Um ano de Lula: mais reconstrução que união

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Não é exagero algum falar em reconstrução pós-bolsonarismo. Em muitos sentidos, o primeiro ano de governo Lula agiu nesse sentido. Seja para restaurar algumas políticas públicas, remontar equipes deliberadamente destruídas, recolocar o Brasil no cenário internacional. A união é tarefa ainda mais complexa. Não há fórmula fácil e Lula vem derrapando em algumas oportunidades. É o verdadeiro desafio para 2024.

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Dezembrou, né, amigas e amigos?

Muita gente já fazendo mala, combinando o cardápio da ceia, escolhendo a cor da calcinha e da cueca pra noite do ano novo, decidindo como festejar.

Eu tenho sentimentos conflitantes com a dezembrite aguda que nos acomete. De um lado, acho uma delícia a perspectiva da festa, do encontro familiar. Por outro, fico profundamente angustiada com a maneira como as pessoas enlouquecem, num misto de exaustão com excitação.

Mas isso aqui não é “meu querido diário”, não. Só falei um pouco desse sentimento porque estou sentindo algo parecido politicamente.

Tem algo bastante palpável de alívio de um ano em que, passado o assombro com o 8 de janeiro e suas consequências imediatas e o horror da extensão do genocídio ianomâmi, voltou a respirar algum nível de normalidade. Não houve assessores governamentais fazendo sinais supremacistas, ministros se pronunciando com máximas nazistas, presidente zombando de pessoas morrendo asfixiadas.

Agora, o Brasil seguiu sendo Brasil, essencialmente. Então, a brutalidade policial foi abundante, o Centrão continuou sapateando na nossa cara, as catástrofes ambientais ainda fizeram muitas vítimas, os militares golpistas escaparam de punição.

O presidente Lula se elegeu e logo apresentou um slogan e um propósito: União e Reconstrução.

Duas tarefas monumentais, trabalhosas, custosas. Cá entre nós, acho que dá pra afirmar que ele foi melhor em uma do que outra.

Entre as muitas entrevistas que fizemos no Meio ao longo do ano, ficou evidente que falar em reconstrução não era mera retórica demagógica. O aparelho estatal havia sido, sim, destruído. Talvez o exemplo mais concreto seja o do meio ambiente.

A ministra Marina Silva, que está longe de ser uma populista que exagera fatos pra se beneficiar, falou do sucateamento dos órgãos de controle, da falta de pessoal, do desmonte que foi promovido intencionalmente pelo governo anterior.

Não à toa, embora tenha algumas conquistas absolutamente relevantes pra apresentar, ainda lida com queimadas, com devastação do Cerrado, com problemas dificílimos de enfrentar enquanto remonta sua estrutura. Mesmo assim, dá pra dizer que o governo foi reconstruindo, sim, sua reputação ambiental, inclusive no plano internacional.

Uma destruição menos tangível, mas igualmente grave, foi a da própria política tradicional. O bolsonarismo não foi responsável sozinho por isso, mas aprofundou uma crise das relações entre os poderes de uma forma acelerada e descontrolada.

Quando se absteve de fazer política partidária e delegou a gestão do orçamento integralmente ao Congresso, Bolsonaro empoderou uma das vértices do triângulo que sustenta o Brasil a tal ponto que o Executivo se viu quase refém do Legislativo em 2023. Lula teve de dar muito mais do que o razoável a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para poder fazer o mínimo.

Da mesma forma, ao atacar o Judiciário sem clemência, minou sua credibilidade em larga medida, o que não é bom em nenhum aspecto pra democracia. A reação veio forte e hoje o Supremo Tribunal Federal se vê obrigado, também pelos seus próprios vícios, a buscar novamente seu lugar político no mundo.

E ainda assim, com tudo isso, Lula e seus ministros se esforçaram pra reconstruir pontes e diálogos. Voltar a fazer política. Com alta dosagem dos problemas de sempre, mas política.

Mas há uma destruição promovida pelo bolsonarismo que eu considero muito simbólica tanto de alguns sucessos do governo Lula como do maior de seus fracassos nesse primeiro ano.

