Os sócios da Abin Paralela — e onde está a inteligência de Lula?

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No dia 22 de abril de 2020, além do infame descobrimento do Brasil, o país também descobria qual era o projeto e o método de Jair Bolsonaro. Ele já havia dado muitos sinais antes de como queria se tornar um autocrata, claro. Mas ali, à vontade, empossado e comandando a República, ele descreveu, por horas, tudo que pensava sobre como governar a nação e usá-la, sem pudor, para seu próprio benefício. Confira comigo no replay:

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A divulgação da íntegra do vídeo foi autorizada no dia 22 de maio, um mês depois. O Brasil tinha, àquela altura, mais de 21 mil mortos por covid. No dia da reunião ministerial, já eram quase 3 mil as vítimas do coronavírus. Mas Bolsonaro tinha apenas uma preocupação: proteger sua família de eventuais investigações e impedir que medidas de isolamento sanitário fossem adotadas amplamente por prefeitos e governadores.

Seus subordinados ainda tinham mais ambições, como a de deixar passar a boiada, por exemplo.

Enquanto falava sem qualquer freio que pretendia “interferir”, sim, na inteligência estatal em benefício próprio, Bolsonaro estava ladeado por dois generais: Hamilton Mourão, então seu vice, e Braga Netto, seu futuro candidato a vice. O general Augusto Heleno também estava ali.

Um ano antes, Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional, explicou por que estava trocando a diretoria da Abin, a agência brasileira de inteligência. O novo titular seria Alexandre Ramagem. Abre aspas para o general: “Apenas uma troca para modificar um pouquinho da filosofia do sistema brasileiro de inteligência”.  Ramagem era um delegado da Polícia Federal, que já havia chefiado a segurança de Bolsonaro em sua campanha, depois da facada.

E por que essa cronologia é importante? Por que estou repetindo coisas que talvez você já soubesse e se lembrasse?

Porque a forma como as coisas foram ditas e feitas no tempo revelam lógicas, encadeamentos, competências e incompetências, fragilidades, estratégias.

Cá entre nós, neste caso, revelam que Jair Bolsonaro e sua família nunca, em tempo algum, jamais esconderam o que queriam fazer com a Abin, com a Polícia Federal, com os órgãos de Estado. Queriam apenas e tão somente usá-los a seu favor.

Revelam também que, nessa empreitada nada discreta, os Bolsonaro tiveram pelo menos três grandes cúmplices.

Os militares, a procuradoria-geral da República e o presidente da Câmara dos Deputados. Eu não estou pessoalizando de propósito, tá? E eu vou explicar por que em seguida. Por isso, te convido a ficar aqui comigo.

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O ano de 2018 parece cada vez mais distante, né? Mesmo a pandemia parece uma memória fosca de um tempo infeliz, miserável, mas que definitivamente ficou pra trás. Bom, não para aqueles que sofrem o luto doloroso pelos mais de 700 mil mortos. Mas para os demais, sim.

Só que em 2018, em plena campanha presidencial, já se falava do tipo de presidente que Bolsonaro poderia ser. Muita gente, muita mesmo, tentou contemporizar, dizendo que ele “amadureceria”, coisas do tipo.

Claro que isso não aconteceu, sabemos. E no primeiro semestre de seu governo, com as bênçãos dos generais que o afiançaram, Bolsonaro já definiu uma nova “filosofia” do sistema de inteligência brasileiro. Com as bênçãos, não, né? Se obedeceu à hierarquia militar, com as ordens. Se a desobedeceu, foi insubordinado e os generais deveriam punir o capitão. Qual você acha que é a alternativa correta?

Essa é uma das razões por que eu não quero fulanizar a discussão. Um dos argumentos mais comuns dos militares e do ministro José Múcio para minimizar o apoio a Bolsonaro e as ações antidemocráticas das Forças Armadas é que foram os indivíduos e não a instituição.

E, assim, adia-se ou veda-se qualquer possibilidade de reforma nas instituições que impeçam que essas ações individuais aconteçam.

