Choquei, Mynd8 e desinformação.

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Vamos dissecar a história do Choquei? Do suicídio de Jéssica Canedo? Existem muitos vídeos por aqui, sendo distribuídos, que pretendem explicar como as peças da desinformação se encaixam. Muitos textos. A imprensa de extrema direita parece até em festa — descobriram um pedaço da máquina de desinformação de esquerda. O Choquei de fato era um veículo, até essa tragédia, que fazia parte da estratégia de comunicação do Palácio do Planalto. Alguns ligam o canal à Mynd8, uma agência de marketing digital, e sugerem assim que há uma grande máquina de desinformação, uma grande conspiração.

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Neste ano de 2024 completo 30 anos de jornalismo. Meu primeiríssimo trabalho, em 1994, foi como colunista de uma revista de tecnologia pequena. Pouco tempo depois fui ser subeditor de uma coluna política no jornal carioca O Dia. Meio que desde sempre, na carreira, escrevi sobre os dois assuntos política e tecnologia. O que eu nunca imaginei que ia acontecer é a virada que o mundo deu em 2016, quando política e tecnologia digital meio que viraram o mesmo assunto. Um se tornou inseparável do outro.
Este mundo aqui em que a gente está, o das grandes plataformas digitais, é um jogo de espelhos. A coisa é tecnologicamente complexa e, por isso mesmo, confusa. Pouco antes do Natal, o Choquei publicou a notícia de que essa moça, de 22 anos, estava namorando o comediante, youtubber, Whindersson Nunes. Publicou junto várias capturas de tela de diálogos que jamais aconteceram. A coisa era falsa. Uma história que alguém inventou. Mentira. Jéssica foi pesadamente atacada, foi cancelada daquele jeito que a internet sabe fazer. Que a internet faz com crueldade. E ela estava num momento de depressão. Para quem luta com problemas ligados à saúde mental, às vezes circunstâncias assim podem ser fatais. Jéssica, que era uma moça anônima do interior do Brasil, não aguentou a pressão.

De quem é a responsabilidade? A primeira resposta, evidentemente, é de quem edita o Choquei. De quem edita os perfis de grande alcance que publicaram essa notícia sem checar a informação. Existem muitos perfis de fofoca desse tipo nas redes sociais. Eles dizem que não podem ser cobrados como jornalistas, afinal são apenas pessoas publicando coisas pros outros se divertirem. Só que o mundo real não funciona assim. Jornalismo não é uma coisa que você pratica se tem o diploma na mão. Jornalismo é algo que você faz quando, sistematicamente, publica informação de interesse da sociedade em algum veículo. O Choquei é um veículo e as dezenas de milhões de seguidores que tem mostra que publica o que interessa a muita gente. O nome disso é jornalismo. Pode ser bom jornalismo, mau jornalismo, pode interessar a uns e não interessar a outros, mas é jornalismo. Isso dá a você alguns direitos constitucionais como, por exemplo, o de estar imune à censura prévia pelo Estado. Mas isso também estabelece que você é responsável pelas consequências daquilo que publica. Isto que o Choquei fez se enquadra no crime de difamação. E as consequências foram muito graves.

Vamos botar as coisas de uma forma clara, aqui. Vivemos numa democracia. Isso quer dizer que conjuntamente, como povo, escolhemos nos engajar na autogestão do que é público. Do que é de todos. Todo cidadão desta democracia que chamamos Brasil tem responsabilidades. Alguns cidadãos conseguem, por conta de seus talentos, de seus atributos, por conta daquilo que herdaram, fazer com que sua voz chegue mais longe. Quando alguém presta atenção no que você fala, você tem uma responsabilidade perante esta pessoa. Quanto mais gente ouve o que você fala, maior é a sua responsabilidade. Esta é a lógica intrínseca das democracias. Não se trata apenas de uma ideia abstrata. Os direitos e as responsabilidades estão inscritos na Constituição, no Código Civil e no Código Penal.

Vivemos essa cultura de influenciadores na qual de alguma forma essa noção se perdeu. É muita gente falando muita coisa o tempo todo, com milhões de seguidores, dezenas, centenas de milhões, percebendo que aquilo é sim uma máquina de fazer dinheiro. Sem parar para ter qualquer tipo de consideração ética. Sem parar para perceber sua responsabilidade perante o debate público. Perante a sociedade. A questão, aqui, não é a opinião que você tem, para que lado da esquerda ou direita pende. A questão é uma de honestidade, de integridade, de falar o que realmente pensa, de trabalhar para manifestar opiniões que sejam embasadas em argumentos sólidos, de cuidar para ter certeza de que as informações estejam tão corretas quanto humanamente possível. De corrigir quando não está correto.

Mas como é que essas peças se encaixam? De onde o dinheiro vem? Qual a responsabilidade do público? O que são essas agências como a Mynd8? E, principalmente, qual o papel das plataformas digitais? Como funciona a máquina de desinformação e radicalização digital? O Choquei é só uma peça. Mas diferentemente do que os conspiracionistas estão dizendo, também a Mynd8 é só uma peça.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Ano novo e temos muitos planos para 2024. Ser assinante premium vai ficar muito mais interessante e eu estou doido para contar pra vocês dos nossos planos. Eu, se fosse vocês, assinava agora, fazia logo o plano anual, porque vem coisa boa. Além do mais, existe uma briga contra a desinformação na internet. Assinar o Meio é tomar lado nessa briga. E, olha, realmente falo sério a este respeito.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida. O primeiro de 2024. Feliz ano novo!

