Lula, os líderes e o povo evangélico

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A pesquisa CNT/MDA divulgada nesta terça-feira mostrou que 40% dos evangélicos ouvidos na sondagem consideram o governo Lula está pior que o de Bolsonaro.  Os evangélicos lideram no recorte dos mais descontentes, seguidos pelos mais ricos e mais escolarizados, com 38% e 36% respectivamente.

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Esse é um jeito de olhar os números.

O outro é que quase 60% dos evangélicos não acham isso, certo?

Para 33% dessa parcela da população, a gestão de Lula é melhor. E outros 24% não veem muita diferença.

Outro dado do levantamento: em outubro, era de 42% a porcentagem dos evangélicos que achavam Lula pior que o antecessor. Essa queda de dois pontos está dentro da margem de erro.

Mas, pra mim, o ponto mais importante disso tudo é que a pesquisa foi a campo entre os dias 18 e 21 de janeiro — agora, agorinha.

E por que isso é relevante? Porque já estava no noticiário a decisão da Receita Federal, recomendada pelo Tribunal de Contas da União, de suspender uma decisão do governo Bolsonaro que garantia isenção de impostos sobre salários de ministros de confissão religiosa, como pastores.

Ou seja, algo que foi encarado pelas lideranças religiosas como uma afronta, um ataque direto, etc., não afetou drasticamente a relação já delicada de Lula com as pessoas dessa fé.

E, cá entre nós, isso pode ser determinante para como o presidente e seu grupo ideológico e político vão encarar a política para essa parcela dos brasileiros daqui em diante.

Já há algum tempo estudiosos do assunto vêm batendo na tecla de que os evangélicos não representam um bloco monolítico de pensamento e de voto.

Como em absolutamente todos os casos, os cidadãos evangélicos não são “apenas” evangélicos. Suas identidades são multifacetadas. Uma mulher negra, pouco escolarizada, nordestina e evangélica pode ser, além disso tudo, muitas outras coisas, obviamente.

Isso também se aplica ao parlamentar da bancada evangélica e aos pastores da cúpula das igrejas pentecostais e neopentecostais, mas de forma muito menos nuançada.

Primeiro, porque eles fizeram de sua fé sua profissão. Então, tanto líderes evangélicos quanto deputados e senadores evangélicos atuam majoritariamente em nome desse pedaço de sua identidade.

Segundo, porque eles foram sendo empoderados politicamente desde o primeiro governo Lula — e de forma ainda mais inflada no governo Bolsonaro. E um grupo que experimenta o poder, seja ele religioso, laico, civil, militar, progressista ou conservador, dificilmente recua. É algo intrínseco da nossa organização social e até da natureza humana. Não seria diferente com eles.

O que isso quer dizer, na prática? Que a forma que os líderes evangélicos e a bancada evangélica pressionam o governo Lula e antagonizam com ele pode ser bem mais radicalizada do que a base evangélica realmente enxerga o governo Lula. Acho que vale a gente tentar entender isso mais a fundo, então, fica aqui comigo depois da vinheta.

Eu sou a Flávia Tavares, editora executiva de conteúdo premium do Meio. Se você ainda não sabe, o Meio funciona assim. A gente tem nosso conteúdo em vídeo, aqui no YouTube e nas redes, e a newsletter diária, gratuita, que chega no seu email pela manhã com uma curadoria do que é mais importante você saber do noticiário.

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Existe um senso comum meio antigo e consolidado por parte dos analistas políticos e dos jornalistas de que o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil aconteceu no vácuo da presença do Estado nas periferias urbanas e nos rincões.

Eu mesma já cheguei a repetir essa ideia e não acho que ela seja totalmente desprovida de fundamento. Afinal, muitas igrejas cumprem, sim, alguns papéis sociais, econômicos, culturais e até de segurança que governos deixam de cumprir.

Acontece que eu não percebia o grau de condescendência que essa afirmação embute. Mais que isso, de preconceito. As pessoas não se tornam evangélicas porque falta escola. Isso pressuporia que um sujeito com alto grau de instrução não poderia ser uma pessoa de fé. Não é por aí.

Além disso, um posto de saúde ou um aumento na renda do cidadão não suprem a necessidade de ligação comunitária ou espiritual que uma comunidade religiosa oferece, seja qual for a fé.

Esse insight eu tive ouvindo o teólogo e pastor Ronilso Pacheco, no podcast O Assunto, que eu recomendo bastante. Essa visão é muito importante pra desmisitificar o tipo de conexão que as pessoas têm com a igreja que frequentam.