É essa mesma lógica que guia a formulação da expressão “abin paralela”. Ela só foi paralela mesmo depois que Bolsonaro saiu da presidência. Enquanto esteve no Planalto, a Abin foi cooptada institucionalmente para servi-lo.

Não há dúvidas de que há os servidores que resistiram, que tentaram evitar que isso acontecesse. Sempre há, e ainda bem. Mas se o diretor-geral da Abin e toda sua cúpula, incluindo o chefe do GSI, estavam de acordo com esse método, o que poucos servidores poderiam fazer para impedir?

Quero dar um exemplo de como a coisa ficou institucionalizada.

Eu fui procurar no site oficial da Abin as atribuições do órgão. E notei que essa página havia sido redigida em 2020. Ela foi atualizada em 2023. Ou seja, havia uma versão do governo Bolsonaro e há uma do governo Lula.

Com a ajuda inestimável do meu amigo Lucas Lago, tecnologista de interesse público e membro do Instituto Aaron Swartz, busquei recuperar a versão anterior. Aparentemente, as atualizações não foram de texto, talvez tenham sido só de sistema. Se o governo Lula fosse minimamente letrado digitalmente, saberia que é recomendável que qualquer alteração registrada mencione que alteração foi essa. Mas já voltamos a falar disso.

Por enquanto, vamos analisar o que diz a lei e o que diz o site institucional da Abin. Te convido pra navegar comigo pelas sutilezas — nem tão sutis — das palavras usadas por cada um.

Primeiro, a letra da lei que criou a Abin:

Art. 1º Fica instituído o Sistema Brasileiro de Inteligência [do qual a Abin faz parte], que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

No artigo 3º, vem explicado que as atividades da Abin devem obedecer integralmente os direitos e garantias individuais — por isso, é ilegal espionar um cidadão sem autorização da Justiça, tá?

No 4º, diz que, levando em conta essa obediência, a Abin deve obter dados e análises para “assessorar o presidente da República” e relativos à segurança do Estado e da Sociedade.

Absolutamente qualquer cidadão minimamente bem intencionado e ciente do que é o espírito republicano entende como as coisas se complementam na lei. Como as leis ditam contextos, correlações.

A Abin existe para colher informações? Sim. Elas vão servir para instruir decisões do presidente? Sim. O presidente pode usá-la para obter informações sobre potenciais investigações sobre si mesmo ou familiares e aliados? Não. Pode usá-la para perseguir adversários? Não.

É assim que o site oficial descreve as funções da agência:  A Abin é “responsável por fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão”. E segue: “Para cumprir essa missão institucional, os profissionais de inteligência produzem conhecimentos estratégicos por meio da análise de fatos, eventos ou situações que permitam a identificação de oportunidades e ameaças relacionadas a”, entre outras coisas, “proteção de conhecimentos sensíveis produzidos por entes públicos ou privados, entre outros assuntos”.

Percebe como, formuladas assim, as atribuições cobrem qualquer tipo de pecado? E isso não está na lei.

O atual número 2 da Abin, Alessandro Moretti, é investigado por coluio com Ramagem para monitorar ilegalmente adversários de Bolsonaro. E nesta terça, depois de tudo, segue no cargo. Lula diz que é para ele ter direito de se defender. Só que, no pós-8 de janeiro, o próprio Lula disse em entrevista que todos os sistemas de inteligência falharam. Tudo. Por isso, ele iniciou uma reformulação da Abin, além de tirá-la do GSI e passá-la pra casa civil.

Ainda assim, Lula manteve figuras tidas como bolsonaristas na Abin.

Moretti é uma figura dúbia. É também aliado de Temer e de Edinho Silva, prefeito de Araraquara e petista muito próximo de Lula. Ainda assim, depois de uma tentativa de golpe de Estado, você trazer para o governo alguém que tem a pecha de “conselheiro informal” de quem teria sido mentor e beneficiário do golpe não faz qualquer sentido.

