DIU vai contra religião?

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Se você ainda usa o Twitter, o X, você deve ter passado por este post aqui, em que a médica disse que não pode colocar o DIU na mulher por ser contra os valores religiosos da instituição.

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“Por diretriz institucional de uma instituição católica, não há a realização de procedimentos contraceptivos, seja em homens e mulheres”

Melhora ainda mais quando vamos para a conta do Hospital na rede, que estava sem twittar desde 2022, e tem três tweets nas últimas 20 horas justamente para responder mulheres que tiveram problema com a inserção do DIU no hospital.

Ou piora, né?

O conselho da instituição é procurar por outro hospital.

O que é isso? Vivemos em Gilead? Mulheres são meramente corpos destinados à reprodução? E os direitos reprodutivos? E o planejamento familiar??

Calma lá, o Hospital São Camilo, de São Paulo, é um hospital filantrópico que serve aos princípios Camilianos. Católico. Na cartilha de missão do hospital está escrito ali exatamente que eles se submetem às normas de Direito Canônico e às diretrizes estabelecidas pela Santa Sé. O hospital em si é um hospital de valores católicos e isso é aberto.

Então o hospital tem como norma que o valor da vida é um princípio fundamental e é vedada a realização de métodos contraceptivos, como vasectomia, laqueadura e outros que tenham por objetivo exclusivo a contracepção.

O hospital pode fazer isso?

Mais ou meeeenos. O hospital pertence à Sociedade Beneficente São Camilo e se o paciente não está em caso emergencial, o hospital São Camilo pode orientar o paciente a procurar outro local que realize o procedimento desejado. Porque o hospital é uma entidade privada, por mais que seja filantrópica, não é um hospital público. E só se não estiver em caso emergencial porque, legalmente, todo hospital precisa atender emergências.
61% das internações de alta complexidade do SUS acontecem em hospitais filantrópicos e Santas Casas? Sim. Mas o São Camilo não atende o SUS. Porém, pela sua natureza, o Ministério da Saúde confirmou que a instituição recebe repasse público. Seja por vínculo municipal ou estadual.

A Folha falou com o presidente da Comissão de Bioética da OAB de São Paulo que disse que a determinação é inconstitucional, fere direitos humanos e a liberdade dos profissionais de medicina. Henderson Furst ainda diz que é violado não só o Código de Ética Médica como a determinação de que profissionais de medicina proponham o melhor tratamento disponível aos seus pacientes.

Aqui, no Brasil, mais de 80% das mulheres entre 18 e 49 anos usam algum método contraceptivo, só que mesmo assim, mais de 50% das gestações não são planejadas ou são indesejadas. Isso porque é muito fácil esquecer de tomar a pílula, por exemplo.

Enfim, hospitais privados que não atendam pelo SUS não precisam realizar procedimentos que vão contra sua norma se o paciente não estiver em perigo de vida. O hospital pode escolher os procedimentos eletivos que faz.

É um pouco frustrante? Sim, não vou mentir, dá um sentimento esquisito hoje em dia a gente escutar que por motivos religiosos sua vontade não pode ser cumprida.

Mas a gente vive num país que tem hospitais públicos, que têm alternativas.

Para o DIU mais ou menos, né, porque os DIUs hormonais não estão disponíveis no SUS, só o de cobre.

E se você não está familiarizado, tem o DIU de prata, cobre, Mirena e o Kyleena. O Mirena e o Kyleena são hormonais e os dois têm a possibilidade de causar amenorreia – a interrupção do fluxo menstrual. No kyleena a chance é um pouco menor, no mirena 8 em cada 10 mulheres.

O ponto é que a lei do planejamento familiar está na Constituição Federal desde 1996 e hospitais que atendem o SUS seguem esse direito básico, que trata da livre decisão da pessoa sobre ter ou não ter filhos, sem imposição de métodos anticoncepcionais ou número de filhos. Enfim, né, está na Constituição Federal, é um direito fundamental de saúde.

É um auxílio para evitar infecções sexualmente transmissíveis, a gravidez indesejada, com o uso de anticoncepcionais, e até direito ao aborto, quando resguardado pela lei. O SUS realiza o aborto legalmente e, em caso de estupro, é sempre bom lembrar que a vítima não precisa apresentar boletim de ocorrencia, o profissional precisa acatar a palavra da vítima.

O SUS disponibiliza pílula do dia seguinte, injetável mensal, injetável trimestral, camisinhas, diafragma, diu de cobre com validade de 10 anos. Para métodos cirúrgicos, tem laqueadura e vasectomia.

