministros do Supremo, tudo em nome da democracia. Pois é. Eles são sempre assim, os golpistas. Rasgam a democracia em nome da democracia.

O bolsonarismo sofreu uma desarticulação profunda no primeiro semestre do ano passado. Começou quando o jornalista Guilherme Amado publicou no site Metrópoles a história de que um grupo de empresários falava abertamente sobre a possibilidade de um golpe para impedir que Lula se tornasse presidente, falava tudo num grupo de WhatsApp. A história teve consequência. O ministro Alexandre de Moraes ordenou que a Polícia Federal batesse à porta dos empresários com mandados de busca e apreensão.

Na época, muita gente argumentou, e com razão, que havia abuso. Era um bando de gente fazendo bravatas. Mas Alexandre tinha um objetivo bastante específico: assustar. Ali, os empresários graúdos que apoiavam Bolsonaro entenderam que o Supremo estava acompanhando a coisa de perto. Falar de golpe, financiar operações que poderiam levar a um golpe, se tornaram uma operação de alto risco. Mesmo empresários que não estavam no grupo de Zap se assustaram.

O resultado é que o candidato a reeleição Jair Bolsonaro entrou no segundo semestre com muito menos recursos à mão. Até outubro, uma nova rede de financiamento foi montada. Agora, era com empresários de menor porte, em geral gente com dinheiro do Centro Oeste, do interior de São Paulo, estados do Sul. Mas isso demorou alguns meses para acontecer. É por isso que o Sete de Setembro de 2023 foi menor do que o de 22. É por isso que, quando a polícia começou a investigar a ação golpista, este ano, o que encontrou foi esse tipo de financiador. Dono de empresa de ônibus, de supermercado, de transportadoras, gente com algum dinheiro do interior do país.

Aí veio o dia 8 de janeiro.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

2023 foi um ano bom pra democracia brasileira, mas foi muito ruim para o jornalismo brasileiro. A maioria dos veículos terminam o ano com menos assinantes do que tinham em dezembro de 2022. Isso quer dizer menos repórteres, menos informação. Isso quer dizer mais espaço para a desinformação. Nós temos duas modalidades de assinatura no Meio. Custa 15 reais por mês, só quinze reais a mensal. Ou 150 por ano. Dois meses saem de graça. Jornalismo precisa dos seus leitores, dos seus espectadores. A gente precisa de vocês.

E, olha, se você fizer a assinatura anual até o dia 31, ganha o livro das charges de 2023. Livro físico, mesmo, com todas as charges que o Meio publicou durante o ano. É quase uma historinha ilustrada de 2023. O livro vai ser enviado no meio de janeiro.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

O oito de janeiro foi uma insurreição contra a República. Foi uma revolta perdida. Foi um golpe mambembe. Foi a Intentona Bolsonarista.

Os palácios do Congresso, do Supremo e do Planalto, as sedes dos três poderes, foram invadidas. Fizeram do carpete azul no Senado Federal um escorregador. Estilhaçaram os vidros do Planalto e do Supremo. Rasgaram um Di Cavalcanti, destruíram um relógio do século 18, espatifaram no chão o busto de Rui Barbosa. E levaram, roubada, a cópia do original da Constituição de 1988. Urinaram, defecaram dentro do STF.

A destruição parece aleatória, mas não é. Foram, cada um deles, gestos de repulsa a uma mesma ideia de Brasil. O Parlamento é o poder que simboliza a democracia, é onde as correntes de opinião da sociedade estão representadas em conjunto. As Mulatas do Di Cavalcanti são símbolo da cultura sofisticada que desenvolvemos ao longo do século 20, mas é arte moderna. Foge àquilo que a turma do Brasil Paralelo chama de arte de qualidade. Por eles o mundo tinha parado antes do Iluminismo. O Rui, o busto do Rui. Rui Barbosa que é o pai da ideia de República com democracia. O sujeito que passou o terço final da vida política combatendo a presença de militares no poder. Ele sabia que era um problema. Ele sabia que ia dar em problema, e passou o século 20 dando em problema. Eles roubaram a Constituição. É claro que eles roubaram a Constituição. Eles queriam que a Constituição desaparecesse. Queriam uma nova ordem.

A sugestão, aqui, não é que nada dessas coisas tenham sido de caso pensado. Não foram. Quem espatifou o busto do Rui talvez sequer soubesse da sua campanha civilista em 1910. Se levaram a Constituição foi por vandalismo. O ponto é que cada um destes prédios é repleto mesmo de símbolos, símbolos que representam as muitas ideias que resumem a Nova República. Esse apreço à arte que os nossos melhores criaram, a história que nos trouxe até aqui e, sim, a Constituição. Atacar os prédios, destruir o que está lá dentro, é atacar a ideia de Brasil que propusemos coletivamente em 1988.

Quando um povo, uma gente que compartilha de uma mesma cultura e uma mesma história se reúne num projeto de autogestão democrática, a primeira coisa que faz é estabelecer uma Constituição. Ela tem este nome porque ela constitui o Estado. Ela delimita as regras pelas quais o Estado vai se organizar. Diz, antes de tudo, que as pessoas, cada uma das pessoas que vivem naquele Estado, têm tais direitos e que, nisso, o Estado tem de se conter muito antes de meter o dedo. Estabelece, então, quais são os poderes, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, como seus representantes são escolhidos, como poderão construir leis. A Constituição determina para que o Estado serve, que objetivo ele deve perseguir. E a nossa diz que o objetivo é uma sociedade mais igualitária, uma em que todos, não importa o CEP em que tenham nascido, têm direito a educação, a saúde, diz que teremos um cuidado muito especial com quem já estava aqui antes de os portugueses chegarem. Diz que o meio ambiente que ainda está intacto, as matas, os rios, têm de ser muito bem cuidados.

Constituição não é um nome aleatório que damos a um conjunto de leis, a um documento, a um livro. Constituição é o que constitui o que o país é. Ela tem valores. E a turma do dia 8 não quer o país que a Constituição criou.

A invasão aos palácios dos três poderes não foi apenas uma tentativa de golpe de Estado mambembe. Foi um ato de repulsa ao que o Brasil da Nova República foi e continua sendo. A tendência de todos nós, jornalistas, é aproveitar esse momento de fim de ano para falar sobre o primeiro ano do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

É certo. Esta avaliação é necessária. Mas o mais importante é uma coisa só. Em 1º de janeiro de 2023, Lula subiu a rampa do Planalto e tomou posse. Muita gente trabalhou para que o presidente eleito pelo voto popular não conseguisse tomar posse. Ele tomou, o dia 8 passou, Lula segue sendo presidente. A democracia sobreviveu.

Só não dá para esquecer que ele foi eleito por um cisco de vantagem. O outro candidato, o que quis dar um golpe de Estado, o que insuflou um golpe de Estado, só perdeu por muito pouco. Quantos de seus eleitores terão perdido o interesse no regime democrático? A gente precisa recuperar esses brasileiros. Uma casa dividida não fica de pé.

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