Como funciona o negócio das celebridades digitais, dos influenciadores? O que faz uma agência tipo a Mynd8? Publicidade quase nunca se vende sozinha. Chega uma marca grandona e ela quer parecer descolada com, sei lá, o público fitness. O que o marketing desta marca faz é ir lá numa agência que representa influenciadores e perfis das redes sociais. Explica que tipo de imagem quer passar, a que tipo de perfil gostaria de se associar, e lá aparece o ator tomando aquela bebida, a modelo festejando com a garrafinha.

Vamos para a outra ponta. Para um influenciador, gerir o negócio dos seus perfis não é trivial. Mas, se você por algum motivo tem seguidores na casa dos milhões, isto quer dizer dinheiro. Quer dizer também trabalho. Muito trabalho. Trabalho diário. Pode parecer que a vida é uma flauta, todo dia na praia ou na academia, só que não é. É preciso ter fotos, ter vídeos, responder aos fãs. Se não mantém atualizados os perfis as pessoas param de ver. Precisa ter coisa nova sempre, em todas as redes importantes, precisa entender o que o algoritmo está distribuindo mais.

As agências prestam vários tipos diferentes de serviço. Elas podem propor uma lista de ideias de vídeos para o influencer gravar, podem editar, podem cuidar da grade de publicação. É, pois é. Até o horário em que as coisas são publicadas define se algo vai chegar a dez mil ou cem mil pessoas. Cuidam das respostas a quem escreve. Tem gente que gosta de cuidar sozinho de seus perfis, tem quem queira compartilhar partes do trabalho, tem quem queira delegar o máximo possível. As agências podem cuidar, e em geral cuidam, também da parte comercial. Ou seja, do contato com as marcas, do roteiro das promoções. E tem agência de todo tipo. Uma como a Mynd8 é especializada neste mundo das grandes celebridades e das marcas ligadas a fofoca na internet. Tem agência especializada até em OnlyFans, nas pessoas que fazem trabalho erótico. Tem de tudo mesmo e cada nicho é um nicho.

Uma das coisas que a Mynd8 faz é promoção cruzada. Ou seja, alguém do seu portifólio vai lançar um disco? Aproveitam o espaço dos outros perfis que gerenciam para bater o bumbo. O grande problema aí é que a transparência para quem lê, para quem assiste, é zero. Muita gente acha que há algum cuidado com ética jornalística, que os assuntos foram escolhidos por alguém por critérios de relevância. Não tem ética. Nenhuma. É uma máquina de fazer dinheiro, só isso.

O Choquei foi representado pela Mynd8. Não é mais faz dois anos. Outros perfis de fofoca representados pela Mynd8 deram a mesma notícia falsa. Isso indica ação coordenada? Não. O que isso indica é que esses perfis pirateiam a informação de toda parte, inclusive uns dos outros, o tempo todo. O problema aqui é publicar sem checar. É publicar sem nenhum tipo de compromisso com a vida de ninguém que estejam atacando. Começa com um problema ético e termina com possível responsabilidade criminal. Estamos numa democracia. Somos, cada um, responsáveis por nossas ações.
A turma do Choquei ganha quanto por ano? Talvez cinco milhões de reais, talvez dez? Ganhava, né? O troço levou um tombo. A Mynd8 ganha um múltiplo. Uns cinquenta milhões de reais por ano. O Google faz meio bilhão de dólares num dia. A Meta só um pouco menos. Nesse jogo, Choquei e Mynd8 são piolhos pegando uma rebarbinha de um jogo pesadamente monoplizado. Este é um mercado viciado.

As pessoas têm a ilusão de que os perfis grandes são esses de fofoca porque esta é a verdadeira natureza do ser humano. Não funciona assim. Esses são os perfis grandes porque as grandes plataformas digitais precisam agrupar todos nós, que estamos lá dentro, em conjuntos organizados por comportamentos e opiniões previsíveis. Todo mundo que é Flamengo, todo mundo que é evangélico, todo mundo que gosta do Lula, todos que gostam de fitness. O que o algoritmo está tentando descobrir a seu respeito o tempo todo é o que mexe emocionalmente com você. O que mexe com suas paixões. O que provoca em você um comportamento dedicado. Eles chamam isso de engajamento. Por que as plataformas querem dividir as pessoas desse jeito? Porque aí sabem que propaganda mostrar pra cada um de nós que vai despertar nosso interesse.

O que um influencer grande faz, um Choquei, todo mundo que acerta a mão no algoritmo, é entregar exatamente aquilo que o algoritmo pede. Alto engajamento, emoções à flor da pele, cancelamentos a toda hora. Por que nos isolamos em tribos a partir de 2013? Porque fomos reorganizados no momento em que escolhemos conviver via algoritmos, nas redes. Funciona pra vender publicidade. Se o algoritmo orientasse outro tipo de comportamento, os perfis que fariam sucesso seriam outros e o Google ganharia só 200 bilhões de dólares por dia. É um negócio formidável, mas tem menos de metade do tamanho.

Fecha a Mynd8, abre outra no lugar. Fecha o Choquei, explode outro igualzinho. Este já é um mercado altamente regulado. Regulado por algoritmos que três ou quatro empresas globais constróem sem que ninguém consiga tocar. A questão para nós, como sociedade, é se achamos razoável que empresas privadas decidam o tom da conversa que teremos. Somos, nós, seres humanos capazes de muita irracionalidade? Claro. Somos igualmente capazes de sensatez. Criamos sociedades, democracias, justamente para estimular um tipo de comportamento. Cumpre a nós decidir se queremos continuar em sociedades assim. Mas a máquina de desinformação é essa.

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