E isso que a mudança da lei foi em 2022, né, porque se você não sabe agora não precisa ter 25 anos mais pra realizar esses métodos, dá pra fazer com 21 anos ou, pelo menos, dois filhos vivos. E não precisa mais da autorização do marido, né? Porque também era preciso que mulheres apresentassem um documento com o OK do cônjuge.

Ah, mas o médico pode sim negar realizar um procedimento por crença própria.

Sim, a objeção de consciência é garantida, contanto que o paciente não fique completamente desassistido. Ou seja, quando não tiver outro médico ou quando a negação traga danos à saúde do paciente.

Mas no caso não é um médico, é uma instituição como um todo que usa do preceito religioso para negar procedimentos eletivos.
Pode não ser ilegal, mas dá um desconforto.

A religiosidade sempre foi um obstáculo para os direitos reprodutivos. Nisso, consequentemente, para a luta de igualdade de gênero. Porque se mulheres tem filhos indiscriminadamente isso é um perigo para a saúde e, ainda, debilitador para outras funções sociais que não apenas exercer a maternidade.

A luta pelos direitos reprodutivos começa em 1914, quando a americana Margaret Sanger publica um livro sobre o direito das mulheres de praticarem o controle de natalidade. Ela era enfermeira, viu sua mãe morrer depois da décima oitava gravidez, viu outra mulher morrer de complicações por conta da gravidez e testemunhou as consequências de abortos clandestinos. Ela chamou a falta de controle de “escravidão biológica.” Num contexto em que qualquer controle de natalidade, qualquer dispositivo ou informação sobre o assunto era ilegal em vários estados dos estados unidos.

Ela fundou o Planned Parenthood e viajou o mundo discursando sobre controle de natalidade e, acelerando um pouco a história, Sanger foi papel crítico para a criação da pílula anticoncepcional. Vale mencionar que ela recebia recursos da Sociedade de Eugenia de Londres, então Sanger tinha uma ideia de que os mais pobres e os menos dotados biologicamente precisavam do controle de natalidade.

O Papa Paulo VI proibiu o uso da pílula, a igreja até hoje não permite o uso de anticoncepcionais artificiais. O papa Francisco, em 2016, veja, 2016 admitiu que se podia usar contraceptivo mas por conta do surto de zika vírus na América Latina.

O ativismo consevador dificulta o debate de políticas públicas que promovam um discurso mais igualitário.

O triste é que o hospital coloca seu preceito religioso acima do direito sanitário brasileiro, o que de novo é um debate enorme sobre direito reprodutivo, direito da mulher, o direito sobre a escolha do seu próprio corpo.

Tem um caso em Itajaí, de 2016, que é um pouco parecido. O Hospital e Maternidade Marieta Konder Bornhausen não fazia laqueadura e nem vasectomia publicamente e por meio de notas não admitiam o por quê, mas a enfermeira supervisora na época avisou que é por conta do Papa. Uma moradora da cidade que estava com cancer de colo de utero pediu ao hospital para realizar a laqueadura por tres meses e nao realizaram. Ela, que nao podia usar pilula e nem DIU, ficou grávida e precisou ir para Florianópolis para conseguir fazer a cesárea com a laqueadura. O hospital é privado e, em 2021, a Defensoria de Iajaí abriu nove ações na justiça para garantir laqueaduras a gestantes de risco, que são enviadas para outras cidades para o procedimento.

E nesse caso ainda a gente está falando de método cirúrgico e que impacta a vida da gestante, né?

No caso do DIU ainda falamos de contracepção a longo prazo. Que nem precisa de cirurgia e dura entre 5 a 10 anos, dependendo do tipo, que é um controle e uma libertação sexual da mulher enorme sobre seu corpo porque – se está lá e posto corretamente – ela está segura. E o DIU não é muito comum não, só duas a cada 100 brasileiras usam o contraceptivo. E olha que ainda tem muita desinformação em torno do dispositivo, porque tem quem ache que é abortivo, mas não é – é contraceptivo.

Bom, não vivemos em Gilead, temos uma Constituição Federal que garante planejamento familiar, temos contracepção garantida pelo SUS, aborto garantido e realizado pelo SUS mas também temos hospitais que absorvem demandas de uma cidade toda, recebem dinheiro público e se negam a realizar procedimentos eletivos porque vão contra seu preceito.

Shrug

Vejo vocês na próxima Curadoria!

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