Falta gestão na crise do Sul

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Entre junho e outubro de 2022, o Paquistão enfrentou uma série de enchentes violentas causadas pelo encontro de geleiras derrentendo nas montanhas e as monções. Foi um cenário muito pior do que o do Rio Grande do Sul, matou quase duas mil pessoas, ficaram mais de dois milhões desabrigados. Não tem nenhuma lição de moral aí, não. É só essa constatação meio triste de que o mundo está mudando, o clima do mundo está sendo transformado. E, ainda assim, vai ter uma penca de pessoas aqui na caixa de comentários dizendo que as mudanças climáticas são um engodo. Dá um desânimo, sabe? É importante a gente ter a escala do problema.

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O que se passa no Sul não tem comparação com nada que já tenha acontecido aqui no Brasil. A sede do governo do estado está alagada, o governador e secretários precisaram improvisar um espaço noutro canto para trabalhar. Ontem, tiraram um cavalo do terceiro andar de um prédio em São Leopoldo. Foi parar lá para que sobrevivesse. Se ficasse mais embaixo seria pego pela cheia. O Aeroporto Salgado Filho periga só ser reaberto em setembro, o Tribunal de Contas da União já está vendo como compensar a concessionária que opera. Esse periga abrir em setembro não é o pior cenário. Tem gente com medo de que a estrutura do aeroporto possa colapsar.

É surreal. Esse aeroporto é o mais importante do Sul do país. Um dos dez mais movimentados do Brasil. Porque no Brasil é isso, em termos de movimentação. São três aeroportos no estado de São Paulo, dois na cidade do Rio, o de Brasília, o de Belo Horizonte, aí Pernambuco e Porto Alegre. O que quer dizer um aeroporto de capital, assim, parado até setembro? Isso quer dizer que as pessoas não vão viajar. Dinheiro que vem de fora não vai circular. Não é só turismo, não. É gente abrindo empresa, investindo em coisa. Isso é um problema, tá?

Aí as pessoas passaram o dia caindo em cima do governador Eduardo Leite. Por quê? Bem, ele apareceu na televisão agradecendo as doações e manifestando preocupação com o comércio local, de repente sugerindo que algumas das compras pudessem ser feitas por lá. A coisa foi empacotada como se ele estivesse se queixando de que os brasileiros estivessem doando coisas demais.

Ele não estava. É evidente que ele não estava. Típica tempestade em copo d’água de internet. E a preocupação com o comércio local é legítima. A economia do Rio Grande do Sul é o que sustenta os gaúchos, é o que paga salário pras pessoas. Quando a gente fala de recuperação, recuperar é consertar prédio mas é também fazer com que o dinheiro volte a circular. Um dos grandes ganhos do Bolsa Família foi, justamente, que as pessoas ganhavam aquele dinheiro todo mês nos cantos mais pobres do país e compravam coisas no comércio local. Toda a região enriquecia ao mesmo tempo.

Agora, claro, o governador, que deve estar exausto, deu uma entrevista em que meteu os pés pelas mãos. Aí o que as pessoas fazem? Circulam um corte da entrevista em que não aparece o agradecimento pelas doações, só a preocupação com a economia local. E todo mundo nas redes indignado, claro, porque estar em rede social é isso, não é? Estar indignado. Mostrar que você é muito bom contra todos os inimigos um tuíte por vez, mais um Zap e por aí. Ficar bradando contra os outros porque só o meu grupo é bom.

Vocês já repararam como estão nossas conversas nas redes e nos Zaps? Eu faço parte de grupos de direita, de grupos de esquerda e grupos de centro no Zap. Sobre o que as pessoas estão mais conversando a respeito do Sul? São dois assuntos. Celebridades que doam e ataque a políticos.

Nesse ramo das pessoas famosas que fazem doações tem de tudo. Tem um grupo que é de pessoas ralando, mesmo. Indo lá trabalhar, movimentando suas redes em busca de recursos e tudo o mais. Mas tem um segundo grupo que é mais esquisito, em que a coisa vira mesmo um exercício de vaidade. Tem gente tendo piripaque porque não consegue adotar bicho. Essa coisa das redes tem um aspecto doentio do qual é impossível fugir, tudo é uma oportunidade de vídeo, de foto. O algoritmo exige que vc esteja no assunto sobre o qual todo mundo falando.