Agora, de forma alguma, esses apontamentos derrubam o fato de que os crentes são, sim, influenciáveis por seus pastores. Por seus líderes. Da mesma forma que eu ou você somos influenciáveis às pessoas que admiramos, respeitamos, seguimos. Com o adicional de que esses líderes religiosos muito frequentemente são considerados e se consideram intermediários divinos. E, com isso, o que eles dizem pode ganhar ainda mais peso para quem ouve.

É por isso que é tão grave quando pastores e líderes religiosos escolhem falar de política em seus púlpitos, ferindo qualquer noção de Estado laico. Muitíssimo mais grave é quando fazem isso escolhendo mentir. Mentir muito. Mentir deliberadamente. E disseminar o ódio. E a gente sabe que figuras como Silas Malafaia fazem exatamente isso, nada menos que isso.

Então, quando esses profissionais da fé espalham que Lula vai perse guir os fiéis, sabendo que isso não aconteceria, eles estão construindo no imaginário desses crentes um medo infundado pra usar, depois, ali adiante pra fazer pressão por benefícios para suas igrejas, como isenções tributárias e afins. Esses benefícios sequer chegam ao grosso dos pastores, que, como aponta Ronilso Pacheco, em sua maioria pagam seus impostos. Os benefícios também não são pra massa da população evangélica, que contribui com seus dízimos e, na pessoa física, segue pagando seus impostos normalmente também.

Acontece que a bancada evangélica e os líderes religiosos perceberam, principalmente no governo Bolsonaro, mas não só, que podem expandir seu poder pra além de sua pauta corporativista. Podem ditar um rumo de país. Podem influenciar debates do agronegócio, da segurança pública, muito além da pauta de valores, por exemplo.

E os fiéis não necessariamente estão interessados nisso com tanta força.

O cidadão evangélico é um brasileiro como qualquer um de nós. Ele é afetado pela política pública de educação. De saúde. Pelas medidas econômicas. E é nisso que

Lula pode furar a bolha do cerco da bancada evangélica e de líderes mal intencionadas como Malafaia.

De acordo com a pesquisa CNT/MDA, 55,2% do total de entrevistados aprovam o governo Lula. Entre os evangélicos, 51% desaprovam e 41% aprovam. Mas há muito espaço para Lula melhorar esse índice. Porque entre os quase 40% do público geral que desaprova Lula, mais de 60% disse que pode mudar de ideia se o governo melhorar sua atuação na economia e no emprego, por exemplo.

Se perdeu na numeralha? Traduzindo, sendo evangélico ou não, se a renda e a inflação melhorarem, há disposição para aprovar um governo Lula eventualmente. E a área em que Lula aparece com melhor desempenho na avaliação geral é, justamente, a economia.

Da mesma forma, 54% dos entrevistados, independentemente da religião, disseram ter uma expectativa positiva para os próximos três anos de governo Lula.

Quando a pergunta foi se o Brasil está hoje melhor ou pior do que estava com Bolsonaro, 31% dos evangélicos dizem que está melhor. Mais 31% dizem que está igual.

E 36%, que está pior. Ou seja, há mais de 60% dos evangélicos dispostos a avaliar sua situação e compará-la com o governo anterior de forma aberta ou neutra. Sem fixar ideologicamente sua percepção.

Talvez seja nisso que Lula deva se fixar ao se ver emparedado por lideranças evangélicas. Um bom governo Lula, eficiente em áreas importantes para a população em geral, interessa a todo e qualquer brasileiro, incluindo os evangélicos.

Onde Lula vem pecando na percepção da opinião pública? Na segurança e no combate à corrupção.

Não é à toa que o bolsonarismo bate tanto nessa tecla — e, com tanta frequência, espalha mentiras absurdas sobre esses assuntos.

Se a gente voltar à ideia de que uma mulher negra, periférica, nordestina ou sudestina e evangélica é muitas outras coisas além disso, podemos lembrar que a grande maioria da população brasileira é contra armas, por exemplo. E que, nisso, o governo Lula tem um grande trunfo pra fazer políticas públicas de segurança sustentáveis e eficazes e conquistar um apoio que hoje não tem. Porque essa mulher provavelmente tem filhos. Quer vê-los seguros, podendo andar na rua sem tomar tiro da polícia nem ser cooptado pelo tráfico. É por isso que ela ora no culto. É rezando por isso que ela ajoelha diante do pastor.

Fazer política pública que beneficie a população evangélica sem ceder à chantagem dos políticos evangélicos é possível. É isso que eu enxergo no resultado dessa pesquisa.

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