Um dos filmes de fim de ano do governo fala de reconciliação. Mostra um irmão chegando na casa de outro, na noite de Natal, para visitar o sobrinho recém-nascido. Aparentemente, eles estavam brigados. O rapaz que chega diz ao anfitrião algo como “é Natal” e, depois, ao mostrar o braço, diz: “E eu tomei a vacina”.

Uma cena de união se segue. O vídeo é parte de duas campanhas simultâneas. A primeira é um “movimento nacional pela vacinação”. Eu ouso cravar que nada foi mais nocivo nos anos de Bolsonaro pro Brasil do que a condução da pandemia.

Além dos 700 mil mortos, dos quais muitos poderiam ter se salvado com o simples “fique em casa” promovido pelo governo, que dirá com a vacinação, Bolsonaro acabou com a tradição brasileira de se orgulhar de se vacinar. A gente não deve jamais se esquecer disso. E da reconstrução do SUS e da política de vacinação promovida pelo atual governo.

A segunda campanha em que o vídeo de natal vacinado está inserida é mais ampla, sob o slogan “O Brasil é um só povo”. É parte da união almejada pelo governo. E é onde Lula ainda não se achou. É disso que que quero tratar aqui.

Antes, deixa eu dar um recado. Esta colunista estará de férias e, assim, o nosso Cá Entre Nós volta só dia 16 de janeiro. Vou ficar com saudade da nossa troca — sim, eu leio os recados e comentários de vocês, mesmo os mais agressivos, que raramente pintam.

O presidente Lula e sua base mais engajada têm um enorme dilema. Como falar de união com quem, na visão desse grupo, cometeu atos tão graves, né? Ou aderiu a quem os tenha cometido?

Lula assumiu o poder com a militância, e todos que enxergaram tudo de absurdo que o antigo governo praticou, gritando “Sem anistia”. Mas falando em governar pra todos, em encerrar o período do ódio, em união, afinal.

De um lado puramente prático, é óbvio que cumpriu a promessa de não fazer distinção entre os brasileiros. Os programas e as políticas acertadas, por mais direcionadas que sejam, beneficiam o país. Uma economia pujante é boa pro banqueiro e pro operário. Uma política inclusiva pra pessoas em situação de rua melhora a vida dessas pessoas, tão excluídas, e de toda a cidade onde elas estão. Uma política séria de proteção do meio ambiente com desenvolvimento sustentável é boa pro agronegócio e pro indígena. Da mesma forma, políticas equivocadas nos afetam a todos, igualmente.

Só que política se faz de ações e também de palavras, de retórica.

No começo do ano, com o 8 de janeiro, era natural que se subisse o tom contra o bolsonarismo e seus efeitos nefastos.

A eleição de 2022 foi tão intensa que nos contaminou, exauriu, mudou nosso jeito de enxergar o mundo.

Já seria difícil sair do palanque sem a tentativa de golpe.

O 8 de janeiro agravou isso, porque vimos o que a retórica golpista e violenta era capaz de produzir. Lula falou grosso com o bolsonarismo, Flávio Dino também. O STF acompanhou.

Daí, veio o caso das joias – parece que faz 10 anos, né? Mas foi dia desses. Novamente, um prato cheio pra explorar politicamente, considerando que uma das estratégias do bolsonarismo era acusar todo mundo de corrupção e fingir que Bolsonaro era honesto.

Agora, some a isso o fato de que o bolsonarismo sobrevive da provocação, da mentira, do ódio mesmo. É muito, muito difícil combater esse tipo de exército com armas diferentes, mais “nobres”, por assim dizer.

E Lula cai na armadilha, insistentemente. Estamos em dezembro de 2023 e o presidente fala ora em união e paz, ora chama Bolsonaro de facínora.

É mentira? Olhemos o mais recente Datafolha. Para os lulistas e petistas, que são cerca de 30% dos brasileiros, pode ser música para os ouvidos. Para os 25% de brasileiros que se declaram bolsonaristas é ofensa pura. E para os outros 45%, menos engajados?