Essa coisa de metralhar os políticos segue por um caminho parecido com esse. É o caso daquele prefeito de Farroupilha, o dublê de Elvis Presley, que ao invés de sentar com sua equipe para listar o que a cidade precisa, preferiu gravar um vídeo falando por celular com o ministro Paulo Pimenta, distorcendo o teor da conversa, para espalhar que o governo federal não quer ajudar.

O governo federal quer ajudar. O governo estadual quer ajudar. Nenhum político com mandato quer fazer corpo mole. Políticos vivem de ser eleitos para um cargo melhor do que o anterior, se você faz tudo errado no meio de uma tragédia, perde a briga. Não existe desastre pior para uma carreira política do que falhar quando as pessoas mais precisam. Nós estamos em um momento no qual as pessoas mais precisam.

Eduardo Leite não está dispensando doações. Ele tem é muitos problemas para resolver ao mesmo tempo. Paulo Pimenta não está negando recursos para prefeitos. Ele só tem são muitas prefeituras com muitas necessidades simultaneamente e a máquina do governo federal para operar. O que não quer dizer que não há problemas. Porque há.

Então a coisa funciona assim: os bolsonaristas metralham o governo federal, a esquerda metralha o governo estadual, e isso está ajudando a quem? Não ajuda ninguém porque, em geral, metade das críticas de rede são uma bobagem. São uma bobagem porque é só má vontade, é só gente preparando armadilha pro adversário cair, é só gente dizendo meus valores estão certos, os de todo mundo deviam ser rapados fora. Agora, críticas sérias, essas têm de ser feitas.

Porque, olha, problema para resolver tem, tá? Os secretários do governo Eduardo Leite não estão se falando. Os ministros do governo Lula não estão se falando. Carlos Lupi, do Trabalho, chegou a oferecer dinheiro para as pessoas sem ter sido autorizado pelo Planalto. Teve de voltar atrás. Leite reclamou que soube pela imprensa que o presidente Lula havia indicado o ministro Paulo Pimenta para ser a autoridade federal voltada para a recuperação do estado. Pois é. Quem devia, não está se falando.

Parece picuinha? Olha, não é. Desde segunda-feira, uma das principais empresas de telecomunicações do Brasil estava tentando descobrir com quem falar para instalar WiFi e internet rápida nos abrigos. Não conseguia descobrir, nem no governo federal, nem no estadual, quem era a pessoa que poderia orientar os técnicos. Veja, não é que não conseguisse falar com as autoridades. Com as pessoas em cargos altos, dava pra falar. O que não conseguia era descobrir, lá na ponta, com quem falar para chegar nos abrigos. Sabe a coisa simples? Qual o endereço de cada um, que horas os técnicos podem chegar pra instalar, quem vai receber? Os executivos, querendo ajudar, não conseguiam essa informação.

Muita gente está com críticas similares. Existe um problema de coordenação. Prefeituras não falam com o governo estadual que não fala com a presidência da República. E, claro, não bastasse a descordenação, aí em cima tem a demagogia e a desinformação. Tem o tiroteio das redes sociais, o prefeito de topete falsificando vídeo. Numa crise dessas, logística é o mais importante. Como fazer as coisas chegarem a quem precisa. Começa tudo por mapear.

Então o que a gente está vendo é o caos de gestão justamente onde não poderia haver. Não é possível que não exista ainda uma central de gerencia da crise onde os três níveis de governo e os três Poderes possam se encontrar e resolver seus problemas. Olha, isso é físico mesmo, tá? Uma mesa redonda, todo mundo que manda sentado ali, conversando 24 horas por dia.

Então, sim, tem o que criticar. Quer criticar Eduardo Leite? Critique o governo do estado por ter afrouxado a regulação ambiental para facilitar obras que provavelmente não tinham de ser feitas. Essa crítica faz sentido, embora a cise de hoje já tenha sido encomendada faz muitos anos e tem mais a ver com desmatamento da Amazônia do que qualquer outra coisa.

O problema aqui, gente, é a zona. Quer entender por que tem tanto mal entendido? Porque as três instâncias de governo não estão falando umas com as outras, não fazem parte de uma mesma coordenação de crise. E não fazem, em grande parte, porque o incentivo nas redes, aos quais os políticos são sensíveis demais, são todos para que o petista e o tucano continuem apontando um o dedo para o outro.

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