Mais do que isso. Lula segue conciliando, conciliando, agradando, afagando, dando dinheiro, perdoando, conciliando mais um pouquinho com os militares. Os mesmos que, individual e institucionalmente, possibilitaram a ascensão de Bolsonaro, o endossaram e conspiraram por sua manutenção no poder.

Lula sempre fala de como deve ser cobrado e criticado. Para mim, até o momento, não há erro mais grave do que esse em seu governo. A oportunidade perdida de enquadrar os militares vai cobrar seu preço, porque o bolsonarismo não morreu. Só está trocando de roupa conforme

Bolsonaro fica enfraquecido. Vai ter herdeiros. E eles seguirão afiançados pelas Forças Armadas e por policiais militares e civis que se viram impunes ao apoiar golpismo e toda sorte de crimes.

Os outros dois comparsas da Abin paralela foram a PGR e o presidente da Câmara dos Deputados. Augusto Aras ficou totalmente passivo diante daquela reunião ministerial, da denúncia do então ministro demissionário Sergio Moro de interferência na PF, das denúncias da CPI da Covid, da incitação ao golpe. Foi trocado, sem qualquer pressa, por Paulo Gonet, que apesar de “conservador raiz”, parece estar disposto a fazer o serviço e, assim, municiar Alexandre de Moraes no cerco aos crimes e aos criminosos.

Já o presidente da Câmara, e aí pode somar Rodrigo Maia com Arthur Lira, ambos sentaram em todos os pedidos de abertura de processo de impeachment que chegaram à Casa. Com a notícia de que Maia foi monitorado pela Abin, talvez ele até se arrependa.

Mas, conforme as investigações avançam, o discurso manjado e previsível de que é vítima de perseguição está na ponta da língua de Bolsonaro.

E aí vem o perfil oficial da Secretaria de Comunicação do governo Lula e dá motivos pra alimentar esse discurso.

Olha, tem muita gente defendendo essa estratégia do Paulo Pimenta de uso das redes oficiais. São duas as justificativas. A do ministro é de que ele surfou no assunto do dia para levar mais longe uma mensagem importante, do combate à dengue. A dos militantes é de que o governo tem mais é que usar mesmo as mesmas armas dos adversários para ganhar a guerra nas mídias sociais.

Eu discordo das duas.

Usar o assunto do dia pra ampliar uma mensagem do governo é obviamente algo inteligente e estratégico. Mas não quando envolver um evidente rival político. Tinha BBB, maquiadora x noiva, até o vestido azul ou dourado estava de volta na pauta. A internet tem futebol, tem gatinho, tem Taylor Swift, assunto do dia não falta.

Ao escolher caçoar de Bolsonaro, a mensagem truncada e indireta que chega, ou que é distorcida pela extrema direita, é a seguinte: bem feito, se ferrou! Nós, o governo e o Estado, estamos felizes com esse capítulo e não temos nenhum problema em usar nossos equipamentos pra mostrar isso. Na cabeça de quem não é alinhado ao governo, a dedução óbvia é que 1) esse governo está caçoando de mim; 2) se eles usam o twitter pra falar isso, devem também usar a Polícia Federal, o Supremo, a PGR. Então, qual o problema de Bolsonaro usar a Abin?

Em segundo lugar, a estratégia seria usar as mesmas armas da extrema direita no que a extrema direita faz bem. Isso quer dizer: simplificar a mensagem, usar humor, tudo isso. Mas a esquerda e os democratas em geral ficavam horrorizados quando a Secom de Bolsonaro usava os perfis oficiais com a foto dele, pra fazer campanha, etc. Quando ele feria a impessoalidade, quando agredia os princípios republicanos. Agora, o governo Lula vai fazer o mesmo?

Não adianta culpar a imprensa por amplificar isso, não. Os jornalistas estariam todos falando exclusivamente da operação em si ou dos indícios de que a família Bolsonaro foi avisada da operação da Polícia Federal e por isso foi passear de barco se o governo não tivesse escolhido fazer aquela comunicação infeliz. Mas ela era notícia, sim.

Está faltando inteligência a Lula na desbolsonarização do governo. Na civilização dos militares. E na comunicação. E o tempo está correndo depressa.

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