É difícil saber mesmo se eles ouvem Lula, se estão interessados no que ele tem a dizer. Cerca de 90% das pessoas entrevistadas disseram não se arrepender de seu voto em 2022. Ou seja, o Brasil segue profundamente dividido – e quase ao meio.

Nesses 45% que não se declaram nem petistas nem bolsonaristas tem de tudo. Tem gente que votou em Bolsonaro por causa dos benefícios que ele concedeu no ano eleitoral. Tem gente que votou no Lula porque perdeu parente na pandemia e não concorda com o que Bolsonaro fez. Tem gente que só presta atenção nas vésperas da eleição e votou sem qualquer convicção. Mas, no geral, as pessoas seguem mais ou menos com o espírito de outubro de 2022.

Isso é um problema duplo pra Lula.

De um lado, ele tem o imenso desafio de fazer colar nele as melhorias que seu governo eventualmente promover. Aparentemente, as pessoas estão sentindo, sim, alguma melhora, mas não atribuem ao governo federal esse quadro positivo. O caminho pra isso é uma comunicação mais efetiva dos feitos do governo. Mas como disputar atenção com memes e fake news, sem apelar pra acusações e fórmulas parecidas?

Não me parece que Lula ou Paulo Pimenta tenham a resposta. As conversas com o presidente têm baixa audiência. O noticiário em geral tende a privilegiar o negativo, o que dá errado — é da natureza do jornalismo isso. E, como eu disse lá no começo, o Brasil segue sendo Brasil, Lula e seu gabinete estão longe de ser perfeitos, então, as manchetes são raramente favoráveis ou sobre as eventuais conquistas.

Mas de outro lado Lula também erra a mão quando se refere a Bolsonaro, ao passado, ou faz ironias com o grupo bolsonarista. Ninguém minimamente informado acha a essa altura que Flávio Dino seja um comunista. Mas os 25% de bolsonaristas e os 45% “indecisos” não são necessariamente bem informados. Quando veem Lula brincar que botou um comunista no STF, de má ou boa fé, tomam isso ao pé da letra. É péssimo pro governo, pro STF e pra democracia.

Quando Lula diz, em dezembro de 2023, que Bolsonaro é um facínora que espalhou o ódio, com boa vontade dá pra entender o contexto da fala. Mas os cortes de internet só existem sem contexto. Então, só ao usar o termo facínora Lula já interdita boa parte de qualquer diálogo, porque soa contraditório ao pregar a paz ofendendo o outro lado — mesmo que o outro lado seja mesmo o de um facínora. Claro que os 25% lá nem ouviriam nada do que Lula tem a comunicar. Mas tem metade do Brasil que talvez ouvisse. E está cansada demais de briga.

Isso quer dizer que se deve anistiar alguém? Esquecer os crimes?

Não, de jeito nenhum, nunca. Só que isso não cabe a Lula. Está nas mãos da Justiça.

Aliás, o que cabia a Lula ele fez questão de não fazer.

Ele passou o ano apaziguando com os militares de uma forma escancarada, exagerada e, quiçá, inadmissível. Você não ouve Lula chamar nenhum general de facínora, né? E ele nem devia mesmo. Mas perdeu a imensa chance de botar os militares numa condição verdadeiramente subalterna aos civis.

2024 vai ser um ano de eleição municipal. Vai ser um festival de acusações falsas, de mentiras, de agressividade do bolsonarismo, que não está nada enfraquecido.

Lula pode ser um cabo eleitoral natural, se os resultados de seu governo começarem a ser sentidos pela população e associados a ele. Como ele vai escolher fazer isso não está claro ainda.

Da forma como eu vejo o balanço do ano 1 de Lula 3 e a perspectiva pro ano 2, o maior desafio do presidente e da esquerda moderada é o da comunicação. É como conseguir informar as pessoas sem recorrer aos métodos criminosos da extrema direita. Não se trata de linguagem, mas de conteúdo. Dá pra fazer meme, dá pra fazer humor, dá pra fazer coisas simples, que beirem o tosco? Até dá. Não dá pra mentir, claro. Nem agredir.

A reconstrução, em muitos sentidos, está em andamento. É hora da união.

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